04/02/2018

Uns Braços, Machado de Assis


   Inácio estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe
apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro,
cabeça de vento, estúpido, maluco.

— Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para
que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau;
sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco!

— Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D.
Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos. Confunde-me os
papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os
advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De manhã é o que se vê;
primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos... Deixe; amanhã hei de
acordá-lo a pau de vassoura!

   D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges expetorou ainda
alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens.

    Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era
propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas
bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não
acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça,
ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente,
escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo
no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito.
Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870.

    Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da
mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular a
oração com um golpe de vinho e continuava logo calado.
Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem
para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o
descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos
nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.

    Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus,

constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo
abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade,
eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e
não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela
os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de
mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios
engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços,
mal poderia mirar-lhe o busto. 

   Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia.
 Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os
cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de
tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro; nas orelhas, nada.
Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.

     Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira,
comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes.
Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil
coisas que não interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não o
descompunha e ele podia devanear à larga.

    Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha,
arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos
quadros da sala de jantar, que eram dois, um S. Pedro e um S. João, registros
trazidos de festas encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja
cabeça moça alegra as imaginações católicas, mas com o austero S. Pedro era
demais. A única defesa do moço Inácio é que ele não via nem um nem outro;
passava os olhos por ali como por nada. Via só os braços de D. Severina, — ou
porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com eles impressos
na memória.

— Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador.
  Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-se, como de
costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga
e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam para o
mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe
restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem,
alguma coisa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha
vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas que ali morava, e a vida era
sempre a mesma, sair de manhã com o Borges, andar por audiências e cartórios,
correndo, levando papéis ao selo, ao distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de
justiça. Voltava à tarde, jantava e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava
e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na família, que se compunha apenas
de D. Severina, nem Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições.
Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs;
cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em
casa, nada.
"Deixe estar, — pensou ele um dia — fujo daqui e não volto mais."
      Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira
outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-
los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado.
Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os
foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles,
moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de
fora, toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela
única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços.
Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali
outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e,

pela primeira vez, desconfiou alguma coisa. Rejeitou a idéia logo, uma criança!
   
    Mas há idéias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as
sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que
entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que
admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi
rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, os
esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram
sintomas, e concluiu que sim.

— Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de
alguns minutos de pausa.

— Não tenho nada.

— Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de
um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos...

     E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz
de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que
não, que era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre
Fortunata. Não a visitavam desde o Natal; por que não iriam lá uma daquelas
noites? Borges redargüia que andava cansado, trabalhava como um negro, não
estava para visitas de parola, e descompôs a comadre, descompôs o compadre,
descompôs o afilhado, que não ia ao colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez
anos, já sabia ler, escrever e contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez
anos! Havia de ter um bonito fim: — vadio, e o côvado e meio nas costas. A
tarimba é que viria ensiná-lo.

     D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o caiporismo do
compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais. A noite
caíra de todo; ela ouviu o
tlic do lampião do gás da rua, que acabavam de
acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa fronteira. Borges, cansado do dia,
pois era realmente um trabalhador de primeira ordem, foi fechando os olhos e
pegando no sono, e deixou-a só na sala, às escuras, consigo e com a descoberta
que acaba de fazer.

     Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a
impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral, que ela só conheceu
pelos efeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se
nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que
mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não
havia mais que suposição, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão
não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o
acanhamento, as distrações, para rejeitar a idéia de estar enganada. Daí a pouco,
(capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu
que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade
das coisas.

      Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Inácio; não
chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os
olhos da xícara. No dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros otimamente.
Percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido
pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de
reconhecer-se a si mesmo. D. Severina compreendeu que não havia recear
nenhum desacato, e concluiu que o melhor era não dizer nada ao solicitador;
poupava-lhe um desgosto, e outro à pobre criança. Já se persuadia bem que ele
era criança, e assentou de o tratar tão secamente como até ali, ou ainda mais. E
assim fez; Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero,
quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz
saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo,

tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele;
mas tudo isso era curto.

— Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias.

       Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavam-lhe um
parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida que levava, e essa oração
intercalada trazia uma idéia original e profunda, inventada pelo céu unicamente
para ele. Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca
mais; eis aqui como e porquê.

      D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz
parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia
recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois
do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe
lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo
de confiança de rir um dia à mesa, coisa que jamais fizera; e o solicitador não o
tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém
pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca
do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria.
A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entenderse. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de noite, pensando em D.
Severina.
   
      Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e
não via mulher, ao longe ou ao perto, que lha não trouxesse à memória. Ao entrar
no corredor da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às
vezes grande, quando dava com ela no topo da escada, olhando através das
grades de pau da cancela, como tendo acudido a ver quem era.
Um domingo, — nunca ele esqueceu esse domingo, — estava só no quarto, à
janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de
D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no
ar, ou pairavam em cima d'água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo.
Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal.

      Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos
que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do
passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira
mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou
em um dos folhetos, a
Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender
por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e
talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora,
deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu
sair a dama dos seus cuidados.
   O natural era que se espantasse; mas não se
espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar,
sorrir e andar para a rede. Era ela mesma, eram os seus mesmos braços.
É certo, porém, que D. Severina tanto não podia sair da parede, dado que
houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente ouvindo os
passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair
e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das
Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural,
inquieta, quase maluca; levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do
aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois caminhou até à porta, deteve-se e
voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra vez, cinco ou dez minutos. De
repente, lembrou-se que Inácio comera pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e
advertiu que podia estar doente; podia ser até que estivesse muito mal.

      Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho,
cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com ele na rede,

dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A cabeça inclinava-se
um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e
um grande ar de riso e de beatitude.

      D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou. Sonhara de noite
com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com ela. Desde madrugada que a
figura do mocinho andava-lhe diante dos olhos como uma tentação diabólica.
Recuou ainda, depois voltou, olhou dois, três, cinco minutos, ou mais. Parece que
o sono dava à adolescência de Inácio uma expressão mais acentuada, quase
feminina, quase pueril. "Uma criança!" disse ela a si mesma, naquela língua sem
palavras que todos trazemos conosco. E esta idéia abateu-lhe o alvoroço do
sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos.

"Uma criança!"

     E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído;
mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito
que acordado, e uma dessas idéias corrigia ou corrompia a outra. De repente
estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta do engomado;
foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a
espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor
que a abalara tanto, não o fez sequer mudar de posição. E ela continuou a vê-lo
dormir, — dormir e talvez sonhar.

    Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si
mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada;
depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços,
os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela,
que eram lindas, cálidas, principalmente novas, — ou, pelo menos, pertenciam a
algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas, três e quatro
vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre
gaivotas, ou atravessando o corredor, com toda a graça robusta de que era capaz.
E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os
braços, até que, inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e
deixou-lhe um beijo na boca.

       Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na
imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão
depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali
passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada.
Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe
dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi
passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem
os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o
vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo;
parece que embrulhara os seus desejos na idéia de que era uma criança namorada
que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga,
inclinara-se e beijara-o. Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida,
mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia
apontou-lhe na alma e deu-lhe um calafrio.

       Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só acordou para jantar. Sentou-se à
mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina calada e severa e o solicitador tão
ríspido como nos outros dias, nem a rispidez de um, nem a severidade da outra
podiam dissipar-lhe a visão graciosa que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a
sensação do beijo. Não reparou que D. Severina tinha um xale que lhe cobria os
braços; reparou depois, na segunda-feira, e na terça-feira, também, e até sábado,
que foi o dia em que Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e
não o fez zangado, porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída:

— Quando precisar de mim para alguma coisa, procure-me.

— Sim, senhor. A Sra. D. Severina...

— Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois
despedir-se dela.

        Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa
mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão
bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente... Tanto pensou que
acabou supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma distração que a
ofendera; não era outra coisa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria os
braços tão bonitos... Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos
anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação
achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze
anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana:

— E foi um sonho! um simples sonho!
  



UNS BRAÇOS, Machado de Assis, Contos Fluminenses

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