30/06/2018

As vezes o equipamento pode destruir, ou ser destruído

  

 Pensei em começar com o "acordei hoje cedo, me levantei da cama e bla bla bla..." mas hoje decidi poupá-lo da dor de cabeça de ler a ladainha habitual. Estava a discutir com meu amigo Chaguinha: 

  - Olha, vou dizer, se o cara for bom mesmo, não importa o equipamento. Não importa ter a última tecnologia se o cara não sabe usar. - disse Chaguinha.

  - Concordo, mas ter também um equipamento de qualidade inferior pode ser a diferença entre um trabalho bom e um trabalho regular. Isso, admitindo que o profissional que vai fazer o serviço seja excelente, se for um que esteja na média, o equipamento pode destruir todo o projeto. 
 
  - Mas se o cara for bom mesmo, isso não importa não cara, te digo por experiência mesmo.

  Andei a observar mais atentamente sobre o tema. Profissionais de fotografia tirando fotos com qualidade full HD 7D não sei o quê, contra nossos singelos smartphones com memória de 16 gigas e com fotos comprimidas aos máximo. 

  Outro dia fui em um casamento, uma amiga minha fotografa tinha sido contratada para tirar as fotos. A cliente pediu o kit completo, cds com fotos para os convidados, ensaios pré e pós casamento e tudo o mais. Além de uma camiseta estampada com uma foto do casal. 
 Fiquei apreciando as festividades, a missa, os comes-e-bebes e é claro bebi. Percebi que a fotografa tinha que competir não raramente com os flashes dos celulares e maquinas "semi" dos convidados. Apesar de tudo ela conseguiu tirar umas boas quatrocentas fotos na festa do casamento, todas muito bem montadas e com qualidade profissionais. No dia seguinte ela passou as fotos pro editor, que tratou todas as fotos antes que fossem apreciadas pelo casal. 
  Quando chegou o dia de apresentar as fotografias e perguntar aos recém-casados que foto queriam nas camisetas, ela percebeu que o casal não estava dando a mínima atenção aos book que ela trazia. Chegou a hora e ela perguntou:
  - Então, vocês já decidiram qual a foto vai ser colocada nas camisetas?
  - Bem, essas fotos estão muito boas, mas a gente tava olhando aqui no grupo da família e a Ritinha tirou uma na hora exata que as alianças são colocadas e a gente acha que vai essa mesmo. 
  - Olha, mas eu tirei várias fotos do momento em que as alianças são postas, vocês não querem dar uma olhada? Estão logo aqui - disse ela apontando para a página no album. 
  - Bem, ficaram ótimas, mas a gente já falou com a Ritinha, ela é madrinha do casamento e a gente quer a foto que ela fez mesmo. 
 
   Minha amiga engoliu em seco e perguntou onde estava a foto, recebeu por whatsapp a foto que estava na resolução mais baixa possível. Ela contou, que ainda tentou convencê-los que a resolução não estava boa, mas eles estavam convictos em usar a foto da tal Ritinha e assim foi feito. As camisetas ficaram cheias de espaços brancos entre os pixels da foto do celular. Mas, que se pode fazer? No fim ainda iriam culpar a fotografa pela imagem ruim. 

  Mas aí me chega Chaguinha, de novo com o papo de que o equipamento não é essencial e que o que conta mesmo é o profissional. Foi quando o desafiei.
  - Vamos então digitar um livro e vamos ver se você me vence.
  O computador dele era um daqueles do tempo do ronca, com sistema operacional Windows XP e com editor Word 98. 
  Baixamos uma versão digital de Dom Casmurro, e com uma tela aberta no PDF e outra com o editor iriamos digitar a mais celebre obra de Machado de Assis. Umas 200 páginas. 
 Ele tinha um teclado com fio, duro, eu estava com um Microsoft 2000, sem fio e com teclas supermacias, além de contar com um computador atualizado e todos os adereços possíveis para uma boa escrita. 

  Pois bem, começamos a competição. Durante as primeiras páginas, Chaguinha foi até bem, estava na mesma velocidade que eu, talvez até mais rápido. Foi aí que os problemas começaram, o arquivo estava muito pesado para o processador, o programa salvava uma copia de 10 em 10 minutos e a cada salvamento automático o pdf parava de funcionar e ele tinha que abrir novamente o programa. Ficamos nessa, quando terminei de compilar o livro ele ainda estava chegando na página 100. Irado, Chaguinha pegou o teclado e jogou-o ao chão sem qualquer cerimonia. 
















29/06/2018

O Branco, o nulo e as mulas

 Certo, certo, vamos iniciar com a aquele papo superficial  e depois trataremos dos assuntos mais importantes. É certo, que aqueles que acompanham esse malfalado blog têm se perguntado porquê cargas d'aguas tem tantas postagens de outros autores. A explicação é simples, para que o mestre GOOGLE, assimile melhor qualquer site e o inclua nas pesquisas é necessário ter muitas palavras-chave (ou keywords) dentro das postagens. Pensando nisso, Chaguinha me aconselhou a postar conteúdos extensos de outros autores. Admiti a possibilidade, claramente consternado pelo fato de eu mesmo não ter disponibilidade temporal para criar os tais textos com as keywords. Assim, assimilei diversas crônicas de mestres na arte de escrever. 



  Desculpem-me as digressões, mas também acho de bom tom, esclarecer aos dois leitores que terão a honra de ver essas palavras: há um bom tempo não escrevo, estou, como se pode dizer, enferrujado, inclusive meus dedos estão começando a doer e creio que não devo passar de 200 caracteres por segundo nesse teclado que é até rasoavel. 
 
 A crônica diária deve ser postulada em termos noticiosos, aquele artigo, matéria ou editoral, devem servir de base para o cronista desvincilhar-se no enlameado e difuso labirinto das palavras. A crônica diária é necessariamente temporal, não consegue distanciar-se do cronus do jornal. O tique-taque das notícias definem o traque-traque da crônica. É bem-vindo e por vezes exigido algum tipo de personalidade própria por parte do autor, um cachorro falante, um espírito desgarrado, ou no meu caso, um amigo malandro. Os elementos pessoais do autor entram na crônica e contracenam com a notícia de forma a aproximar o leitor e o cronista. 
   
 Em uma crônica diária não cairia bem um parágrafo tão grande quanto o de cima. E este, que faz parte do outro, sequer deveria ter caído para outra linha, mas novamente meu amigo Chaguinha me vem e diz que a estética é a alma de qualquer texto nos dias de hoje.  Outrora eu resmungaria e diria que ele estava doido, dizer que um texto vale pela ordem de suas linhas e paragrafos, se lá fosse um poema até ainda ia, mas não um texto em prosa. Hoje eu me atento para o fato que os mais jovens não tem o hábito de leitura. 

  Taí um outro tema que pode ser proposto aqui é que o bom escritor, nos dias de hoje tem que ser um roteirista, subsistirão á propagada pos-modernidade somente aqueles que souberem adaptarem seus textos para objetos audiovisuais. Novamente me pego divagando, mas desculpem-me, estou sem ter com quem conversar por algum tempo. Estive com a maleita, febre alta, dores no corpo e etc. Chaguinha veio até minha casa fazer visitas, mas sempre com o porre que lhe é habitual sequer pude conversar sobre meus assuntos. 

  Que dizia?
 
 Ah sim meu douto leitor. Nesse momento deves estar a praguejar, a dizer que perdeu minutos de sua vida lendo esse texto, que o título não tem nada a ver com o texto, que existem milhares de regras ortografico-gramaticais que foram defloradas por esse pacato cronista. Ademais, com alguma atenção deve ter percebido que não terminei o paragrafo no qual falava sobre o "cronista diário", carece dizer que, como não tenho a exigencia de ser um cronista diário, a falta da notícia quente, faz com que o texto pareça diário de adolescente muito mais que uma crônica, esse tão importante texto jornalístico tão pouco explorado nos dias de hoje. 

    Agora vou com tudo:;
   
   Acordei umas cinco da manhã, fiz minhas atividades corriqueiras e retirei o celular da tomada, verifiquei que tinham algumas mensagens em alguns grupos de whatsapp. Algo que me surpreendeu foi uma mensagem dita "URGENTE", o texto dizia que se a quantidade de brancos, nulos e abstenções fossem maior que a quantidade de votos válidos a eleição seria anulada e que os candidatos que concorressem no primeiro pleito não poderiam concorrer em nova disputa. Obviamente não sou dado a levar em consideração esse tipo de coisa. Ocorre que no dia 23 de junho, um dia antes da eleição, me chega o Chaguinha:

 - Cara, parece que vão anular a eleição hein. 
 - O quê? Por quê? 
 - Uai, você não ficou sabendo, vou te mandar. 
 
  E assim eu recebi pela décima vez a mensagem sobre a anulação das eleições. Cabe dizer que tivemos eleições complementares aqui no Tocantins, estamos escrevendo do Tocantins para você que ainda não sabe. Enfim, a norma culta exigiria que eu postulasse os pormenores das eleições complementares no estado, mas dane-se ela hoje, estou com muito sono para ficar pesquisando. Além do que, basta que o pacato e letrado leitor faça sua própria pesquisa.

  Então, dia 24, surpreendendo todos os nobres propagadores das ditas "fakenews" a quantidade de votos válidos foi inferior a dos brancos, nulos e abstenções. E pasmem, a eleição não foi cancelada. Aliás, a eleição serviu para que se gastassem dinheiro dos eleitores, para financiar uma eleição que acabou por deixar o interino (que já estava no cargo de governador) no mesmo lugar que ele sempre esteve. Ou seja, gastou-se o dinheiro do contribuinte na eleição, dos partidos (que também vem de nossa toba) e dos candidatos, gastou-se o tempo de TV com propaganda eleitoral "gratuita" e no fim, acabou que o governador continuou o mesmo que teria sido sem nenhuma eleição. 

 Eira Tocantins vei bruto. E fiquemos de olho que aparentemente o interino que virou governador pode ser cassado ainda. Esperemos para ver, pior é ter que engolir as notícias em rede nacional que falam sempre "do estado DE Tocantins" , por amor de um cacete meus amigos, falem, escrevam e propaguem que é o estado DO Tocantins. Muito obrigado.. 

 
  
  













  
 



25/06/2018

Cinco Minutos, José de Alencar


***************
A D...
I
É uma história curiosa a que lhe vou contar, minha prima. Mas é uma história, e não um
romance.
Há mais de dois anos, seriam seis horas da tarde, dirigi-me ao Rocio para tomar o
ônibus de Andaraí.
Sabe que sou o homem o menos pontual que há neste mundo; entre os meus imensos
defeitos e as minhas poucas qualidades, não conto a pontualidade, essa virtude dos reis,
e esse mau costume dos ingleses.
Entusiasta da liberdade, não posso admitir de modo algum que um homem se escravize
ao seu relógio e regule as suas ações pelo movimento de uma pequena agulha de aço ou
pelas oscilações de uma pêndula.
Tudo isto quer dizer que, chegando ao Rocio, não vi mais ônibus algum; o empregado a
quem me dirigi respondeu :
- Partiu há cinco minutos.
Resignei-me, e esperei pelo ônibus de sete horas.
Anoiteceu.
Fazia uma noite de inverno fresca e úmida; o céu estava calmo, mas sem estrelas.
À hora marcada chegou o ônibus, e apressei-me a ir tomar o meu lugar.
Procurei, como costumo, o fundo do carro, a fim de ficar livre das conversas
monótonas dos recebedores, que de ordinário têm sempre uma anedota insípida a contar,
ou uma queixa a fazer sobre o mau estado dos caminhos.
O canto já estava ocupado por um monte de sedas, que deixou escapar-se um ligeiro
farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar.
Sentei-me; prefiro sempre o contato da seda à vizinhança da casimira ou do pano.
O meu primeiro cuidado foi ver se conseguia descobrir o rosto e as formas que se
escondiam nessas nuvens de seda e de rendas.
Era impossível.
Além da noite estar escura, um maldito véu que caía de um chapeuzinho de
palha não me deixava a menor esperança.
Resignei-me, e assentei que o melhor era cuidar de outra coisa.

Já o meu pensamento tinha-se lançado a galope pelo mundo da fantasia, quando
de repente fui obrigado a voltar por uma circunstância bem simples.
Senti no meu braço o contato suave de um outro braço, que me parecia macio e
aveludado como uma folha de rosa.
Quis recuar, mas não tive ânimo; deixei-me ficar na mesma posição, e cismei
que estava sentado perto de uma mulher que me amava e que se apoiava sobre mim.
Pouco e pouco fui cedendo àquela atração irresistível e reclinando-me insensivelmente;
a pressão tornou-se mais forte; senti o seu ombro tocar de leve o meu peito; e a minha
mão impaciente encontrou uma mãozinha delicada e mimosa, que se deixou apertar a
medo.
Assim, fascinado ao mesmo tempo pela minha ilusão e por este contato voluptuoso,
esqueci-me, a ponto que, sem saber o que fazia, inclinei a cabeça e colei os meus lábios
ardentes nesse ombro, que estremecia de emoção.
Ela soltou um grito, que foi tomado naturalmente como susto causado pelos solavancos
do ônibus, e refugiou-se no canto.
Meio arrependido do que tinha feito, voltei-me como para olhar pela portinhola do
carro, e, aproximando-me dela, disse-lhe quase ao ouvido:
- Perdão!
Não respondeu; conchegou-se ainda mais ao canto.
Tomei uma resolução heróica.
- Vou descer, não a incomodarei mais.
Ditas estas palavras rapidamente, de modo que só ela ouvisse, inclinei-me para mandar
parar.
Mas senti outra vez a sua mãozinha, que apertava docemente a minha, como para
impedir-me de sair.
Está entendido que não resisti, e que me deixei ficar; ela conservava-se sempre longe de
mim, mas tinha-me abandonado a mão, que eu beijava respeitosamente.
De repente veio-me uma idéia. Se fosse feia! se fosse velha! se fosse uma e outra coisa!
Fiquei frio, e comecei a refletir.
Esta mulher, que sem me conhecer me permitia o que só se permite ao homem que se
ama, não podia deixar com efeito de ser feia e muito feia.
Não lhe sendo fácil achar um namorado de dia, ao menos agarrava-se a este, que
de noite e às cegas lhe proporcionara o acaso.
É verdade que essa mão delicada, essa espádua aveludada... Ilusão! Era a
disposição em que eu estava!
A imaginação é capaz de maiores esforços ainda.
Nesta marcha, o meu espírito em alguns instantes tinha chegado a uma convicção
inabalável sobre a fealdade de minha vizinha.
Para adquirir a certeza renovei o exame que tentara a princípio: porém, ainda desta
vez, foi baldado; estava tão bem envolvida no seu mantelete e no seu véu, que nem um
traço do rosto traía o seu incógnito.
Mais uma prova! Uma mulher bonita deixa-se admirar, e não se esconde como uma
pérola dentro da sua ostra.
Decididamente era feia, enormemente feia!
Nisto ela fez um movimento entreabrindo o seu mantelete, e um bafejo suave de aroma
de sândalo exalou-se.
Aspirei voluptuosamente essa onda de perfume, que se infiltrou em minha alma como
um eflúvio celeste.
Não se admire, minha prima; tenho uma teoria a respeito dos perfumes.

A mulher é uma flor que se estuda, como a flor do campo, pelas suas cores, pelas suas
folhas e sobretudo pelo seu perfume.
Dada a cor predileta de uma mulher desconhecida, o seu modo de trajar e o seu perfume
favorito, vou descobrir com a mesma exatidão de um problema algébrico se ela é bonita
ou feia.
De todos estes indícios, porém, o mais seguro é o perfume; e isto por um segredo da
natureza, por uma lei misteriosa da criação, que não sei explicar.
Por que é que Deus deu o aroma mais delicado à rosa, ao heliótropo, à violeta, ao
jasmim, e não a essas flores sem graça e sem beleza, que só servem para realçar as suas
irmãs?
É decerto por esta mesma razão que Deus só dá à mulher linda esse tato delicado e sutil,
esse gosto apurado, que sabe distinguir o aroma o mais perfeito.
Já vê, minha prima, porque esse odor de sândalo foi para mim como uma revelação.
Só uma mulher distinta, uma mulher de sentimento, sabe compreender toda a poesia
desse perfume oriental, desse hatchiss do olfato, que nos embala nos sonhos brilhantes
das Mil e uma Noites, que nos fala da Índia, da China, da Pérsia, dos esplendores da
Ásia e dos mistérios do berço do sol.
O sândalo é o perfume das odaliscas de Stambul e das huris do profeta; como as
borboletas que se alimentam de mel, a mulher do Oriente vive com as gotas dessa
essência divina.
Seu berço é de sândalo; seus colares, suas pulseiras, o seu leque, são de sândalo; e,
quando a morte vem quebrar o fio dessa existência feliz, é ainda em uma urna de
sândalo que o amor guarda as suas cinzas queridas.
Tudo isto passou-me pelo pensamento como um sonho, enquanto eu aspirava
ardentemente essa exalação fascinadora, que foi a pouco e pouco se desvanecendo.
Era bela!
Tinha toda a certeza; desta vez era uma convicção profunda e inabalável.
Com efeito, uma mulher de distinção, uma mulher de alma elevada, se fosse feia, não
dava sua mão a beijar a um homem que podia repeli-la quando a conhecesse; não se
expunha ao escárnio e ao desprezo.
Era bela!
Mas não a podia ver, por mais esforços que fizesse.
O ônibus parou; uma outra senhora ergueu-se e saiu.
Senti a sua mão apertar a minha mais estreitamente; vi uma sombra passar diante de
meus olhos no meio do ruge-ruge de um vestido, e quando dei acordo de mim, o carro
rodava e eu tinha perdido a minha visão.
Ressoava-me ainda ao ouvido uma palavra murmurada, ou antes suspirada quase
imperceptivelmente:
- Non ti scordar di me!...
Lancei-me fora do ônibus; caminhei à direita e à esquerda; andei como um louco até
nove horas da noite.
Nada!
II
Quinze dias se passaram depois de minha aventura.
Durante este tempo é escusado dizer-lhe as extravagâncias que fiz.

Fui todos os dias a Andaraí no ônibus das sete horas, para ver se encontrava a minha
desconhecida; indaguei de todos os passageiros se a conheciam, e não obtive a menor
informação.
Estava a braços com uma paixão, minha prima, e com uma paixão de primeira força e
de alta pressão, capaz de fazer vinte milhas por hora.
Quando saía, não via ao longe um vestido de seda preta e um chapéu de palha que não
lhe desse caça, até fazê-lo chegar à abordagem.
No fim descobria alguma velha ou alguma costureira desjeitosa, e continuava
tristemente o meu caminho, atrás dessa sombra impalpável, que eu procurava havia
quinze longos dias, isto é, um século para o pensamento de um amante.
Um dia estava em um baile, triste e pensativo, como um homem que ama uma mulher e
que não conhece a mulher que ama.
Recostei-me a uma porta, e daí via passar diante de mim uma miríade brilhante e
esplêndida, pedindo a todos aqueles rostos indiferentes um olhar, um sorriso, que me
desse a conhecer aquela que eu procurava.
Assim preocupado, quase não dava fé do que se passava junto de mim, quando senti um
leque tocar meu braço, e uma voz que vivia no meu coração, uma voz que cantava
dentro de minha alma, murmurou :
- Non ti scordar di me!...
Voltei-me.
Corri um olhar pelas pessoas que estavam junto de mim, e apenas vi uma velha que
passeava pelo braço de seu cavalheiro, abanando-se com um leque.
- Será ela, meu Deus? pensei eu horrorizado.
E, por mais que fizesse, os meus olhos não se podiam destacar daquele rosto cheio de
rugas.
A velha tinha uma expressão de bondade e de sentimento que devia atrair a simpatia;
mas naquele momento essa beleza moral, que iluminava aquela fisionomia inteligente,
pareceu-me horrível e até repugnante.
Amar quinze dias uma sombra, sonhá-la bela como um anjo, e por fim encontrar uma
velha de cabelos brancos, uma velha coquette e namoradeira!
Não, era impossível! Naturalmente a minha desconhecida tinha fugido antes que eu
tivesse tempo de vê-la.
Essa esperança consolou-me; mas durou apenas um segundo.
A velha falou, e na sua voz eu reconheci, apesar de tudo, apesar de mim mesmo, o
timbre doce e aveludado que ouvira duas vezes.
Em face da evidência não havia mais que duvidar. Eu tinha amado uma velha, tinha
beijado a sua mão enrugada com delírio, tinha vivido quinze dias de sua lembrança.
Era para fazer-me enlouquecer ou rir; não me ri nem enlouqueci, mas fiquei com um tal
tédio e um aborrecimento de mim mesmo que não posso exprimir.
Que peripécias, que lances, porém, não me reservava ainda esse drama, tão simples e
obscuro!
Não distingui as primeiras palavras da velha logo que ouvi a sua voz; foi só passado o
primeiro espanto que percebi o que dizia.
- Ela não gosta de bailes.
- Pois admira, replicou o cavalheiro; na sua idade!
- Que quer! não acha prazer nestas festas ruidosas, e nisto mostra bem que é minha
filha.
A velha tinha uma filha, e isto podia explicar a semelhança extraordinária da voz.
Agarrei-me a esta sombra, como um homem que caminha no escuro.

Resolvi-me a seguir a velha toda a noite, até que ela se encontrasse com sua filha; desde
este momento era o meu fanal, a minha estrela polar.
A senhora e o seu cavalheiro entraram na saleta da escada. Separado dela um instante
pela multidão, ia segui-la.
Nisto ouço uma voz alegre dizer da saleta:
- Vamos, mamã!
Corri, e apenas tive tempo de perceber os folhos de um vestido preto, envolto num largo
burnous de seda branca, que desapareceu ligeiramente na escada.
Atravessei a saleta tão depressa como me permitiu a multidão, e, pisando calos, dando
encontrões à direita e à esquerda, cheguei enfim à porta da saída.
O meu vestido preto sumiu-se pela portinhola de um cupê, que partiu a trote largo.
Voltei ao baile desanimado; a minha única esperança era a velha; por ela podia tomar
informações, saber quem era a minha desconhecida, indagar o seu nome e a sua morada,
acabar enfim com este enigma, que me matava de emoções violentas e contrárias.
Indaguei dela.
Mas como era possível designar uma velha da qual eu só sabia pouco mais ou menos a
idade?
Todos os meus amigos tinham visto muitas velhas, porém não tinham olhado para elas.
Retirei-me triste e abatido, como um homem que se vê em luta contra o impossível.
De duas vezes que a minha visão me tinha aparecido, só me restavam uma lembrança,
um perfume e uma palavra!
Nem sequer um nome!
A todo momento parecia-me ouvir na brisa da noite essa frase do Trovador, tão cheia
de melancolia e de sentimento, que resumia para mim toda uma história.
Desde então não se representava uma só vez esta ópera que eu não fosse ao teatro, ao
menos para ter o prazer de ouvi-la repetir.
A princípio, por uma intuição natural, julguei que ela devia, como eu, admirar essa
sublime harmonia de Verdi, que devia também ir sempre ao teatro.
O meu binóculo examinava todos os camarotes com uma atenção meticulosa; via moças
bonitas ou feias, mas nenhuma delas me fazia palpitar o coração.
Entrando uma vez no teatro e passando a minha revista costumada, descobri finalmente
na terceira ordem sua mãe, a minha estrela, o fio de Ariadne que me podia guiar neste
labirinto de dúvidas.
A velha estava só na frente do camarote, e de vez em quando voltava-se para trocar uma
palavra com alguém sentado no fundo.
Senti uma alegria inefável.
O camarote próximo estava vazio; perdi quase todo o espetáculo a procurar o cambista
incumbido de vendê-lo. Por fim achei-o, e subi de um pulo as três escadas.
O coração queria saltar-me quando abri a porta do camarote e entrei.
Não me tinha enganado; junto da velha vi um chapeuzinho de palha com um véu preto
rocegado, que não me deixava ver o rosto da pessoa a quem pertencia.
Mas eu tinha adivinhado que era ela; e sentia um prazer indefinível em olhar aquelas
rendas e fitas, que me impediam de conhecê-la, mas que ao menos lhe pertenciam.
Uma das fitas do chapéu tinha caído do lado do meu camarote, e, em risco de ser visto,
não pude suster-me e beijei-a a furto.
Representava-se a Traviata, e era o último ato; o espetáculo ia acabar, e eu ficaria no
mesmo estado de incerteza.
Arrastei as cadeiras do camarote, tossi, deixei cair o binóculo, fiz um barulho
insuportável, para ver se ela voltava o rosto.

A platéia pediu silêncio; todos os olhos procuraram conhecer a causa do rumor; porém
ela não se moveu; com a cabeça meio inclinada sobre a coluna, em uma lânguida
inflexão, parecia toda entregue ao encanto da música.
Tomei um partido.
Encostei-me à mesma coluna, e em voz baixa balbuciei estas palavras:
- Não me esqueço!
Estremeceu, e, baixando rapidamente o véu, conchegou ainda mais o largo burnous de
cetim branco.
Cuidei que ia voltar-se, mas enganei-me; esperei muito tempo, e debalde.
Tive então um movimento de despeito e quase de raiva; depois de um mês que eu
amava sem esperança, que eu guardava a maior fidelidade à sua sombra, ela me recebia
friamente.
Revoltei-me.
- Compreendo agora, disse eu em voz baixa e como falando a um amigo que estivesse a
meu lado, compreendo por que ela me foge, por que conserva esse mistério; tudo isto
não passa de uma zombaria cruel, de uma comédia, em que eu faço o papel de amante
ridículo. Realmente é uma lembrança engenhosa! Lançar em um coração o germe de um
amor profundo; alimentá-lo de tempos a tempos com uma palavra, excitar a imaginação
pelo mistério; e depois, quando esse namorado de uma sombra, de um sonho, de uma
ilusão, passear pelo salão a sua figura triste e abatida, mostrá-lo a suas amigas como
uma vítima imolada aos seus caprichos, e escarnecer do louco! É espirituoso! O orgulho
da mais vaidosa mulher deve ficar satisfeito!
Enquanto eu proferia estas palavras, repassadas de todo o fel que tinha no
coração, a Charton modulava com a sua voz sentimental essa linda ária final da
Traviata, interrompida por ligeiros acessos de uma tosse seca.
Ela tinha curvado a cabeça e não sei se ouvia o que eu lhe dizia ou o que a Charton
cantava; de vez em quando as suas espáduas se agitavam com um tremor convulsivo,
que eu tomei injustamente por um movimento de impaciência.
O espetáculo terminou, as pessoas do camarote saíram, e ela, levantando sobre o chapéu
o capuz de seu manto, acompanhou-as lentamente.
Depois, fingindo que se tinha esquecido de alguma coisa, tornou a entrar no camarote, e
estendeu-me a mão.
- Não saberá nunca o que me fez sofrer, disse-me com a voz trêmula.
Não pude ver-lhe o rosto; fugiu, deixando-me o seu lenço impregnado desse mesmo
perfume de sândalo e todo molhado de lágrimas ainda quentes.
Quis segui-la; mas ela fez um gesto tão suplicante que não tive ânimo de desobedecerlhe.
Estava como dantes; não a conhecia, não sabia nada a seu respeito; porém ao menos
possuía alguma coisa dela; o seu lenço era para mim uma relíquia sagrada.
Mas as lágrimas? Aquele sofrimento de que ela falava? O que queria dizer tudo isto?
Não compreendia; se eu tinha sido injusto, era uma razão para não continuar a esconderse de mim. Que queria dizer este mistério, que parecia obrigada a conservar?
Todas estas perguntas e as conjeturas a que elas davam lugar não me deixaram dormir.
Passei uma noite de vigília a fazer suposições, cada qual mais desarrazoada.

III
Recolhendo-me no dia seguinte, achei em casa uma carta.
Antes de abri-la conheci que era dela, porque lhe tinha imprimido esse suave perfume
que a cercava como uma auréola.
Eis o que dizia :
"Julga mal de mim, meu amigo; nenhuma mulher pode escarnecer de um nobre coração
como o seu.
"Se me oculto, se fujo, é porque há uma fatalidade que a isto me obriga. E só Deus sabe
quanto me custa este sacrifício, porque o amo!
"Mas não devo ser egoísta e trocar sua felicidade por um amor desgraçado.
"Esqueça-me.
"C."
Reli não sei quantas vezes esta carta, e, apesar da delicadeza de sentimento que parecia
ter ditado suas palavras, o que para mim se tornava bem claro é que ela continuava a
fugir-me.
Essa assinatura era a mesma letra que marcava o seu lenço, e à qual eu desde a
véspera pedia debalde um nome!
Fosse qual fosse esse motivo que ela chamava uma fatalidade, e que eu supunha ser
apenas escrúpulo, senão uma zombaria, o melhor era aceitar o seu conselho e fazer por
esquecê-la.
Refleti então friamente sobre a extravagância da minha paixão, e assentei que com
efeito precisava tomar uma resolução decidida.
Não era possível que continuasse a correr atrás de um fantasma que se esvaecia quando
ia tocá-lo.
Aos grandes males os grandes remédios, como diz Hipócrates. Resolvi fazer uma
viagem.
. Mandei selar o meu cavalo, meti alguma roupa em um saco de viagem,
embrulhei-me no meu capote e saí, sem me importar com a manhã de chuva que fazia.
Não sabia para onde iria. O meu cavalo levou-me para o Engenho Velho, e eu daí me
encaminhei-me para a Tijuca, onde cheguei ao meio-dia todo molhado e fatigado pelos
maus caminhos.
Se algum dia se apaixonar, minha prima, aconselho-lhe as viagens como um remédio
soberano e talvez o único eficaz.
Deram-me um excelente almoço no hotel; fumei um charuto, e dormi doze horas, sem
ter um sonho, sem mudar de lugar.
Quando acordei, o dia despontava sobre as montanhas da Tijuca.
Uma bela manhã, fresca e rociada das gotas de orvalho, desdobrava o seu manto de
azul por entre a cerração, que se desvanecia aos raios do sol.
O aspecto desta natureza quase virgem, esse céu brilhante, essa luz esplêndida caindo
em cascatas de ouro sobre as encostas dos rochedos, serenou-me completamente o
espírito.
Fiquei alegre, o que há muito tempo não me sucedia.
O meu hóspede, um inglês franco e cavalheiro, convidou-me para acompanhá-lo à caça;
gastamos todo o dia a correr atrás de duas ou três marrecas e a bater as margens da
Restinga.

Assim passei nove dias na Tijuca, vivendo uma vida estúpida quanto pode ser:
dormindo, caçando e jogando bilhar.
Na tarde do décimo dia, quando já me supunha perfeitamente curado e estava
contemplando o sol, que se escondia por detrás dos montes, e a lua, que derramava no
espaço a sua luz doce e acetinada, fiquei triste de repente.
Não sei que caminho tomaram as minhas idéias; o caso é que daí a pouco descia a
serra no meu cavalo, lamentando esses nove dias, que talvez me tivessem feito perder
para sempre a minha desconhecida.
Acusava-me de infidelidade, de traição; a minha fatuidade dizia-me que eu devia ao
menos ter-lhe dado o prazer de ver-me.
Que importava que ela me ordenasse que a esquecesse? Não me tinha confessado que
me amava, e não devia eu resistir e vencer essa fatalidade, contra a qual ela, fraca
mulher, não podia lutar?
Tinha vergonha de mim mesmo; achava-me egoísta, cobarde, irrefletido, e revoltavame contra tudo, contra o meu cavalo que me levara à Tijuca, e o meu hóspede, cuja
amabilidade ali me havia demorado.
Com esta disposição de espírito cheguei à cidade, mudei de traje, e ia sair, quando o
meu moleque me deu uma carta.
Era dela.
Causou-me uma surpresa misturada de alegria e de remorso:
"Meu amigo.
"Sinto-me com coragem de sacrificar o meu amor à sua felicidade; mas ao menos deixeme o consolo de amá-lo.
"Há dois dias que espero debalde vê-lo passar, e acompanhá-lo de longe com um olhar!
Não me queixo; não sabe nem deve saber em que ponto de seu caminho o som de seus
passos faz palpitar um coração amigo.
"Parto hoje para Petrópolis, donde voltarei breve; não lhe peço que me acompanhe,
porque devo ser-lhe sempre uma desconhecida, uma sombra escura que passou um dia
pelos sonhos dourados de sua vida.
"Entretanto eu desejava vê-lo ainda uma vez, apertar a sua mão e dizer-lhe adeus para
sempre.
"C."
A carta tinha a data de 3; nós estávamos a 10; havia oito dias que ela partira para
Petrópolis e que me esperava.
No dia seguinte embarquei na Prainha e fiz essa viagem da baía, tão pitoresca, tão
agradável, e ainda tão pouco apreciada.
Mas então a majestade dessas montanhas de granito, a poesia desse vasto seio de mar,
sempre alisado como um espelho, os grupos de ilhotas graciosas que bordam a baía,
nada disto me preocupava.
Só tinha uma idéia... chegar; e o vapor caminhava menos rápido do que meu
pensamento.
Durante a viagem pensava nessa circunstância que a sua carta me revelara, e fazia-me
por lembrar de todas as ruas por onde costumava passar, para ver se adivinhava aquela
onde ela morava, e donde todos os dias me via sem que eu suspeitasse.
Para um homem como eu, que andava todo o dia desde a manhã até a noite, a ponto de
merecer que a senhora, minha prima, me apelidasse de Judeu Errante, este trabalho era
improfícuo.
Quando cheguei a Petrópolis, eram cinco horas da tarde; estava quase noite.

Entrei nesse hotel suíço, ao qual nunca mais voltei, e enquanto me serviam um magro
jantar, que era o meu almoço, tomei informações.
- Têm subido estes dias muitas famílias? perguntei eu ao criado.
- Não, senhor.
- Mas há coisa de oito dias não vieram da cidade duas senhoras?
- Não estou certo.
- Pois indague, que preciso saber e já ; isto... o ajudará a obter informações.
A fisionomia sisuda do criado expandiu-se ao tinir da moeda, e a língua adquiriu a sua
elasticidade natural.
- Talvez o senhor queira falar de uma senhora já idosa que veio acompanhada de sua
filha?
- É isso mesmo.
- A moça parece-me doente; nunca a vejo sair.
- Onde está morando?
- Aqui perto, na rua de...
- Não conheço as ruas de Petrópolis; o melhor é acompanhar-me e vir mostrar-me a
casa.
- Sim, senhor.
O criado seguiu-me, e tomamos por uma das ruas agrestes da cidade alemã.
IV
A noite estava escura.
Era uma dessas noites de Petrópolis, envoltas em nevoeiro e cerração.
Caminhávamos mais pelo tato do que pela vista, dificilmente distinguíamos os objetos a
uma pequena distância; e muitas vezes, quando o meu guia se apressava, o seu vulto
perdia-se nas trevas.
Em alguns minutos chegamos em face de um pequeno edifício construído a alguns
passos do alinhamento, e cujas janelas estavam esclarecidas por uma luz interior.
- É ali.
- Obrigado.
O criado voltou, e eu fiquei junto dessa casa, sem saber o que ia fazer.
A idéia de que estava perto dela, que via a luz que a esclarecia, que tocava a relva que
ela pisara, fazia-me feliz.
É coisa singular, minha prima! O amor que é insaciável e exigente, e não se satisfaz
com tudo quanto uma mulher pode dar, que deseja o impossível, às vezes contenta-se
com um simples gozo d'alma, com uma dessas emoções delicadas, com um desses
nadas, dos quais o coração faz um mundo novo e desconhecido.
Não pense, porém, que eu fui a Petrópolis só para contemplar com enlevo as janelas de
um chalé; não; ao passo que sentia esse prazer, refletia no meio de vê-la e de falar-lhe.
Mas como?...
Se soubesse todos os expedientes, cada qual mais extravagante, que inventou a minha
imaginação! Se visse a elaboração tenaz a que se entregava o meu espírito para
descobrir um meio de dizer-lhe que eu estava ali e a esperava!
Por fim achei um; se não era o melhor, era o mais pronto.

Desde que chegara, tinha ouvido uns prelúdios de piano, mas tão débeis que pareciam
antes tirados por uma mão distraída que roçava o teclado, do que por uma pessoa que
tocasse.
Isto me fez lembrar que ao meu amor se prendia a recordação de uma bela música de
Verdi; e foi quanto bastou.
Cantei, minha prima, ou antes assassinei aquela linda romanza; os que me ouvissem
tomar-me-iam por algum furioso; mas ela me compreenderia.
E de fato, quando eu acabei de estropiar esse trecho magnífico de harmonia e
sentimento, o piano, que havia emudecido, soltou um trilo brilhante e sonoro, que
acordou os ecos adormecidos no silêncio da noite.
Depois daquela cascata de sons majestosos, que se precipitavam em ondas de harmonia
do seio daquele turbilhão de notas que se cruzavam, deslizou plangente, suave e
melancólica uma voz que sentia e palpitava, exprimindo todo o amor que respira a
melodia sublime de Verdi.
Era ela que cantava!
Oh! não posso pintar-lhe, minha prima, a expressão profundamente triste, a angústia de
que ela repassou aquela frase de despedida:
Non ti scordar di me.
Addio!...
Partia-me a alma.
Apenas acabou de cantar, vi desenhar-se uma sombra em uma das janelas; saltei a grade
do jardim; mas as venezianas descidas não me permitiam ver o que se passava na sala.
Sentei-me sobre uma pedra e esperei.
Não se ria, D...; estava resolvido a passar ali a noite ao relento, olhando para aquela
casa, e alimentando a esperança de que ela viria ao menos com uma palavra compensar
o meu sacrifício.
Não me enganei.
Havia meia hora que a luz da sala tinha desaparecido e que toda a casa parecia dormir,
quando se abriu uma das portas do jardim, e eu vi ou antes pressenti a sua sombra na
sala.
Recebeu-me com surpresa, sem temor, naturalmente, e como se eu fosse seu irmão ou
seu marido. É porque o amor puro tem bastante delicadeza e bastante confiança para
dis- pensar o falso pejo, o pudor de convenção de que às vezes costumam cercá-
lo.
- Eu sabia que sempre havias de vir, disse-me ela.
- Oh! não me culpes! se soubesses!
- Eu culpar-te? Quando mesmo não viesses, não tinha o direito de queixar-me.
- Porque não me amas!
- Pensas isto? disse-me com uma voz cheia de lágrimas.
- Não! não!... Perdoa!
- Perdôo-te, meu amigo, como já te perdoei uma vez; julgas que te fujo, que me
oculto de ti, porque não te amo, e entretanto não sabes que a maior felicidade para mim
seria poder dar-te a minha vida.
- Mas então por que esse mistério?
- Esse mistério, bem sabes, não é uma coisa criada por mim, e sim pelo acaso; se o
conservo, é porque, meu amigo..., tu não me deves amar.
- Não te devo amar! Mas eu amo-te!...

Ela recostou a cabeça ao meu ombro, e eu senti uma lágrima cair sobre meu seio.
Estava tão perturbado, tão comovido dessa situação incompreensível, que me
senti vacilar, e deixei-me cair sobre o sofá.
Ela sentou-se junto de mim; e, tomando-me as duas mãos, disse-me um pouco mais
calma:
- Tu dizes que me amas!
- Juro-te!
- Não te iludes talvez?
- Se a vida não é uma ilusão, respondi, penso que não, porque a minha vida agora és
tu, ou antes a tua sombra.
- Muitas vezes toma-se um capricho por amor; tu não conheces de mim, como dizes,
senão a minha sombra!...
- Que me importa?...
- E se eu fosse feia? disse ela rindo.
- Tu és bela como um anjo! Tenho toda a certeza.
- Quem sabe?
- Pois bem; convence-me, disse eu, passando-lhe o braço pela cintura e procurando
levá-la para uma sala vizinha, donde filtravam os raios de uma luz.
Ela desprendeu-se do meu braço.
A sua voz tornou-se grave e triste.
- Escuta, meu amigo; falemos seriamente. Tu dizes que me amas; eu o creio, eu o sabia
antes mesmo que me dissesses. As almas como as nossas quando se encontram, se reconhecem e se compreendem. Mas ainda é tempo; não julgas que mais vale conservar
uma doce recordação do que entregar-se a um amor sem esperança e sem futuro?...
- Não, mil vezes não! Não entendo o que queres dizer; o meu amor, o meu, não precisa
de futuro e de esperança, porque o tem em si, porque viverá sempre!...
- Eis o que eu temia; e entretanto eu sabia que assim havia de acontecer; quando se tem
a tua alma, ama-se uma só vez.
- Então por que exiges de mim um sacrifício que sabes ser impossível?
- Porque, disse ela com exaltação, porque, se há uma felicidade indefinível em duas
almas que ligam sua vida, que se confundem na mesma existência, que só têm um
passado e um futuro para ambas, que desde a flor da idade até à velhice caminham
juntas para o mesmo horizonte, partilhando os seus prazeres e as suas mágoas, revendose uma na outra até o mo- mento em que batem as asas e vão abrigar-se no seio de
Deus, deve ser cruel, bem cruel, meu amigo, quando, tendo-se apenas encontrado, uma
dessas duas almas irmãs fugir deste mundo, e a outra, viúva e triste, for condenada a
levar sempre no seu seio uma idéia de morte, a trazer essa recordação, que, como um
crepe de luto, envolverá a sua bela mocidade, a fazer do seu coração, cheio de vida e de
amor, um túmulo para guardar as cinzas do passado! Oh! deve ser horrível!...
A exaltação com que falava tinha-se tornado uma espécie de delírio; sua voz, sempre
tão doce e aveludada, parecia alquebrada pelo cansaço da respiração.
Ela caiu sobre o meu seio, agitando-se convulsivamente em um acesso de tosse.
V
Assim ficamos muito
tempo imóveis, ela, com a fronte apoiada sobre o meu peito, eu,
sob a impressão triste de suas palavras.

Por fim ergueu a cabeça; e, recobrando a sua serenidade, disse-me com um tom doce e
melancólico:
- Não pensas que melhor é esquecer do que amar assim?
- Não! Amar, sentir-se amado, é sempre um gozo imenso e um grande consolo para a
desgraça. O que é triste, o que é cruel, não é essa viuvez da alma separada de sua irmã,
não; aí há um sentimento que vive, apesar da morte, apesar do tempo. É, sim, esse
vácuo do coração que não tem uma afeição no mundo, e que passa como um estranho
por entre os prazeres que o cercam.
- Que santo amor, meu Deus! Era assim que eu sonhava ser amada!...
- E me pedias que te esquecesse!...
- Não! não! Ama-me; quero que me ames, ao menos...
- Não me fugirás mais?
- Não.
- E me deixarás ver aquela que eu amo, e que não conheço? perguntei sorrindo.
- Desejas?
- Suplico-te!
- Não sou eu tua?...
Lancei-me para a saleta onde havia luz, e coloquei o lampião sobre a mesa do
gabinete em que estávamos.
Para mim, minha prima, era um momento solene; toda essa paixão violenta,
incompreensível, todo esse amor ardente por um vulto de mulher, ia depender talvez de
um olhar.
E tinha medo de ver esvaecer-se, como um fantasma em face da realidade, essa visão
poética de minha imaginação, essa criação que resumia todos os tipos.
Foi, portanto, com uma emoção extraordinária que, depois de colocar a luz, voltei-me.
Ah!...
Eu sabia que era bela; mas a minha imaginação apenas tinha esboçado o que Deus
criara.
Ela olhava-me e sorria.
Era um ligeiro sorriso, uma flor que se desfolhava nos seus lábios, um reflexo que
iluminava o seu lindo rosto.
Seus grandes olhos negros fitavam em mim um desses olhares lânguidos e aveludados
que afagam os seios d'alma.
Um anel de cabelos negros brincava-lhe sobre o ombro, fazendo sobressair a alvura
diáfana de seu colo gracioso.
Tudo quanto a arte tem sonhado de belo e de voluptuoso desenhava-se naquelas formas
soberbas, naqueles contornos harmoniosos que se destacavam entre as ondas de
cambraia de seu roupão branco.
Vi tudo isto de um só olhar, rápido, ardente e fascinado! depois fui ajoelhar-me diante
dela, e esqueci-me a contemplá-la.
Ela me sorria sempre, e se deixava admirar.
Por fim tomou-me a cabeça entre as mãos, e seus lábios fecharam-me os olhos com
um beijo.
- Ama-me, disse.
O sonho esvaeceu-se.
A porta da sala fechou-se sobre ela; tinha-me fugido.
Voltei ao hotel.
Abri a minha janela, e sentei-me ao relento.
A brisa da noite trazia-me de vez em quando um aroma de plantas agrestes que
me causava íntimo prazer.

Fazia-me lembrar da vida campestre, dessa existência doce e tranqüila que se passa
longe das cidades, quase no seio da natureza.
Pensava como seria feliz vivendo com ela em algum canto isolado, onde pudéssemos
abrigar o nosso amor em um leito de flores e de relva.
Fazia na imaginação um idílio encantador, e sentia-me tão feliz que não trocaria a
minha cabana pelo mais rico palácio da terra.
Ela me amava.
Só essa idéia embelezava tudo para mim; a noite escura de Petrópolis parecia-me
poética e o murmurejar triste das águas do canal tornava-se-me agradável.
Uma coisa, porém, perturbava essa felicidade; era um ponto negro, uma nuvem
escura que toldava o céu da minha noite de amor.
Lembrava-me daquelas palavras tão cheias de angústia e tão sentidas, que pareciam
explicar a causa de sua reserva para comigo: havia nisto um quer que seja que eu não
compreendia.
Mas esta lembrança desaparecia logo sob a impressão de seu sorriso, que eu tinha em
minh'alma, de seu olhar, que eu guardava no coração, e de seus lábios, cujo contato
ainda sentia.
Dormi embalado por estes sonhos e só acordei quando um raio de sol, alegre e travesso,
veio bater-me nas pálpebras e dar-me o bom dia.
O meu primeiro pensamento foi ir saudar a minha casinha; estava fechada.
Eram oito horas.
Resolvi dar um passeio para disfarçar a minha impaciência; voltando ao hotel, o criado
disse-me terem trazido um objeto que recomendaram me fosse entregue logo.
Em Petrópolis não conhecia ninguém; devia ser dela.
Corri ao meu quarto, e achei sobre a mesa uma caixinha de pau-cetim; na tampa havia
duas letras de tartaruga incrustadas: C. L.
A chave estava fechada em uma sobrecarta com endereço a mim; dispus-me a abrir a
caixa com a mão trêmula e tomado por um triste pressentimento.
Parecia-me que naquele cofre perfumado estava encerrada a minha vida, o meu amor,
toda a minha felicidade.
Abri.
Continha o seu retrato, alguns fios de cabelos e duas folhas de papel escritas por ela e
que li de surpresa em surpresa.
VI
Eis o que ela me dizia:
"Devo-te uma explicação, meu amigo.
"Esta explicação é a história da minha vida, breve história, da qual escreveste a mais
bela página.
"Cinco meses antes do nosso primeiro encontro completava eu os meus dezesseis anos,
a vida começava a sorrir-me.
"A educação rigorosa que me dera minha mãe, me conservara menina até àquela idade,
e foi só quando ela julgou dever correr o véu que ocultava o mundo aos meus olhos,
que eu perdi as minhas idéias de infância e as minhas inocentes ilusões.
"A primeira vez que fui a um baile, fiquei deslumbrada no meio daquele
turbilhão de cavalheiros e damas, que girava em torno de mim sob uma atmosfera de
luz, de música, de perfumes.
"Tudo me causava admiração; esse abandono com que as mulheres se entregavam ao

seu par de valsa, esse sorriso constante e sem expressão que uma moça parece tomar na
porta da entrada para só deixá-lo à saída, esses galanteios sempre os mesmos e sempre
sobre um tema banal, ao passo que me excitavam a curiosidade, faziam desvanecer o
entusiasmo com que tinha acolhido a notícia que minha mãe me dera da minha entrada
nos salões.
"Estavas nesse baile; fia o primeira vez que te vi.
"Reparei que nessa multidão alegre e ruidosa tu só não dançavas nem galanteavas, e
passeavas pelo salão como um espectador mudo e indiferente, ou talvez como um
homem que procurava uma mulher e só via toilettes.
"Compreendi-te, e durante muito tempo segui-te com os olhos; ainda hoje me
lembro dos teus menores gestos, da expressão do teu rosto e do sorriso de fina ironia
que às vezes fugia-te pelos lábios.
"Foi a única recordação que trouxe dessa noite, e quando adormeci, os meus doces
sonhos de infância, que, apesar do baile, vieram de novo pousar nas alvas cortinas de
meu leito, apenas foram interrompidos um instante pela tua imagem, que me sorria.
"No dia seguinte reatei o fio de minha existência, feliz, tranqüila e descuidosa, como
costuma ser a existência de uma moça aos dezesseis anos.
"Algum tempo depois fui a outros bailes e ao teatro, porque minha mãe, que guardara a
minha infância, como um avaro esconde o seu tesouro, queria fazer brilhar a minha
mocidade.
"Quando cedia ao seu pedido e me ia aprontar, enquanto preparava o meu simples
traje, murmurava: - Talvez ele esteja.
"E esta lembrança, não só me tornava alegre, mas fazia com que procurasse parecer
bela, para te merecer um primeiro olhar.
"Ultimamente era eu quem, cedendo a um sentimento que não sabia explicar, pedia a
minha mãe para irmos a um divertimento, só na esperança de encontrar-te.
"Nem suspeitavas então que, entre todos aqueles vultos indiferentes, havia um
olhar que te seguia sempre e um coração que adivinhava os teus pensamentos, que se
expandia quando te via sorrir, e contraía-se quando uma sombra de melancolia
anuviava o teu semblante.
"Se pronunciavam o teu nome diante de mim, corava e na minha perturbação julgava
que tinham lido esse nome nos meus olhos ou dentro de minh'alma, onde eu bem sabia
que ele estava escrito.
"E entretanto, nem sequer ainda me tinhas visto; se teus olhos haviam passado alguma
vez por mim, tinha sido em um desses momentos em que a luz se volta para o íntimo, e
se olha, mas não se vê.
"Consolava-me, porém, que algum dia o acaso nos reuniria, e então não sei o que me
dizia que era impossível não me amares.
"O acaso deu-se, mas quando a minha existência já se tinha completamente
transformado.
"Ao sair de um desses bailes, apanhei uma pequena constipação, de que não fiz caso.
Minha mãe teimava que eu estava doente, e eu achava-me apenas um pouco pálida e
sentia às vezes um ligeiro calafrio, que eu curava, sentando-me ao piano e tocando
alguma música de bravura.
"Um dia, porém, achei-me mais abatida; tinha as mãos e os lábios ardentes, a respiração
era difícil, e ao menor esforço umedecia-se-me a pele com uma transpiração que me
parecia gelada.
"Atirei-me sobre um sofá, e, com a cabeça recostada ao colo de minha mãe, caí em um
letargo que não sei quanto tempo durou. Lembro-me somente que, no momento mesmo
em que ia despertando dessa sonolência que se apoderara de mim, vi minha mãe sentada

à cabeceira de meu leito chorando, e um homem dizia-lhe algumas palavras de consolo,
que eu ouvi como em sonho:
"- Não desespere, minha senhora; a ciência não é infalível, nem os meus diagnósticos
são sentenças irrevogáveis. Pode ser que a natureza e as viagens a salvem. Mas é
preciso não perder tempo.
"O homem partiu.
"Não tinha compreendido as suas palavras, às quais não ligava o menor sentido.
"Passado um instante, ergui tranqüilamente os olhos para minha mãe, que escondeu o
lenço e tragou em silêncio o seu pranto e os seus soluços.
"- Tu choras, mamãe?
"- Não, minha filha... não... não é nada.
"- Mas tu estás com os olhos cheios de lágrimas!... disse eu assustada.
"- Ah! sim!... uma notícia triste que me contaram há pouco... sobre uma pessoa... que tu
não conheces.
"- Quem é este senhor que estava aqui?
"- É o Dr. Valadão, que te veio visitar.
"- Então eu estou muito doente, boa mamãe?
"- Não, minha filha, ele assegurou que não tens nada; é apenas um incômodo nervoso.
"E minha querida mãe, não podendo mais conter as lágrimas que lhe saltavam dos
olhos, fugiu pretextando uma ordem a dar.
"Então, à medida que a minha inteligência ia saindo do letargo, comecei a refletir sobre
o que se tinha passado.
"Aquele desmaio tão longo, aquelas palavras que eu ouvira ainda entre as névoas de um
sono agitado, as lágrimas de minha mãe e a sua repentina aflição, o tom condoído com
que o médico lhe falara...
"Um raio de luz esclareceu de repente o meu espírito.
"Estava desenganada.
"O poder da ciência, o olhar profundo, seguro, infalível, desse homem que lê no corpo
humano como em um livro aberto, tinha visto no meu seio um átomo imperceptível.
"E esse átomo, era o verme que devia destruir as fontes da vida, apesar dos meus
dezesseis anos, apesar de minha organização, apesar de minha beleza e dos meus sonhos
de felicidade!"
Aqui terminava a primeira folha, que eu acabei de ler entre as lágrimas que me
inundavam as faces e caíam sobre o papel.
Era este o segredo de sua estranha reserva; era a razão por que me fugia, por que se
ocultava, por que ainda na véspera dizia que se tinha imposto o sacrifício de nunca ser
amada por mim.
Que sublime abnegação, minha prima! E, como eu me sentia pequeno e mesquinho à
vista desse amor tão nobre!
VII
Continuei a ler :
"Sim, meu amigo!...
"Estava condenada a morrer; estava atacada dessa moléstia fatal e traiçoeira, cujo dedo
descarnado nos toca no meio dos prazeres e dos risos, nos arrasta ao leito, e do leito ao
túmulo, depois de ter escarnecido da natureza, transfigurando as suas mais belas
criações em múmias animadas.

"É impossível descrever-te o que se passou então em mim; foi um desespero mudo e
concentrado, mas que me prostrou em uma atonia profunda; foi uma angústia pungente
e cruel.
"As rosas da minha vida apenas se entreabriam, e já eram bafejadas por um hálito
infetado; já tinham no seio o germe de morte que devia fazê-las murchar!
"Meus sonhos de futuro, minhas tão risonhas esperanças, meu puro amor, que nem
sequer ainda tinha colhido o primeiro sorriso, este horizonte, que há pouco me parecia
tão
brilhante, tudo isto era uma visão que ia sumir-se, uma luz que lampejava prestes a
extinguir-se.
"Foi preciso um esforço sobre-humano para esconder de minha mãe a certeza que eu
tinha sobre o meu estado, e para gracejar dos seus temores, que eu chamava
imaginários.
"Boa mãe! Desde então só viveu para consagrar-se exclusivamente à sua filha,
para envolvê-la com esse desvelo e essa proteção que Deus deu ao coração materno,
para abrigar-me com suas preces, sua solicitude e seus carinhos, para lutar à força de
amor e de dedicação contra o destino.
"Logo no dia seguinte fomos para Andaraí, onde ela alugara uma chácara, e aí, graças
a seus cuidados, adquiri tanta saúde, tanta força, que me julgaria boa se não fosse a sentença fatal que pesava sobre mim.
"Que tesouro de sentimento e de delicadeza que é um coração de mãe, meu amigo! Que
tato delicado, que sensibilidade apurada, possui esse amor sublime!
"Nos primeiros dias, quando ainda estava muito abatida e era obrigada a
agasalhar-me, se visses como ela pressentia as rajadas de um vento frio antes que ele
agitasse os renovos dos cedros do jardim, como adivinhava a menor neblina antes que a
primeira gota umedecesse a laje do nosso terraço!
"Fazia tudo por distrair-me; brincava comigo como uma camarada de colégio; achava
prazer nas menores coisas para excitar-me a imitá-la; tornava-se menina e obrigava-me
a ter caprichos.
"Enfim, meu amigo, se fosse a dizer-te tudo, escreveria um livro e esse livro deves ter
lido no coração de tua mãe, porque todas as mães se parecem.
"Ao cabo de um mês tinha recobrado a saúde para todos, exceto para mim, que às vezes
sentia um quer que seja como uma contração, que não era dor, mas que me dizia que o
mal estava ali, e dormia apenas.
"Foi nesta ocasião que te encontrei no ônibus de Andaraí; quando entravas, a luz do
lampião iluminou-te o rosto e eu reconheci-te.
"Faze idéia que emoção sentira quando te sentaste junto de mim.
"O mais tu sabes; eu te amava, e era tão feliz de ter-te ao meu lado, de apertar a tua
mão, que nem me lembrava como te devia parecer ridícula uma mulher que, sem te
conhecer, te permitia tanto.
"Quando nos separamos, arrependi-me do que tinha feito.
"Com que direito ia eu perturbar a tua felicidade, condenar-te a um amor infeliz e
obrigar-te a associar tua vida a uma existência triste, que talvez não te pudesse dar
senão os tormentos de seu longo martírio?!
"Eu te amava; mas, já que Deus não me tinha concedido a graça de ser tua companheira
neste mundo, não devia ir roubar ao teu lado e no teu coração o lugar que outra mais
feliz, porém menos dedicada, teria de ocupar.
"Continuei a amar-te, mas impus-me a mim mesma o sacrifício de nunca ser amada por
ti.

"Vês, meu amigo, que não era egoísta e preferia a tua à minha felicidade. Tu farias o
mesmo, estou certa.
"Aproveitei o mistério do nosso primeiro encontro, e esperei que alguns dias te fizessem
esquecer essa aventura e quebrassem o único e bem frágil laço que te prendia a mim.
"Deus não quis que acontecesse assim; vendo-te só em um baile, tão triste, tão
pensativo, procurando um ser invisível, uma sombra, e querendo descobrir os seus
vestígios em algum dos rostos que passavam diante de ti, senti um prazer imenso.
"Conheci que tu me amavas; e, perdoa, fiquei orgulhosa dessa paixão ardente, que
uma só palavra minha havia criado, desse poder do meu amor, que, por uma força de
atração inexplicável, tinha-te ligado à minha sombra.
"Não pude resistir.
"Aproximei-me, disse-te uma palavra sem que tivesses tempo de ver-me; foi essa
mesma palavra que resume todo o poema do nosso amor, e que depois do primeiro
encontro era, como ainda hoje, a minha prece de todas as noites.
"Sempre que me ajoelho diante do meu crucifixo de marfim, depois de minha oração,
ainda com os olhos na cruz e o pensamento em Deus, chamo a tua imagem para pedir-te
que não te esqueças de mim.
"Quando tu te voltaste ao som da minha voz, eu tinha entrado na toilette; e pouco depois
saí desse baile, onde apenas acabava de entrar, tremendo da minha imprudência, mas
alegre e feliz por te ter visto ainda uma vez.
"Deves agora compreender o que me fizeste sofrer no teatro quando me dirigias aquela
acusação tão injusta, no momento mesmo em que a Charton cantava a ária da Traviata.
"Não sei como não me traí naquele momento e não te disse tudo; o teu futuro,
porém, era sagrado para mim, e eu não devia destruí-lo para satisfação de meu amorpróprio ofen- dido.
"No dia seguinte escrevi-te; e assim, sem me trair, pude ao menos reabilitar-me na tua
estima; doía-me muito que, ainda mesmo não me conhecendo, tivesses sobre mim uma
idéia tão injusta e tão falsa.
"Aqui é preciso dizer-te que no dia seguinte ao do nosso primeiro encontro, tínhamos
voltado à cidade, e eu via-te passar todos os dias diante de minha janela, quando fazias o
teu passeio costumado à Glória.
"Por detrás das cortinas seguia-te com o olhar, até que desaparecias no fim da rua, e este
prazer, rápido como era, alimentava o meu amor, habituado a viver de tão pouco.
"Depois da minha carta tu deixaste de passar dois dias, estava eu a partir para aqui,
donde devia voltar unicamente para embarcar no paquete inglês.
"Minha mãe, incansável nos seus desvelos, quer levar-me à Europa e fazer-me viajar
pela Itália, pela Grécia, por todos os países de um clima doce.
"Ela diz que é para mostrar-me os grandes modelos de arte e cultivar o meu espírito,
mas eu sei que essa viagem é a sua única esperança, que não podendo nada contra a
minha enfermidade, quer ao menos disputar-lhe a sua vítima durante mais algum
tempo.
"Julga que fazendo-me viajar, sempre me dará mais alguns dias de existência,
como se estes sobejos de vida valessem alguma coisa para quem já perdeu a sua
mocidade e o seu futuro.
"Quando ia embarcar para aqui, lembrei-me de que talvez não te visse mais, e diante
dessa derradeira provança sucumbi. Ao menos o consolo de dizer-te adeus!...
"Era o último!
"Escrevi-te segunda vez; admirava-me da tua demora, mas tinha uma quase certeza de
que havias de vir.
"Não me enganei.

"Vieste, e toda a minha resolução, toda a minha coragem cedeu, porque, sombra ou
mulher, conheci que me amavas como eu te amo.
"O mal estava feito.
"Agora, meu amigo, peço-te por mim, pelo amor que me tens, que reflitas no que te vou
dizer, mas que reflitas com calma e tranqüilidade.
"Para isto parti hoje de Petrópolis sem prevenir-te, e coloquei entre nós o espaço de
vinte e quatro horas e uma distância de muitas léguas.
"Desejo que não procedas precipitadamente, e que, antes de dizer-me uma palavra,
tenhas medido todo o alcance que ela deve ter sobre o teu futuro.
"Sabes o meu destino, sabes que sou uma vítima, cuja hora está marcada, e que todo o
meu amor, imenso, profundo, não te pode dar talvez dentro em bem pouco senão o
sorriso contraído pela tosse, o olhar desvairado pela febre, e carícias roubadas aos
sofrimentos.
"É triste; e não deves imolar assim a tua bela mocidade, que ainda te reserva tantas
venturas e talvez um amor como o que eu te consagro.
"Deixo-te, pois, meu retrato, meus cabelos e minha história; guarda-os como uma
lembrança e pensa algumas vezes em mim; beija esta folha muda, onde os meus lábios
deixa- ram-te o adeus extremo.
"Entretanto, meu amigo, se, como tu dizias ontem, a feli cidade é amar e sentir-se
amado; se te achas com forças de partilhar essa curta existência, esses poucos dias que
me restam a passar sobre a terra, se me queres dar esse consolo supremo, único que
ainda embelezaria minha vida, vem!
"Sim, vem! iremos pedir ao belo céu da Itália mais alguns dias de vida para nosso
amor; iremos aonde tu quiseres, ou onde nos levar a Providência.
"Errantes pelas vastas solidões dos mares ou pelos cimos elevados das
montanhas, longe do mundo, sob o olhar protetor de Deus, à sombra dos cuidados de
nossa mãe, viveremos tanto um como outro, encheremos de tanta afeição os nossos
dias, as nossas horas, os nossos instantes, que, por curta que seja a minha existência,
teremos vivido por cada minuto séculos de amor e de felicidade.
"Eu espero; mas temo.
"Espero-te como a flor desfalecida espera o raio de sol que deve aquecê-la, a gota de
orvalho que pode animá-la, o hálito da brisa que vem bafejá-la. Porque para mim o
único céu que hoje me sorri, são teus olhos; o calor que pode me fazer viver, é o do teu
seio.
"Entretanto temo, temo por ti, e quase peço a Deus que te inspire e te salve de um
sacrifício talvez inútil!
"Adeus para sempre, ou até amanhã!"
CARLOTA
VIII
Devorei toda esta carta de um lanço de olhos.
Minha vista corria sobre o papel como o meu pensamento, sem parar, sem hesitar,
poderia até dizer sem respirar.
Quando acabei de ler, só tinha um desejo: era o de ir ajoelhar-me a seus pés, e receber
como uma bênção do céu esse amor sublime e santo.

Como sua mãe, lutaria contra o destino, cercá-la-ia de tanto afeto e de tanta adoração,
tornaria sua vida tão bela e tão tranqüila, prenderia tanto sua alma à terra, que lhe seria
impossível deixá-la.
Criaria para ela com o meu coração um mundo novo, sem as misérias e as lágrimas
deste mundo em que vivemos; um mundo só de ventura, onde a dor e o sofrimento não
pudessem penetrar.
Pensava que devia haver no universo algum lugar desconhecido, algum canto de terra
ainda puro do hálito do homem, onde a natureza virgem conservaria o perfume dos
primeiros tempos da criação e o contato das mãos de Deus quando a formara.
Aí era impossível que o ar não desse vida; que o raio do sol não viesse impregnado de
um átomo de fogo celeste; que a água, as árvores, a terra, cheia de tanta seiva e de tanto
vigor, não inoculassem na criatura essa vitalidade poderosa da natureza no seu
primitivo esplendor.
Iríamos, pois, a uma dessas solidões desconhecidas; o mundo abria-se diante de nós, e
eu sentia-me com bastante força e bastante coragem para levar o meu tesouro além dos
ma- res e das montanhas, até achar um retiro onde esconder a nossa felicidade.
Nesses desertos, tão vastos, tão extensos, não haveria sequer vida bastante para duas
criaturas que apenas pediam um palmo de terra e um sopro de ar, a fim de poderem
elevar a Deus, como uma prece constante, o seu amor tão puro?
Ela dava-me vinte e quatro horas para refletir, e eu não queria nem um minuto, nem um
segundo.
Que me importavam o meu futuro e a minha existência se eu os sacrificaria de bom
grado para dar-lhe mais um dia de vida?
Todas estas idéias, minha prima, cruzavam-se no meu espírito, rápidas e confusas,
enquanto eu fechava na caixinha de pau-cetim os objetos preciosos que ela encerrava,
copiava na minha carteira a sua morada, escrita no fim da carta, e atravessava o espaço
que me separava da porta do hotel.
Aí encontrei o criado da véspera.
- A que horas parte a barca da Estrela?
- Ao meio-dia.
Eram onze horas; no espaço de uma hora eu faria as quatro léguas que me separavam
daquele porto.
Lancei os olhos em torno de mim com uma espécie de desvairo
Não tinha um trono, como Ricardo III, para oferecer em troca de um cavalo; mas tinha
a realeza do nosso século, tinha dinheiro.
A dois passos da porta do hotel estava um cavalo, que o seu dono tinha pela rédea.
- Compro-lhe este cavalo, disse eu caminhando para ele, sem mesmo perder tempo
em cumprimentá-lo.
- Não pretendia vendê-lo, respondeu-me o homem cortesmente; mas, se o senhor está
disposto a dar o preço que ele vale...
- Não questiono sobre o preço; compro-lhe o cavalo arreado como está.
O sujeito olhou-me admirado; porque, a falar a verdade, os seus arreios nada valiam.
Quanto a mim, já tinha-lhe tomado as rédeas da mão; e, sentado no selim, esperava
que me dissesse quanto tinha de pagar-lhe.
- Não repare, fiz uma aposta e preciso de um cavalo para ganhá-la.
Isto deu-lhe a compreender a singularidade do meu ato e a pressa que eu tinha; recebeu
sorrindo o preço do seu animal, e disse, saudando-me com a mão, de longe, porque já eu
dobrava a rua:
- Estimo que ganhe a aposta; o animal é excelente!
Na verdade era uma aposta que eu tinha feito comigo mesmo, ou antes com a minha

razão, a qual me dizia que era impossível apanhar a barca, e que eu fazia uma
extravagância sem necessidade, pois bastava ter paciência por vinte e quatro horas.
Mas o amor não compreende esses cálculos e esses raciocínios próprios da
fraqueza humana; criado com uma partícula do fogo divino, ele eleva o homem acima
da terra, desprende-o da argila que o envolve, e dá-lhe força para dominar todos os
obstáculos, para querer o impossível.
Esperar tranqüilamente um dia para ir dizer-lhe que eu amava e queria amá-la com todo
o culto e admiração que me inspirava a sua nobre abnegação, me parecia quase uma infâmia.
Seria dizer-lhe que tinha refletido friamente, que tinha pesado todos os prós e os contras
do passo que ia dar, que havia calculado como um egoísta a felicidade que ela me
oferecia.
Não só a minha alma se revoltava contra esta idéia; mas parecia-me que ela, com a sua
extrema delicadeza de sentimento, embora não se queixasse, sentiria ver-se o objeto de
um cálculo e o alvo de um projeto de futuro.
A minha viagem foi uma corrida louca, desvairada, delirante. Novo Mazzepa, passava
por entre a cerração da manhã, que cobria os píncaros da serrania, como uma sombra
que fugia rápida e veloz.
Dir-se-ia que alguma rocha colocada em um dos cabeços da montanha tinha-se
desprendido de seu alvéolo secular, e, precipitando-se com todo o peso, rolava
surdamente pelas encostas.
O galopar do meu cavalo formava um único som, que ia reboando pelas grutas e
cavernas, e confundia-se com o rumor das torrentes.
As árvores, cercadas de névoa, fugiam diante de mim como fantasmas; o chão
desaparecia sob os pés do animal; às vezes parecia-me que a terra ia faltar-me e que o
cavalo e cavaleiro rolavam por algum desses abismos imensos e profundos, que devem
ter servido de túmulos titânicos.
Mas, de repente, entre uma aberta de nevoeiro, eu via a linha azulada do mar, e fechava
os olhos e atirava-me sobre o meu cavalo, gritando-lhe ao ouvido a palavra de Byron: -
Away!
Ele parecia entender-me, e precipitava essa corrida desesperada; não galopava, voava;
seus pés, como impelidos por quatro molas de aço, nem tocavam a terra.
Assim, minha prima, devorando o espaço e a distância, foi ele, o nobre animal,
abater-se a alguns passos apenas da praia; a coragem e as forças só o tinham
abandonado com a vida, e no termo da viagem.
Em pé, ainda sobre o cadáver desse companheiro leal, via a coisa de uma milha o vapor
que singrava ligeiramente para a cidade.
Aí fiquei perto de uma hora, seguindo com os olhos essa barca que a conduzia; e
quando o casco desapareceu, olhei os frocos de fumaça do vapor, que se enovelaram no
ar, e que o vento desfazia a pouco e pouco.
Por fim, quando tudo desapareceu, e que nada me falava dela, olhei ainda o mar por
onde havia passado e o horizonte que a ocultava aos meus olhos.
O sol dardejava raios de fogo; mas eu bem me importava com o sol; todo o meu espírito
e os meus sentidos se concentravam em um único pensamento; vê-la, vê-la em uma
hora, em um momento, se possível fosse.
Um velho pescador arrastava nesse momento a sua canoa à praia.
Aproximei-me e disse-lhe:
- Meu amigo, preciso ir à cidade, perdi a barca, e desejava que você me conduzisse na
sua canoa.
- Mas se eu agora mesmo é que chego!

- Não importa; pagarei o seu trabalho, também o incômodo que isto lhe causa.
- Não posso, não, senhor, não é lá pela paga que eu digo que estou chegando; mas é
que passar a noite no mar sem dormir não é lá das melhores coisas; e estou caindo de
sono.
- Escute, meu amigo...
- Não se canse, senhor; quando eu digo não, é não; e está dito.
E o velho continuou a arrastar a sua canoa.
- Bem, não falemos mais nisto; mas conversemos.
- Lá isto como o senhor quiser.
- A sua pesca rende-lhe bastante?
- Qual! rende nada!...
- Ora diga-me! Se houvesse um meio de fazer-lhe ganhar em um só dia o que pode
ganhar em um mês, não enjeitaria decerto?
- Isto é coisa que se pergunte?
- Quando mesmo fosse preciso embarcar depois de passar uma noite em claro no
mar?
- Ainda que devesse remar três dias com três noites, sem dormir nem comer.
- Nesse caso, meu amigo, prepara-se, que vai ganhar o seu mês de pescaria; leveme à cidade.
- Ah! isto já é outro falar; por que não disse logo?...
- Era preciso explicar-me?!
- Bem diz o ditado que é falando que a gente se entende.
- Assim, é negócio decidido. Vamos embarcar?
- Com licença; preciso de um instantinho para prevenir a mulher; mas é um passo lá
e outro cá.
- Olhe, não se demore; tenho muita pressa.
- É em um fechar de olhos, disse ele correndo na direção da vila.
Mal tinha feito vinte passos, parou, hesitou, e por fim voltou lentamente pelo mesmo
caminho.
Eu tremia; julgava que se tinha arrependido, que vinha apresentar-me alguma nova
dificuldade. Chegou-se para mim de olhos baixos e coçando a cabeça.
- O que temos, meu amigo? perguntei-lhe com uma voz que esforçava por tornar calma.
- É que... o senhor disse que pagava um mês...
- Decerto; e, se duvida, disse levando a mão ao bolso.
Não, senhor, Deus me defenda de desconfiar do senhor! Mas é que... sim, não vê,
o mês agora tem menos um dia que os outros!
Não pude deixar de sorrir-me do temor do velho; nós estávamos com efeito, no mês de
fevereiro.
- Não se importe com isto; está entendido que, quando eu digo um mês, é um mês de
trinta e um dias; os outros são meses aleijados, e não se contam.
- É isso mesmo, disse o velho rindo-se da minha idéia; assim como quem diz, um
homem sem um braço. Ah!... ah!...
E continuou a rir-se, tomou o caminho de casa e desapareceu.
Quanto a mim, estava tão contente com a idéia de chegar à cidade em algumas horas,
que não pude deixar também de rir-me do caráter original do pescador.
Conto-lhe estas cenas e as outras que se lhe seguiram com todas as suas
circunstâncias por duas razões, minha prima.
A primeira é porque desejo que compreenda bem o drama simples que me propus
traçar-lhe; a segunda é porque tenho tantas vezes repassado na memória as menores
particularidades dessa história, tenho ligado de tal maneira o meu pensamento a essas

reminiscências, que não me animo a destacar delas a mais insignificante circunstância;
parece-me que se o fizesse, separaria uma parcela de minha vida.
Depois de duas horas de espera e de impaciência, embarquei nessa casquinha de noz,
que saltou sobre as ondas, impelida pelo braço ainda forte e ágil do velho pescador.
Antes de partir fiz enterrar o meu pobre cavalo; não podia deixar assim exposto às aves
de rapina o corpo desse nobre animal, que eu tinha roubado à afeição do seu dono, para
imolá-lo à satisfação de um capricho meu.
Talvez lhe pareça isto uma puerilidade; mas a senhora é mulher, minha prima, e deve
saber que, quando se ama como eu amava, tem-se o coração tão cheio de afeição, que
espalha uma atmosfera de sentimento em torno de nós, e inunda até os objetos
inanimados, quanto mais as criaturas, ainda irracionais, que um momento se ligaram à
nossa existência para realização de um desejo.
IX
Eram seis horas da tarde.
O sol declinava rapidamente, e a noite, descendo do céu, envolvia a terra nas sombras
desmaiadas que acompanham o ocaso.
Soprava uma forte viração de sudoeste, que desde o momento da partida retardava a
nossa viagem; lutávamos contra o mar e o vento.
O velho pescador, morto de fadiga e de sono, estava exausto de forças; a sua pá, que a
princípio fazia saltar sobre as ondas como um peixe o frágil barquinho, apenas feria
agora a flor da água.
Eu, recostado na popa, e com os olhos fitos na linha azulada do horizonte, esperando a
cada momento ver desenhar-se o perfil do meu belo Rio de Janeiro, começava
seriamente a inquietar-me na minha extravagância e loucura.
À proporção que declinava o dia e que as sombras cobriam o céu, esse vago
inexprimível da noite no meio das ondas, a tristeza e melancolia que infunde o
sentimento da fraqueza do homem em face dessa solidão imensa de água e de céu, se
apoderavam do meu espírito.
Pensava então que teria sido mais prudente esperar o dia seguinte, e fazer uma viagem
breve e rápida, do que sujeitar-me a mil contratempos e mil embaraços, que no fim de
contas nada adiantavam.
Com efeito já tinha anoitecido; e, ainda que conseguíssemos chegar à cidade por volta
de nove ou dez horas, só no dia seguinte poderia ver Carlota e falar-lhe.
De que havia servido, pois, todo o meu arrebatamento, toda a minha impaciência?
Tinha morto um animal, tinha incomodado um pobre velho, tinha atirado às mãos cheias
di- nheiro, que poderia melhor empregar socorrendo algum infortúnio e cobrindo esta
obra de caridade com o nome e a lembrança dela.
Concebia uma triste idéia de mim; no meu modo de ver então as coisas, parecia-me que
eu tinha feito do amor, que é uma sublime paixão, apenas uma estúpida mania; e dizia
interiormente que o homem que não domina os seus sentimentos, é um escravo, que não
tem o menor merecimento quando pratica um ato de dedicação.
Tinha-me tornado filósofo, minha prima, e decerto compreenderá a razão.
No meio da baía, metido em uma canoa, à mercê do vento e do mar, não podendo dar
largas à minha impaciência de chegar, não havia senão um modo de sair desta situação,
e este era arrepender-me do que tinha feito.

Se eu pudesse fazer alguma nova loucura, creio piamente que adiaria o arrependimento
para mais tarde, porém era impossível.
Tive um momento a idéia de atirar-me à água, e procurar vencer a nado a distância que
me separava dela; mas era noite, não tinha a luz de Hero para guiar-me, e me perderia
nesse novo Helesponto.
Foi decerto uma inspiração do céu ou o meu anjo da guarda que me veio advertir que
naquela ocasião eu nem sabia mesmo de que lado ficava a cidade.
Resignei-me, pois, e arrependi-me sinceramente.
Dividi com o meu companheiro algumas provisões que tínhamos trazido; e fizemos uma
verdadeira colação de contrabandistas ou piratas.
Caí na asneira de obrigá-lo a beber uma garrafa de vinho do Porto, bebendo eu outra
para acompanhá-lo e fazer-lhe as honras da hospitalidade. Julgava que deste modo ele
restabeleceria as forças e chegaríamos mais depressa.
Tinha-me esquecido que a sabedoria das nações, ou a ciência dos provérbios, consagra o
princípio de que devagar se vai ao longe.
Acabada a nossa magra colação, o pescador começou a remar com uma força e um
vigor que me reanimaram a esperança.
Assim, docemente embalado pela idéia de vê-la e pelo marulho das ondas, com os olhos
fitos na estrela da tarde, que se ia sumindo no horizonte e me sorria como para consolarme, senti a pouco e pouco fecharem-se-me as pálpebras, e dormi.
Quando acordei, minha prima, o sol derramava seus raios de ouro sobre o manto
azulado das ondas: era dia claro.
Não sei onde estávamos; via ao longe algumas ilhas; o pescador dormia na proa, e
ressonava como um boto.
A canoa tinha vogado à mercê da corrente; e o remo, que caíra naturalmente das mãos
do velho, no momento em que ele cedera à força invencível do sono, tinha
desaparecido.
Estávamos no meio da baía, sem poder dar um passo, sem poder mover-nos.
Aposto, minha prima, que a senhora acaba de dar uma risada, pensando na cômica
posição em que me achava; mas seria uma injustiça zombar de uma dor profunda, de
uma angústia cruel como a que sofri então.
Os instantes, as horas, corriam de decepção em decepção; alguns barcos que passaram
perto, apesar dos nossos gritos, seguiram o seu caminho, não podendo supor que com o
tempo calmo e sereno que fazia, houvesse sombra de perigo para uma canoa que boiava
tão levemente sobre as ondas.
O velho, que tinha acordado, nem se desculpava; mas a sua aflição era tão grande que
quase me comoveu; o pobre homem arrancava os cabelos e mordia os beiços de raiva.
As horas correram assim nessa atonia do desespero. Sentados em face um do outro,
talvez culpando-nos mutuamente do que sucedia, não proferíamos uma palavra, não
fazíamos um gesto.
Por fim veio a noite. Não sei como não fiquei louco, lembrando-me que estávamos a 13,
e que o paquete devia partir no dia seguinte.
Não era unicamente a idéia de uma ausência que me afligia; era também a lembrança do
mal que ia causar-lhe, a ela, que, ignorando o que se passava, me julgaria egoísta,
suporia que a havia abandonado, e que ficara em Petrópolis divertindo-me.
Aterrava-me com as conseqüências que poderia ter esse fato sobre a sua saúde tão
frágil, sobre a sua vida; e me condenava já como assassino.
Lancei um olhar alucinado sobre o pescador, e tive ímpetos de abraçá-lo e atirar-me
com ele ao mar.

Oh! como sentia então o nada do homem e a fraqueza da nossa raça, tão orgulhosa de
sua superioridade e do seu poder!
De que me serviam a inteligência, a vontade, e essa força invencível do amor, que me
impelia e me dava coragem para arrostar vinte vezes a morte?
Algumas braças d'água e uma pequena distância me retinham e me encadeavam naquele
lugar como a um poste; a falta de um remo, isto é, de três palmos de madeira, criava
para mim o impossível; um círculo de ferro me cingia, e para quebrar essa prisão, contra
a qual toda a minha razão era impotente, bastava-me que fosse um ente irracional.
A gaivota, que frisava as ondas com a ponta de suas asas brancas; o peixe, que fazia
cintilar um momento seu dorso de escamas à luz das estrelas; o inseto, que vivia no
seio das águas e plantas marinhas, eram reis dessa solidão, na qual o homem não podia
sequer dar um passo.
Assim, blasfemando contra Deus e sua obra, sem saber o que fazia nem o que pensava,
entreguei-me à Providência; embrulhei-me no meu capote, deitei-me e fechei os olhos
para não ver a noite adiantar-se, as estrelas empalidecerem e o dia raiar.
Tudo estava sereno e tranqüilo; as águas nem se moviam; apenas sobre a face lisa do
mar passava uma aragem tênue, que se diria hálito das ondas adormecidas.
De repente, pareceu-me sentir que a canoa deixara de boiar à discrição e singrava
lentamente; julgando que fosse ilusão minha, não me importei, até que um movimento
contínuo e regular me convenceu.
Afastei a aba do capote e olhei, receando ainda iludir-me; não vi o pescador; mas a
alguns passos da proa percebi os rolos de espuma que formavam um corpo agitando-se
nas ondas.
Aproximei-me, e distingui o velho pescador, que nadava, puxando a canoa por meio de
uma corda que amarrara à cintura, para deixar-lhe os movimentos livres.
Admirei essa dedicação do pobre velho, que procurava remediar a sua falta por um
sacrifício que eu supunha inútil: não era possível que um homem nadasse assim por
muito tempo.
Com efeito, passados alguns instantes, vi-o parar e saltar ligeiramente na canoa como
temendo acordar-me; a sua respiração fazia uma espécie de burburinho no seu peito
largo e forte.
Bebeu um trago de vinho, e com o mesmo cuidado deixou-se cair n'água e continuou a
puxar a canoa.
Era alta noite quando nesta marcha chegamos a uma espécie de praia, que teria quando
muito duas braças. O velho saltou e desapareceu.
Fitando a vista nas trevas, vi uma claridade, que não pude distinguir se era fogo, se luz,
senão quando uma porta abrindo-se deixou-me ver o interior de uma cabana.
O velho voltou com um outro homem, sentaram-se sobre uma pedra e começaram a
falar em voz baixa. Senti uma grande inquietação; na verdade, minha prima, só me
faltava, para completar a minha aventura, uma história de ladrões.
A minha suspeita, porém, era injusta; os dois pescadores estavam à espera de dois
remos que lhes trouxe uma mulher, e imediatamente embarcaram e começaram a remar
com uma força espantosa.
A canoa resvalou sobre as ondas, ágil e veloz como um desses peixes de que há pouco
invejava a rapidez.
Ergui-me para agradecer a Deus, ao céu, às estrelas, às águas, a toda a natureza enfim,
o raio de esperança que me enviavam.
Uma faixa escarlate já se desenhava no horizonte; o oriente foi-se esclarecendo de
gradação em gradação, até que deixou ver o disco luminoso do sol.

A cidade começou a erguer-se do seio das ondas, linda e graciosa, como uma donzela
que, recostada sobre um monte de relva, banhasse os pés na corrente límpida de um rio.
A cada movimento de impaciência que eu fazia, os dois pescadores dobravam-se sobre
os remos e a canoa voava. Assim nos aproximamos da cidade, passamos entre os
navios, e nos dirigimos à Glória, onde pretendia desembarcar, para ficar mais próximo
de sua casa.
Em um segundo tinha tomado a minha resolução; chegar, vê-la, dizer-lhe que a seguia, e
embarcar-me nesse mesmo paquete em que ela ia partir.
Não sabia que horas eram; mas há pouco havia amanhecido; tinha tempo para tudo,
tanto mais que eu só precisava de uma hora. Um crédito sobre Londres e a minha mala
de viagem eram todos os meus preparativos; podia acompanhá-la ao fim do
mundo.
Já via tudo cor-de-rosa, sorria à minha ventura e gozava da alegre surpresa que ia
causar-lhe, a ela que já não me esperava.
A surpresa, porém, foi minha.
Quando passava diante de Villegaignon, descobri de repente o paquete inglês: as pás se
moviam indolentemente, e imprimiam ao navio essa marcha vagarosa do vapor, que
parece experimentar as suas forças, para precipitar-se a toda a carreira.
Carlota estava sentada sob a tolda, com a cabeça encostada ao ombro de sua mãe, e com
os olhos engolfados no horizonte, que ocultava o lugar onde tínhamos passado a
primeira e última hora de felicidade.
Quando me viu, fez um movimento como se quisesse lançar-se para mim; mas contevese, sorriu-se para sua mãe, e, cruzando as mãos no peito, ergueu os olhos ao céu, como
para agradecer a Deus, ou para dirigir-lhe uma prece.
Trocamos um longo olhar, um desses olhares que levam toda a nossa alma e a trazem
ainda palpitante das emoções que sentiu noutro coração; uma dessas correntes elétricas
que ligam duas vidas em um só fio.
O vapor soltou um gemido surdo; as rodas fenderam as águas; e o monstro marinho,
rugindo como uma cratera, vomitando fumo e devorando o espaço com os seus flancos
ne- gros, lançou-se.
Por muito tempo ainda vi o seu lenço branco agitar-se ao longe, como as asas brancas
do meu amor, que fugia e voava ao céu.
O paquete sumiu-se no horizonte.
X
O resto desta história, minha prima, a senhora conhece, com exceção de algumas
particularidades.
Vivi um mês, contando os dias, as horas e os minutos; o tempo corria vagarosamente
para mim, que desejava poder devorá-lo.
Quando tinha durante uma manhã inteira olhado o seu retrato, conversando com ele, e
lhe contado a minha impaciência e o meu sofrimento, começava a calcular as horas que
fal- tavam para acabar o dia, os dias que faltavam para acabar a semana, e as semanas
que ainda faltavam para acabar o mês.
No meio da tristeza que me causara a sua ausência, o que me deu um grande consolo
foi uma carta que ela me havia deixado, e que me foi entregue no dia seguinte ao da sua
partida.

"Bem vês, meu amigo, dizia-me ela, que Deus não quer aceitar o teu sacrifício. Apesar
de todo o teu amor, apesar de tua alma, ele impediu a nossa união; poupou-te um
sofrimento e a mim talvez um remorso.
"Sei tudo quanto fizeste por minha causa, e adivinho o resto; parto triste por não te ver,
mas bem feliz por sentir-me amada, como nenhuma mulher talvez o seja neste mundo."
Esta carta tinha sido escrita na véspera da saída do paquete; um criado que viera de
Petrópolis, e a quem ela incumbira de entregar-me a caixinha com o seu retrato, contoulhe metade das extravagâncias que eu praticara para chegar à cidade no mesmo dia.
Disse-lhe que me tinha visto partir para a Estrela, depois de perguntar a hora da saída
do vapor; e que embaixo da serra referiram-lhe como eu tinha morto um cavalo para alcançar a barca, e como me embarcara em uma canoa.
Não me vendo chegar, ela adivinhara que alguma dificuldade invencível me retinha, e
atribuía isto à vontade de Deus, que não consentia no meu amor.
Entretanto, lendo e relendo a sua carta, uma coisa me admirou; ela não me dizia um
adeus, apesar de sua ausência e apesar da moléstia, que podia tornar essa ausência
eterna.
Tinha-me adivinhado! Ao mesmo tempo que fazia por me dissuadir, estava convencida
que a acompanharia.
Com efeito parti no paquete seguinte para a Europa.
Há de ter ouvido falar, minha prima, se é que ainda não o sentiu, da força dos
pressentimentos do amor, ou da segunda vista que tem a alma nas suas grandes afeições.
Vou contar-lhe uma circunstância que confirma este fato.
No primeiro lugar onde desembarquei, não sei que instinto, que revelação, me fez
correr imediatamente ao correio; parecia-me impossível que ela não tivesse deixado
alguma lembrança para mim.
E de fato em todos os portos da escala do vapor havia uma carta que continha duas
palavras apenas:
"Sei que tu me segues. Até logo."
Enfim cheguei à Europa e vi-a. Todas as minhas loucuras e os meus sofrimentos foram
compensados pelo sorriso de inexprimível gozo com que me acolheu.
Sua mãe dizia-lhe que eu ficaria no Rio de Janeiro, mas ela nunca duvidara de mim!
Esperava-me como se a tivesse deixado na véspera, prometendo voltar.
Encontrei-a muito abatida da viagem; não sofria, mas estava pálida e branca como uma
dessas Madonas de Rafael, que vi depois em Roma.
Às vezes uma languidez invencível a prostrava; nesses momentos um quer que seja de
celeste e vaporoso a cercava, como se a alma exalando-se envolvesse o seu corpo.
Sentado ao seu lado, ou de joelhos a seus pés, passava os dias a contemplar essa agonia
lenta; sentia-me morrer gradualmente, à semelhança de um homem que vê os últimos
clarões da luz que vai extinguir-se e deixá-lo nas trevas.
Uma tarde que ela estava ainda mais fraca, tínhamo-nos chegado para a varanda.
A nossa casa em Nápoles dava sobre o mar; o sol, transmontando, escondia-se nas
ondas; um raio pálido e descorado veio enfiar-se pela nossa janela e brincar sobre o
rosto de Carlota, sentada ou antes deitada em uma conversadeira.
Ela abriu os olhos um momento e quis sorrir; seus lábios nem tinham força para
desfolhar o sorriso.
As lágrimas saltaram-me dos olhos; havia muito que eu tinha perdido a fé, mas
conservava ainda a esperança; esta desvaneceu-se com aquele reflexo do ocaso, que me
parecia o seu adeus à vida.

Sentindo as minhas lágrimas molharem as suas mãos, que eu beijava, ela voltou-se e
fixou-me com os seus grandes olhos lânguidos.
Depois, fazendo um esforço, reclinou-se para mim e apoiou as mãos sobre o meu
ombro.
- Meu amigo, disse ela com voz débil, vou-te pedir uma coisa, a última; tu me prometes
cumprir?
- Juro, respondi-lhe eu, com a voz cortada pelos soluços.
- Daqui a bem pouco tempo... daqui a algumas horas talvez... Sim! sinto faltar-me o
ar!...
- Carlota!...
- Sofres, meu amigo! Ah! se não fosse isto eu morreria feliz.
- Não fales em morrer!
- Pobre amigo, em que deverei falar então? Na vida?... Mas não vês que a minha vida
é apenas um sopro... um instante que breve terá passado?
- Tu te iludes, minha Carlota.
Ela sorriu tristemente.
- Escuta; quando sentires a minha mão gelada, quando as palpitações do meu coração
cessarem, prometes receber nos teus lábios a minha alma?
- Meu Deus!...
- Prometes? sim?...
- Sim.
Ela tornou-se lívida; sua voz suspirou apenas:
- Agora!
Apertei-a ao peito e colei os meus lábios aos seus. Era o primeiro beijo de nosso amor,
beijo casto e puro, que a morte ia santificar.
Sua fronte se tinha gelado, não sentia a sua respiração nem as pulsações de seu seio.
De repente ela ergueu a cabeça. Se visse, minha prima, que reflexo de felicidade e
alegria iluminava nesse momento o seu rosto pálido!
- Oh! quero viver! exclamou ela.
E com os lábios entreabertos aspirou com delícia a aura impregnada de perfumes que
nos enviava o golfo de Ischia.
Desde esse dia foi pouco e pouco restabelecendo-se, ganhando as forças e a saúde; sua
beleza. reanimava-se e expandia-se como um botão que por muito tempo privado de sol,
se abre em flor viçosa.
Esse milagre, que ela, sorrindo e corando, atribuía ao meu amor, foi-nos um dia
explicado bem prosaicamente por um médico alemão que fez-nos uma longa dissertação
a respeito da medicina.
Segundo ele dizia, a viagem tinha sido o único remédio e o que nós tomávamos por
um estado mortal não era senão a crise que se operava, crise perigosa, que podia matá-
la, mas que felizmente a salvou.
Casamo-nos em Florença na igreja de Santa Maria Novela.
Percorremos a Alemanha, a França, a Itália e a Grécia; passamos um ano nessa vida
errante e nômade, vivendo do nosso amor e alimentando-nos de música, de recordações
históricas, de contemplações de arte.
Criamos assim um pequeno mundo, unicamente nosso; depositamos nele todas as
belas reminiscências de nossas viagens, toda a poesia dessas ruínas seculares em que as
gerações que morreram, falam ao futuro pela voz do silêncio; todo o enlevo dessas
vastas e imensas solidões do mar, em que a alma, dilatando-se no infinito, sente-se mais
perto de Deus.
Trouxemos das nossas peregrinações um raio de sol do Oriente, um reflexo de lua de

Nápoles, uma nesga do céu da Grécia, algumas flores, alguns perfumes, e com isto
enchemos o nosso pequeno universo.
Depois, como as andorinhas que voltam com a primavera para fabricar o seu ninho no
campanário da capelinha em que nasceram, apenas ela recobrou a saúde e as suas belas
cores, viemos procurar em nossa terra um cantinho para esconder esse mundo que
havíamos criado.
Achamos na quebrada de uma montanha um lindo retiro, um verdadeiro berço de
relva suspenso entre o céu e a terra por uma ponta de rochedo.
Aí abrigamos o nosso amor e vivemos tão felizes que só pedimos a Deus que nos
conserve o que nos deu; a nossa existência é um longo dia, calmo e tranqüilo, que
começou ontem, mas que não tem amanhã.
Uma linda casa, toda alva e louçã, um pequeno rio saltitando entre as pedras, algumas
braças de terra, sol, ar puro, árvores, sombras,... eis toda a nossa riqueza.
Quando nos sentimos fatigados de tanta felicidade, ela arvora-se em dona de casa ou vai
cuidar de suas flores; eu fecho-me com os meus livros e passo o dia a trabalhar. São os
únicos momentos em que não nos vemos.
Assim, minha prima, como parece que neste mundo não pode haver um amor sem o seu
receio e a sua inquietação, nós não estamos isentos dessa fraqueza.
Ela tem ciúmes de meus livros, como eu tenho de suas flores. Ela diz que a esqueço
para trabalhar; eu queixo-me de que ela ama as suas violetas mais do que a mim.
Isto dura quando muito um dia; depois vem sentar-se ao meu lado e dizer-me ao ouvido
a primeira palavra que balbuciou o nosso amor: - Non ti scordar di me.
Olhamo-nos, sorrimos e recomeçamos esta história que lhe acabo de contar, e que é ao
mesmo tempo o nosso romance, o nosso drama e o nosso poema.
Eis, minha prima, a resposta à sua pergunta; eis por que esse moço elegante, como teve
a bondade de chamar-me, fez-se provinciano e retirou-se da sociedade, depois de ter
passado um ano na Europa.
Podia dar-lhe outra resposta mais breve, e dizer-lhe simplesmente que tudo isto sucedeu
porque me atrasei cinco minutos.
Desta pequena causa, desse grão de areia, nasceu a minha felicidade; dele podia resultar
a minha desgraça. Se tivesse sido pontual como um inglês, não teria tido uma paixão
nem feito uma viagem; mas ainda hoje estaria perdendo o meu tempo a passear pela
Rua do Ouvidor e a ouvir falar de política e teatro.
Isto prova que a pontualidade é uma excelente virtude para uma máquina; mas um grave
defeito para um homem.
Adeus, minha prima. Carlota impacienta-se, porque há muitas horas que lhe escrevo;
não quero que ela tenha ciúmes desta carta e que me prive de enviá-la.
***
Minas, 12 de agosto
*
Abaixo da assinatura havia um pequeno post-scriptum de uma letra fina e delicada:
"P. S. - Tudo isto é verdade, D..., menos uma coisa.
"Ele não tem ciúmes de minhas flores, nem podia ter, porque sabe que só quando seus
olhos não me procuram é que vou visitá-las e pedir-lhes que me ensinem a fazer-me
bela para agradá-lo.
"Nisto enganou-a; mas eu vingo-me roubando-lhe um dos meus beijos, que lhe envio
nesta carta.
"Não o deixe fugir, prima; iria talvez revelar a nossa felicidade ao mundo invejoso."

CARLOTA
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Morte acidental

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