AS ACADEMIAS DE SIÃO
ÍNDICECAPÍTULO PRIMEIRO
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IVConhecem as academias de Sião? Bem sei que em Sião nunca houve academias:
mas suponhamos que sim, e que eram quatro, e escutem-me.CAPÍTULO PRIMEIROAs estrelas, quando viam subir, através da noite, muitos vaga-lumes cor de leite,
costumavam dizer que eram os suspiros do rei de Sião, que se divertia com as
suas trezentas concubinas. E, piscando o olho umas às outras, perguntavam:
— Reais suspiros, em que é que se ocupa esta noite o lindo Kalaphangko?
Ao que os vaga-lumes respondiam com gravidade:
— Nós somos os pensamentos sublimes das quatro academias de Sião; trazemos
conosco toda a sabedoria do universo.
Uma noite, foram em tal quantidade os vaga-lumes, que as estrelas, de medrosas,
refugiaram-se nas alcovas, e eles tomaram conta de uma parte do espaço, onde
se fixaram para sempre com o nome de Via-láctea.
Deu lugar a essa enorme ascensão de pensamentos o fato de quererem as quatro
academias de Sião resolver este singular problema: — por que é que há homens
femininos e mulheres másculas? E o que as induziu a isso foi a índole do jovem
rei. Kalaphangko era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais
esquisita feminidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e
obedientes e um cordial horror às armas. Os guerreiros siameses gemiam, mas a
nação vivia alegre, tudo eram danças, comédias e cantigas, à maneira do rei que
não cuidava de outra coisa. Daí a ilusão das estrelas.
Vai senão quando, uma das academias achou esta solução ao problema:
— Umas almas são masculinas, outras femininas. A anomalia que se observa é
uma questão de corpos errados.
— Nego, bradaram as outras três; a alma é neutra; nada tem com o contraste
exterior.
Não foi preciso mais para que as vielas e águas de Bangkok se tingissem de
sangue acadêmico. Veio primeiramente a controvérsia, depois a descompostura, e
finalmente a pancada. No princípio da descompostura tudo andou menos mal;
nenhuma das rivais arremessou um impropério que não fosse escrupulosamente
derivado do sânscrito, que era a língua acadêmica, o latim de Sião. Mas dali em
diante perderam a vergonha. A rivalidade desgrenhou-se, pôs as mãos na cintura,
baixou à lama, à pedrada, ao murro, ao gesto vil, até que a academia sexual,
exasperada, resolveu dar cabo das outras, e organizou um plano sinistro... Ventos
que passais, se quisésseis levar convosco estas folhas de papel, para que eu não
contasse a tragédia de Sião! Custa-me (ai de mim!), custa-me escrever a singular
desforra. Os acadêmicos armaram-se em segredo, e foram ter com os outros,
justamente quando estes, curvados sobre o famoso problema, faziam subir ao céu
uma nuvem de vaga-lumes. Nem preâmbulo, nem piedade. Caíram-lhes em cima,
espumando de raiva. Os que puderam fugir, não fugiram por muitas horas;
perseguidos e atacados, morreram na beira do rio, a bordo das lanchas, ou nas
vielas escusas. Ao todo, trinta e oito cadáveres. Cortaram uma orelha aos
principais, e fizeram delas colares e braceletes para o presidente vencedor, o
sublime U-Tong. Ébrios da vitória, celebraram o feito com um grande festim, no
qual cantaram este hino magnífico: "Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a
luminária do universo".
A cidade acordou estupefata. O terror apoderou-se da multidão. Ninguém podia
absolver uma ação tão crua e feia; alguns chegavam mesmo a duvidar do que
viam... Uma só pessoa aprovou tudo: foi a bela Kinnara, a flor das concubinas
régias.CAPÍTULO IIMolemente deitado aos pés da bela Kinnara, o jovem rei pedia-lhe uma cantiga.
— Não dou outra cantiga que não seja esta: creio na alma sexual.
— Crês no absurdo, Kinnara.
— Vossa Majestade crê então na alma neutra?
— Outro absurdo, Kinnara. Não, não creio na alma neutra, nem na alma sexual.
— Mas então em que é que Vossa Majestade crê, se não crê em nenhuma delas?
— Creio nos teus olhos, Kinnara, que são o sol e a luz do universo.
— Mas cumpre-lhe escolher: — ou crer na alma neutra, e punir a academia viva,
ou crer na alma sexual, e absolvê-la.
— Que deliciosa que é a tua boca, minha doce Kinnara! Creio na tua boca: é a
fonte da sabedoria.
Kinnara levantou-se agitada. Assim como o rei era o homem feminino, ela era a
mulher máscula — um búfalo com penas de cisne. Era o búfalo que andava agora
no aposento, mas daí a pouco foi o cisne que parou, e, inclinando o pescoço, pediu
e obteve do rei, entre duas carícias, um decreto em que a doutrina da alma sexual
foi declarada legítima e ortodoxa, e a outra absurda e perversa. Nesse mesmo dia,
foi o decreto mandado à academia triunfante, aos pagodes, aos mandarins, a todo
o reino. A academia pôs luminárias; restabeleceu-se a paz pública.CAPÍTULO IIIEntretanto, a bela Kinnara tinha um plano engenhoso e secreto. Uma noite, como
o rei examinasse alguns papéis do Estado, perguntou-lhe ela se os impostos eram
pagos com pontualidade.
— Ohimé! exclamou ele, repetindo essa palavra que lhe ficara de um missionário
italiano. Poucos impostos têm sido pagos. Eu não quisera mandar cortar a cabeça
aos contribuintes... Não, isso nunca... Sangue? sangue? não, não quero sangue...
— E se eu lhe der um remédio a tudo?
— Qual?
— Vossa Majestade decretou que as almas eram femininas e masculinas, disse
Kinnara depois de um beijo. Suponha que os nossos corpos estão trocados. Basta
restituir cada alma ao corpo que lhe pertence. Troquemos os nossos...
Kalaphangko riu muito da idéia, e perguntou-lhe como é que fariam a troca. Ela
respondeu que pelo método Mukunda, rei dos hindus, que se meteu no cadáver de
um brâmane, enquanto um truão se metia no dele Mukunda, — velha lenda
passada aos turcos, persas e cristãos. Sim, mas a fórmula da invocação? Kinnara
declarou que a possuía; um velho bonzo achara cópia dela nas ruínas de um
templo.
— Valeu?
— Não creio no meu próprio decreto, redargüiu ele rindo; mas vá lá, se for
verdade, troquemos... mas por um semestre, não mais. No fim do semestre
destrocaremos os corpos.
Ajustaram que seria nessa mesma noite. Quando toda a cidade dormia, eles
mandaram vir a piroga real, meteram-se dentro e deixaram-se ir à toa. Nenhum
dos remadores os via. Quando a aurora começou a aparecer, fustigando as vacas
rútilas, Kinnara proferiu a misteriosa invocação; a alma desprendeu-se-lhe, e ficou
pairando, à espera que o corpo do rei vagasse também. O dela caíra no tapete.
— Pronto? disse Kalaphangko.
— Pronto, aqui estou no ar, esperando. Desculpe Vossa Majestade a indignidade
da minha pessoa...
Mas a alma do rei não ouviu o resto. Lépida e cintilante, deixou o seu vaso físico e
penetrou no corpo de Kinnara, enquanto a desta se apoderava do despojo real.
Ambos os corpos ergueram-se e olharam um para o outro, imagine-se com que
assombro. Era a situação do Buoso e da cobra, segundo conta o velho Dante; mas
vede aqui a minha audácia. O poeta manda calar Ovídio e Lucano, por achar que a
sua metamorfose vale mais que a deles dois. Eu mando-os calar a todos três.
Buoso e a cobra não se encontram mais, ao passo que os meus dois heróis, uma
vez trocados, continuam a falar e a viver juntos — coisa evidentemente mais
dantesca, em que me pese à modéstia.
— Realmente, disse Kalaphangko, isto de olhar para mim mesmo e dar-me
majestade é esquisito. Vossa Majestade não sente a mesma coisa?
Um e outro estavam bem, como pessoas que acham finalmente uma casa
adequada. Kalaphangko espreguiçava-se todo nas curvas femininas de Kinnara.
Esta inteiriçava-se no tronco rijo de Kalaphangko. Sião tinha, finalmente, um rei.CAPÍTULO IVA primeira ação de Kalaphangko (daqui em diante entenda-se que é o corpo do rei
com a alma de Kinnara, e Kinnara o corpo da bela siamesa com a alma do
Kalaphangko) foi nada menos que dar as maiores honrarias à academia sexual.
Não elevou os seus membros ao mandarinato, pois eram mais homens de
pensamento que de ação e administração, dados à filosofia e à literatura, mas
decretou que todos se prosternassem diante deles, como é de uso aos mandarins.
Além disso, fez-lhes grandes presentes, coisas raras ou de valia, crocodilos
empalhados, cadeiras de marfim, aparelhos de esmeralda para almoço,
diamantes, relíquias. A academia, grata a tantos benefícios, pediu mais o direito
de usar oficialmente o título de Claridade do Mundo, que lhe foi outorgado.
Feito isso, cuidou Kalaphangko da fazenda pública, da justiça, do culto e do
cerimonial. A nação começou de sentir o peso grosso, para falar como o excelso
Camões, pois nada menos de onze contribuintes remissos foram logo decapitados.
Naturalmente os outros, preferindo a cabeça ao dinheiro, correram a pagar as
taxas, e tudo se regularizou. A justiça e a legislação tiveram grandes melhoras.
Construíram-se novos pagodes; e a religião pareceu até ganhar outro impulso,
desde que Kalaphangko, copiando as antigas artes espanholas, mandou queimar
uma dúzia de pobres missionários cristãos que por lá andavam; ação que os
bonzos da terra chamaram a pérola do reinado.
Faltava uma guerra. Kalaphangko, com um pretexto mais ou menos diplomático,
atacou a outro reino, e fez a campanha mais breve e gloriosa do século. Na volta a
Bangkok, achou grandes festas esplêndidas. Trezentos barcos, forrados de seda
escarlate e azul, foram recebê-lo. Cada um destes tinha na proa um cisne ou um
dragão de ouro, e era tripulado pela mais fina gente da cidade; músicas e
aclamações atroaram os ares. De noite, acabadas as festas, sussurrou ao ouvido a
bela concubina:
— Meu jovem guerreiro, paga-me as saudades que curti na ausência; dize-me que
a melhor das festas é a tua meiga Kinnara.
Kalaphangko respondeu com um beijo.
— Os teus beiços têm o frio da morte ou do desdém, suspirou ela.
Era verdade, o rei estava distraído e preocupado; meditava uma tragédia. Ia-se
aproximando o termo do prazo em que deviam destrocar os corpos, e ele cuidava
em iludir a cláusula, matando a linda siamesa. Hesitava por não saber se
padeceria com a morte dela visto que o corpo era seu, ou mesmo se teria de
sucumbir também. Era esta a dúvida de Kalaphangko; mas a idéia da morte
sombreava-lhe a fronte, enquanto ele afagava ao peito um frasquinho com
veneno, imitado dos Bórgias.
De repente, pensou na douta academia; podia consultá-la, não claramente, mas
por hipótese. Mandou chamar os acadêmicos; vieram todos menos o presidente, o
ilustre U-Tong, que estava enfermo. Eram treze; prosternaram-se e disseram ao
modo de Sião:
— Nós, desprezíveis palhas, corremos ao chamado de Kalaphangko.
— Erguei-vos, disse benevolamente o rei.
— O lugar da poeira é o chão, teimaram eles com os cotovelos e joelhos em terra.
— Pois serei o vento que subleva a poeira, redargüiu Kalaphangko; e, com um
gesto cheio de graça e tolerância, estendeu-lhes as mãos.
Em seguida, começou a falar de coisas diversas, para que o principal assunto
viesse de si mesmo; falou nas últimas notícias do ocidente e nas leis de Manu.
Referindo-se a U-Tong, perguntou-lhes se realmente era um grande sábio, como
parecia; mas, vendo que mastigavam a resposta, ordenou-lhes que dissessem a
verdade inteira. Com exemplar unanimidade, confessaram eles que U-Tong era
um dos mais singulares estúpidos do reino, espírito raso, sem valor, nada sabendo
e incapaz de aprender nada. Kalaphangko estava pasmado. Um estúpido?
— Custa-nos dizê-lo, mas não é outra coisa; é um espírito raso e chocho. O
coração é excelente, caráter puro, elevado...
Kalaphangko, quando voltou a si do espanto, mandou embora os acadêmicos, sem
lhes perguntar o que queria. Um estúpido? Era mister tirá-lo da cadeira sem
molestá-lo. Três dias depois, U-Tong compareceu ao chamado do rei. Este
perguntou-lhe carinhosamente pela saúde; depois disse que queria mandar
alguém ao Japão estudar uns documentos, negócio que só podia ser confiado a
pessoa esclarecida. Qual dos seus colegas da academia lhe parecia idôneo para tal
mister? Compreende-se o plano artificioso do rei: era ouvir dois ou três nomes, e
concluir que a todos preferia o do próprio U-Tong; mas eis aqui o que este lhe
respondeu:
— Real Senhor, perdoai a familiaridade da palavra: são treze camelos, com a
diferença que os camelos são modestos, e eles não; comparam-se ao sol e à lua.
Mas, na verdade, nunca a lua nem o sol cobriram mais singulares pulhas do que
esses treze... Compreendo o assombro de Vossa Majestade; mas eu não seria
digno de mim se não dissesse isto com lealdade, embora confidencialmente...
Kalaphangko tinha a boca aberta. Treze camelos? Treze, treze. U-Tong ressalvou
tão-somente o coração de todos, que declarou excelente; nada superior a eles
pelo lado do caráter. Kalaphangko, com um fino gesto de complacência, despediu
o sublime U-Tong, e ficou pensativo. Quais fossem as suas reflexões, não o soube
ninguém. Sabe-se que ele mandou chamar os outros acadêmicos, mas desta vez
separadamente, a fim de não dar na vista, e para obter maior expansão. O
primeiro que chegou, ignorando aliás a opinião de U-Tong, confirmou-a
integralmente com a única emenda de serem doze os camelos, ou treze, contando
o próprio U-Tong. O segundo não teve opinião diferente, nem o terceiro, nem os
restantes acadêmicos. Diferiam no estilo; uns diziam camelos, outros usavam
circunlóquios e metáforas, que vinham a dar na mesma coisa. E, entretanto,
nenhuma injúria ao caráter moral das pessoas. Kalaphangko estava atônito.
Mas não foi esse o último espanto do rei. Não podendo consultar a academia,
tratou de deliberar por si, no que gastou dois dias, até que a linda Kinnara lhe
segredou que era mãe. Esta notícia fê-lo recuar do crime. Como destruir o vaso
eleito da flor que tinha de vir com a primavera próxima? Jurou ao céu e à terra
que o filho havia de nascer e viver. Chegou ao fim do semestre; chegou o
momento de destroçar os corpos.
Como da primeira vez, meteram-se no barco real, à noite, e deixaram-se ir águas
abaixo, ambos de má vontade, saudosos do corpo que iam restituir um ao outro.
Quando as vacas cintilantes da madrugada começaram de pisar vagarosamente o
céu, proferiram eles a fórmula misteriosa, e cada alma foi devolvida ao corpo
anterior. Kinnara, tornando ao seu, teve a comoção materna, como tivera a
paterna quando ocupava o corpo de Kalaphangko. Parecia-lhe até que era ao
mesmo tempo mãe e pai da criança.
— Pai e mãe? repetiu o príncipe restituído à forma anterior.
Foram interrompidos por uma deleitosa música, ao longe. Era algum junco ou
piroga que subia o rio, pois a música aproximava-se rapidamente. Já então o sol
alagava de luz as águas e as margens verdes, dando ao quadro um tom de vida e
renascença, que de algum modo fazia esquecer aos dois amantes a restituição
física. E a música vinha chegando, agora mais distinta, até que, numa curva do
rio, apareceu aos olhos de ambos um barco magnífico, adornado de plumas e
flâmulas. Vinham dentro os quatorze membros da academia (contando U-Tong) e
todos em coro mandavam aos ares o velho hino: "Glória a nós, que somos o arroz
da ciência e a claridade do mundo!"
A bela Kinnara (antigo Kalaphangko) tinha os olhos esbugalhados de assombro.
Não podia entender como é que quatorze varões reunidos em academia eram a
claridade do mundo, e separadamente uma multidão de camelos. Kalaphangko,
consultado por ela, não achou explicação. Se alguém descobrir alguma, pode
obsequiar uma das mais graciosas damas do Oriente, mandando-lha em carta
fechada, e, para maior segurança, sobrescrita ao nosso cônsul em Xangai, China.FIM