25/02/2018

A Causa Secreta, Machado de Assis


     Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço,
olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha.
Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que
estivera excelente, — de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa
de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes
estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.

    Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e grave,
que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde.
Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de
Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma
expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi
de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da
situação.

    Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando
ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa
Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim,
tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava
na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário,
que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca
achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os
passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu
ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.

      A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos;
 mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção
dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto
que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No
fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia
saiu atrás dele. Fortunato foi pelo Beco do Cotovelo, Rua de S. José, até o Largo
da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em
algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No Largo da
Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da Praça da Constituição. Garcia
voltou para casa sem saber mais nada.

    Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa,
quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao
primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que
alguns homens conduziam, escada acima, ensangüentado. O preto que o servia
acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca.
Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico.

— Já aí vem um, acudiu alguém.

Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria
parente ou amigo do ferido; mas, rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira
perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e
ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem,
pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era
vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em
seguida contou o que se passara.

— Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um
primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento.
Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um
daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento
em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo;
disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo.

— Conhecia-o antes? perguntou Garcia.

— Não, nunca o vi. Quem é?

— É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouvêa.

— Não sei quem é.

       Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as
informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira,
ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave.
Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando
a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido,
que gemia muito.

    No fim, entendeu-se particularmente com o médico,
acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração
de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o
estudante ficaram no quarto.

     Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as
pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os
olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão
dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do
queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De
quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa

acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a
resposta. 
    A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo
que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara
dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o
coração humano como um poço de mistérios.

    Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura
fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado
onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número.

— Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o
convalescente.

    Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu
impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e
acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouvêa, defronte dele,
sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando
em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença
para sair, e saiu.

— Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.

     O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém,
forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse
a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e
exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve
mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples idéia. Foi assim que
o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão.

    Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de
decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia
o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar
o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o
homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal
da casa.
  Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum.
Tempos depois, estando já formado e morando na Rua de Mata-cavalos, perto da
do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes,
e a freqüência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali
perto, em Catumbi.

— Sabe que estou casado?

— Não sabia.

— Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo.

— Domingo?

— Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo.

      Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa
palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não
mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras
feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não
resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria
Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos
meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove.
Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma
dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da

mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam
na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a
Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido.

— Não, respondeu a moça.

— Vai ouvir uma ação bonita.

— Não vale a pena, interrompeu Fortunato.

— A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico.

       Contou o caso da Rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente
estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se
acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia
com indiferença.
    No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos
os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma,
um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva
e oblíqua; o riso dele era jovial e franco.
"Singular homem!" pensou Garcia.

       Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico
restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas
raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum
dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.

— Valeu? perguntou Fortunato.

— Valeu o quê?

— Vamos fundar uma casa de saúde?

— Não valeu nada; estou brincando.

— Podia-se fazer alguma coisa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que
seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve.

     Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a idéia tinha-se metido na cabeça ao
outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estréia para ele, e
podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi
uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a idéia
de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas
não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa.

     Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta
a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo,
ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas.
   Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da Rua D. Manoel não era
um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir
como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia
aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou
da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as
operações, e nenhum outro curava os cáusticos.

— Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.

   A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se
familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida
de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe

duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando
ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou
tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no
coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo, para que entre ele e Fortunato não
houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo;
Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu
por achada.

    No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos
do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e
fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães.
Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para
casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não
podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como coisa sua, alcançasse
do marido a cessação de tais experiências.

— Mas a senhora mesma...

Maria Luísa acudiu, sorrindo:
— Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor,
como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz...

   Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi
fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa
agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver
padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma
coisa, ela respondeu que nada.

— Deixe ver o pulso.

— Não tenho nada.

   Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que
ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em
tempo.

   Dois dias depois, — exatamente o dia em que os vemos agora, — Garcia foi lá
jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou
para ali: ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita.

— Que é? perguntou-lhe.

— O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.

    Garcia lembrou-se que, na véspera, ouvira ao Fortunado queixar-se de um rato,
que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu
Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera
um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da
mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela
cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou,
Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a
chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já
lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.

— Mate-o logo! disse-lhe.

— Já vai.

    E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a

delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e
fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se,
guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia
desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir
que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem
impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar
a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com
os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo
pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se
pudesse, alguns farrapos de vida.

      Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara
do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e
profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma
estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe,
e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não
estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo.

     A chama ia morrendo, o rato podia ser
que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o
para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou
cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue.
Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se
enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente
era fingida.

  "Castiga sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação
de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem".
Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de
tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem
dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava
a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade,
um diletantismo
sui generis, uma redução de Calígula.

     Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela,
rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:
— Fracalhona!

E voltando-se para o médico:
— Há de crer que quase desmaiou?

     Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi
sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual
a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado
de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto,
o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi
alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não
estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas
possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e
cuidou de os vigiar.

     Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a
máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar
um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras
a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não
poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos.

Mas foi tudo vão. A doença era mortal.

    Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do
marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e
frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições
da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de
morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto
de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela
expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.
De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer,
ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o
próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco.

— Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.

        Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte
  minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que
se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a
parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado.

        Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns
instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo,
inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta.
Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um
livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe
não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao
ressentimento. Olhou assombrado, mordendo os beiços.

       Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então
não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as
lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável
desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de
dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.
  




A CAUSA SECRETA, CONTOS FLUMINENSES, MACHADO DE ASSIS

24/02/2018

Um menino de paixões de ópera, Nelson Rodrigues


Bem me lembro dos meus cinco, seis anos. O vizinho era, então, todo
o meu horizonte humano. Ainda vejo as pessoas que moravam ao nosso
lado, ou em frente, ou na esquina. Os sujeitos se cumprimentavam assim: —
“Bom dia, vizinho. Como vai, vizinho?”. E a simples palavra tinha uma
tensão, um frêmito, uma magia. Era como se “vizinho” fosse um enfático
nome wagneriano, uma espécie de Lohengrin prodigioso.
O mundo era aquela meia dúzia de vizinhos. E justamente a Lili veio
morar duas ou três casas adiante da minha. Hoje ninguém se chama Lili. Lili
é um nome nostálgico, obsoleto, espectral. Naquele tempo, não. Em cada ma
havia uma Lili, ou duas ou, até, três. Havia um pó-de-arroz que se chamava
Lili. Minto. Não era Lili, era Lady. Também havia Odetes por toda a parte.
Ao passo que, hoje, somos um povo de poucas Odetes.
Lili. Conheci o nome antes da pessoa. Um dia, eu estava na mesa,
tomando café com macaxeira. E, então, alguém falou em Lili. Achei o nome
lindo. Lili. Aquilo ficou gorjeando em mim. Faço, porém, a ressalva: — aos
cinco, seis anos, não se faz nenhuma seleção auditiva. Para mim, qualquer
nome era bonito. Morava na rua Dona Maria um “seu” Sepúlveda. Era
capitão da Guarda Nacional e tinha bigodões. Sepúlveda, ou qualquer outro
nome, vem com um halo de mistério, de graça e de espanto. Que vontade
tive de me chamar Sepúlveda!
E Lili foi, exatamente, a minha primeira paixão de menino. Antes de
vê-la, eu a amei. Amei o puro nome, o puro som. Era a primeira Lili da
minha infância. Cinco anos tinha eu. Ou seis. Vá lá, seis. Sentia que aquele
nome insinuava um mistério ou, mais do que isso, um destino. Fui varado
por um sentimento de pena e de medo. Como se Lili fosse alguém que já
morreu e que só aparece, por um momento, na memória dos espelhos.
Até que, uma manhã, ou tarde, sei lá, eu a vi. E, de repente, Lili
deixou de ser apenas um som. Passava a ter um olhar, um perfil, um gesto. E
era gorda. Lili gorda. Hoje, ninguém vê uma gorda sem lhe acrescentar um

ponto de exclamação. Vivemos uma época tão sem busto, tão sem quadris,
que ninguém entenderia a Lili de 1918. Os homens eram magros, tinham a
face e o peito cavos. Mas a mulher podia ser gorda, ou, melhor, devia ser
gorda. A partir dos catorze anos, os quadris e os bustos explodiam. Simples
adolescentes tinham os flancos tão pesados que precisavam se pôr de perfil
para atravessar as portas. Lili era a gorda em flor, como a mulher do Lemos,
e outras, e outras.
Agora já sei a minha verdadeira idade, na época: seis anos. Sim, tinha
seis anos quando fui matriculado na escola pública, turno da manhã. A casa
de Lili ficava no caminho da escola. E não era bem casa, ou por outra, eu só
me lembro da janela, em que ela se debruçava, pendida de sonho. (Eu diria
que, em nossos dias, a televisão matou a janela.) Mas, como ia dizendo:
todas as manhãs passava eu com o meu livro, o meu caderno, meu lápis e a
merenda (geralmente uma banana). Quando via Lili, baixava a cabeça,
transido de vergonha, e deslizava rente à parede. O patético da escola era
quando eu passava na ida e quando passava na volta. Se ela estava na janela,
a minha felicidade era mortal. Lembro-me de que, uma manhã, a professora
me chamou para o quadro-negro. Eu devia desenhar uma flor, ou pintar,
não sei. Quando fui apanhar o giz, a professora me puxou: — “Menino, você
não lava as orelhas, menino?”. E fez um escândalo para a classe: — “Nunca
tomou banho?”. Exultava: — “Olha aqui o pescoço! Vem cá. Deixa eu ver as
unhas. Mostra, anda!”. Naquele momento, tive a sensação da nudez pública.
Nunca me senti tão nu. A professora está dizendo: — “Se aparecer aqui
outra vez de orelha suja, fica de castigo”. E eu só pensava em Lili. Que
alguém fosse dizer a Lili: — “Menino porco”.
(Estou falando muito de mim mesmo.) Mais alguns dias e começo a
ouvir gritos. Gritos de mulher varavam a rua, de ponta a ponta. Toda a
vizinhança veio para a janela. E ouvi alguém dizer: — “É a Lili que está
apanhando”. A menina tinha um pai de Amor de perdição, sim, um pai de
Camilo Castelo Branco. Minha mãe pergunta: — “Está sentindo alguma
coisa?”. Eu devia estar branco. Pouco depois saí para a escola. E pela
primeira vez parei na calçada de Lili. O pai batia de cinto. Da rua, ouvia-se o
cinto cantar na carne. A menina berrava: — “Não, papai, não!”. E o velho,
possesso: — “Engole o choro! Engole o choro!”.
Aquilo ficou em mim para sempre. Engole o choro. Eu, fascinado, não
saía do lugar. E, súbito, o velho parou de bater. Lili ficou gemendo, baixo e

doce: — “Papaizinho, papaizinho!”. E havia uma voluptuosidade triste no
seu lamento. Só então saí correndo para o colégio.
Chego no colégio. A professora me chama: — “Deixa eu ver. Vem cá.
Limpou as orelhas? E o pescoço?”. Baixei a vista: — “Tomei banho, sim”.
Pegou-me pelo braço e me sacudiu: — “Diga sim, senhora. Não tem
educação?”. E eu: — “Sim, senhora”. Mas ela ainda bufava: — “Você não se
esfrega direito. Precisa aprender a tomar banho”. Passou. Fui para meu
banco. Até o fim da aula teci toda uma fantasia fúnebre. Sonhava com a
minha morte. Se eu morresse, Lili teria pena de mim, amor por mim.
Quando eu passei pela casa de Lili, ela estava na janela. Cantarolava:
— “Cobre, me cobre, que eu tenho frio”. Claro que me escapava toda a
insinuação erótica do verso. Vim namorando o som. “Cobre, me cobre, que
eu tenho frio.” Em casa, falavam da surra de Lili. Conheci, então, toda a
história. Lili amava um rapaz do bairro, Paulinho Varanda. (Encantou-me
esse nome bucólico, ventilado, paisagístico.) E o pai não queria o namoro.
Paulinho Varanda não seria pior nem melhor do que ninguém. Mas tinha
um defeito hediondo para a época: era tuberculoso.
Estou vendo o Paulinho Varanda. Tinha a cara crivada de espinhas
como bexiga. Ficava horas na esquina, estivesse a pequena na janela ou não.
Quando estava resfriado, enrolava um lenço no pescoço. Ainda o ouço
tossindo. E tinha, na tosse, o olho enorme do asfixiado. Talvez Lili o amasse
por isso mesmo, pela tuberculose e pelas espinhas. Devia morrer de ternura
quando o via torcer-se e retorcer-se, em acessos medonhos. Um dia, na volta
da escola, o Paulinho Varanda me segura. Pergunta: — “Quer ganhar um
tostão?”. Respondi, assustado: — “Quero”. E ele: — “Está vendo aquela
moça? Que está na janela? Vai lá e entrega isso. Toma”. Deu-me o tostão e
um bilhete. Numa felicidade total, corri. Disse: — “Aquele moço mandou”.
Lili apanhou rápido o bilhete e fugiu da janela.
Até hoje não sei o que dizia o bilhete. Devia ser um apelo muito triste,
ou um adeus, quem sabe? Só sei que, de noite, toda a rua começou a ouvir os
gritos de Lili. Desta vez, não era surra.
[12/12/1967]
  

A grande dor não se assoa, Nelson Rodrigues


A grande dor não se assoa. Eis uma verdade eterna. Não se assoa.
Falei, no capítulo anterior, da senhora do Lemos ou, como era mais
conhecido, “Lemos Bexiga”. Com frenética e acrobática agilidade, deu um
pulo impossível e caiu montada, solidamente montada, no caixão. Mas não é
bem isso que eu queria dizer.
O que eu queria dizer é que, da morte do Lemos até o fim do velório,
ela não usou lenço uma única e escassa vez. Há também um pranto nasal. E
a coriza da viuvez muito chorada costuma ser inestancável. Pois bem. E
quando algum imprudente queria oferecer-lhe um lenço, a viúva tinha
repelões selvagens. Parecia-lhe que o simples fato de assoar-se seria uma
desfeita ao marido morto.
Mas coisa curiosa e, ao mesmo tempo, confrangedora. Ao descrever
essa viuvez acrobática que pula num caixão, e o cavalga, dou-me conta de
que, sem o querer, estou apresentando uma dor caricatural. De mais a mais,
para exasperar o impacto humorístico, a senhora do Lemos era uma gorda.
(As vizinhas da minha infância eram fatalmente gordas.) Eis o que me
pergunto, com justo pânico: — não estarei fazendo um involuntário
deboche?
Nem tanto, nem tanto e pelo contrário. Acaba de me ocorrer uma
verdade realmente patética: — a grande dor não só não se assoa, como é
humorística. O meu amigo Hugo Cota dos Santos dá-me, a propósito, um
testemunho altamente válido. Durante muitos anos, foi ele — e não sei se
ainda o é — cirurgião do Pronto-Socorro. Um cirurgião do Pronto-Socorro vê
tudo e faz tudo. A toda hora, chegava um crioulão de barriga estourada. Por
vezes, o nosso Hugo fazia milagres deslavados.
Assim aprendeu que a verdadeira dor tem de ser humorística. O
Hugo viu coisas assim: — chegava um acidentado. Era um rapaz, ou uma
menina, ou a noiva de não sei quem, ou a mãe de Fulano. A vítima está na
mesa. Não há, a bem dizer, um osso intato. Tudo é fratura. Os vasos

explodem. O sangue esguicha. No corredor, amontoam-se os parentes, os
vizinhos, amigos, o diabo. Até que o cirurgião pára. Ali, nem milagre. E
agora é dar a notícia à família, que espera do lado de fora.
Nem é preciso dizer. De repente, todos sabem. Sabem antes da notícia.
Morreu, morreu e pronto. O dr. Hugo viu a mesma cena duzentas vezes. As
grandes dores se parecem e têm o mesmo repertório de gemidos, uivos,
caras, gestos, fúrias e blasfêmias. O meu amigo conta a morte de um menino
atropelado. Uns vinte parentes no corredor. Quando o dr. Hugo apareceu,
vê esta coisa: — mãe, tias, irmãos, cunhadas, dançavam, simplesmente
dançavam. E, então, o médico descobriu tudo. A grande dor — a dor sem
consolo terreno — dança mambo. Era exatamente mambo. As pessoas
pulavam, chocalhavam, tinham espasmos de mambo.
Portanto, a senhora do “Lemos Bexiga” estava humoristicamente certa
quando repudiava os lenços e quando montava, fisicamente, no caixão. Bem.
Agora vou tratar da carta do Otto e de suas relações com a velhíssima dor
humana. Antes, porém, quero referir um outro episódio que me marcou
para o resto da vida. Foi quando verifiquei o seguinte: — o ser humano, tal
como o imaginamos, não existe. Imaginem vocês que, há quatro ou cinco
anos, fazia eu diariamente, na televisão, um programa assim chamado: — A
Figura do Dia. A “figura” tanto podia ser uma pessoa como um fato.
E, certa vez, “a figura do dia” foi um noivo que acabava de ser
assassinado na Argentina. O telegrama dava conta de tudo e chegava ao
requinte da minúcia hedionda. “Bom assunto, bom assunto”, pensei eu.
Diante das câmaras e dos refletores, e falando para umas seiscentas mil
pessoas, contei tudo. Vamos ao fato. Certa família de lá celebrou, com um
jantar, o noivado da filha única. Sentou-se o noivo, ao lado da menina, numa
mesa patriarcal. Presentes o pai da moça, a mãe, os irmãos e só. Pratos na
mesa, talheres. E nada de comida.
Dez minutos, quinze, vinte. E, então, ergue-se o dono da casa. Diz: —
“Não há comida. Portanto, um de nós será servido”. Os presentes riram; mas
a fome era uma realidade. Tudo aconteceu numa progressão fulminante.
Veio alguém por trás do noivo e deu-lhe uma cacetada de pôr abaixo um
edifício. O rapaz morreu na hora, sem um suspiro. Estava morto. E, então,
toda a família, inclusive a noiva, caiu sobre o corpo. Em quarenta minutos, o
rapaz foi devorado. Nem os sapatos sobreviveram.
Era o horror indubitável, inédito, jamais concebido por Edgar Allan

Poe. E, no entanto, vejam vocês: — eu contava a história e, já no meio,
começou o riso. Quando a vítima levou a cacetada, o estúdio foi varrido por
uma gargalhada universal. Riam o câmara, o contra-regra, o acendedor de
refletores, o faxineiro, todo o pessoal da técnica. Isso na própria estação. Lá
fora, nem se fala. Seiscentos mil telespectadores esganiçavam a própria
gargalhada. Nunca se riu tanto numa cidade.
Tudo por quê? Era o horror e, ao mesmo tempo, não havia horror
nenhum. E, de repente, eu próprio achava engraçadíssimo o horror. Lembrome da cena final que descrevi, sem lhe tirar um miserável detalhe: — a
noiva, atracada ao calçado da vítima, chupando-lhe os cordões dos sapatos
como aspargos. Conheço uma senhora que ouviu o referido programa. Não
há em toda a sua família um único caso de asma. Pois ela apanhou asma de
tanto rir nessa noite.
Volto, finalmente, à carta do Otto. Não queria que o meu amigo desse,
sobre o Guimarães Rosa, um testemunho de admirador. As admirações são
pérfidas e, via de regra, escondem o nosso ressentimento e a nossa
impotência. O Otto devia esquecer o grande homem. O morto é o contínuo,
o profundo contínuo, o contínuo total. Não, não. O morto é o “Lemos
Bexiga”, e como tal deve ser amado e chorado.
Mas, em toda a sua carta, o Guimarães Rosa é apenas o grande
homem. O ficcionista está solene, hierático, como um mordomo de filme. E
realmente o Otto o admira, sem realmente chorá-lo. Na véspera de partir
para Lisboa, ele trancou-se no banheiro do Hélio Pellegrino. E, lá, num
espasmo total de solidão, chorou como nunca. Na frente do Hélio ele dançou
mambo de dor, E não se assoou. Aí é que está: — até a última lágrima, não
aceitou nenhum lenço.
Li toda a carta e a reli. A admiração lá estava, perfeita, irretocável.
Mas repito: — em nenhum momento, o Guimarães Rosa foi, para o Otto, um
doce e irremediável “Lemos Bexiga”. Guardei no envelope a carta com toda
a sua deliciosa afetação do sotaque lisboeta. E, então, comecei a pensar em
Lili. Sim, Lili, a paixão de tantos.
[11/12/1967]
 

18/02/2018

A Desejada Das Gentes, Machado de Assis


— Ah! conselheiro, aí começa a falar em verso.

— Todos os homens devem ter uma lira no coração, — ou não sejam homens. Que
a lira ressoe a toda a hora, nem por qualquer motivo, não o digo eu, mas de longe
em longe, e por algumas reminiscências particulares... Sabe por que é que lhe
pareço poeta, apesar das Ordenações do Reino e dos cabelos grisalhos? é porque
vamos por esta Glória adiante, costeando aqui a Secretaria de Estrangeiros... Lá
está o outeiro célebre... Adiante há uma casa...
— Vamos andando.

— Vamos... Divina Quintília! Todas essas caras que aí passam são outras, mas
falam-me daquele tempo, como se fossem as mesmas de outrora; é a lira que
ressoa, e a imaginação faz o resto. Divina Quintília!

— Chamava-se Quintília? Conheci de vista, quando andava na Escola de Medicina,
uma linda moça com esse nome. Diziam que era a mais bela da cidade.

— Há de ser a mesma, porque tinha essa fama. Magra e alta?

— Isso. Que fim levou?

— Morreu em 1859. Vinte de abril. Nunca me há de esquecer esse dia. Vou
contar-lhe um caso interessante para mim, e creio que também para o senhor.
Olhe, a casa era aquela... Morava com um tio, chefe de esquadra reformado; tinha
outra casa no Cosme Velho. Quando conheci Quintília... Que idade pensa que
teria, quando a conheci?
— Se foi em 1855...

— Em 1855.

— Devia ter vinte anos.

— Tinha trinta.

— Trinta?

— Trinta anos. Não os parecia, nem era nenhuma inimiga que lhe dava essa
idade. Ela própria a confessava e até com afetação. Ao contrário, uma de suas
amigas afirmava que Quintília não passava dos vinte e sete; mas como ambas
tinham nascido no mesmo dia, dizia isso para diminuir-se a si própria.

— Mau, nada de ironias; olhe que a ironia não faz boa cama com a saudade.

— Que é a saudade senão uma ironia do tempo e da fortuna? Veja lá; começo a
ficar sentencioso. Trinta anos; mas em verdade, não os parecia. Lembra-se bem
que era magra e alta; tinha os olhos como eu então dizia, que pareciam cortados
da capa da última noite, mas apesar de noturnos, sem mistérios nem abismos. A
voz era brandíssima, um tanto apaulistada, a boca larga, e os dentes, quando ela
simplesmente falava, davam-lhe à boca um ar de riso. Ria também, e foram os
risos dela, de parceria com os olhos, que me doeram muito durante certo tempo.
— Mas se os olhos não tinham mistérios...

— Tanto não os tinham que cheguei ao ponto de supor que eram as portas
abertas do castelo, e o riso o clarim que chamava os cavaleiros. Já a conhecíamos,
eu e o meu companheiro de escritório, o João Nóbrega, ambos principiantes na
advocacia, e íntimos como ninguém mais; mas nunca nos lembrou namorá-la. Ela
andava então no galarim; era bela, rica, elegante, e da primeira roda. Mas um dia,
no antigo Teatro Provisório entre dois atos dos Puritanos, estando eu num
corredor, ouvi um grupo de moços que falavam dela, como de uma fortaleza
inexpugnável. Dois confessaram haver tentado alguma coisa, mas sem fruto; e
todos pasmavam do celibato da moça que lhes parecia sem explicação. E
chalaceavam: um dizia que era promessa até ver se engordava primeiro; outro
que estava esperando a segunda mocidade do tio para casar com ele; outro que
provavelmente encomendara algum anjo ao porteiro do céu; trivialidades que me
aborreceram muito, e da parte dos que confessavam tê-la cortejado ou amado,
achei que era uma grosseria sem nome. No que eles estavam todos de acordo é
que ela era extraordinariamente bela; aí foram entusiastas e sinceros.
— Oh! ainda me lembro!... era muito bonita.

— No dia seguinte, ao chegar ao escritório, entre duas causas que não vinham,
contei ao Nóbrega a conversação da véspera. Nóbrega riu-se do caso, refletiu, e
depois de dar alguns passos, parou diante de mim, olhando, calado. — Aposto que
a namoras? perguntei-lhe. — Não, disse ele; nem tu? Pois lembrou-me uma coisa:
vamos tentar o assalto à fortaleza? Que perdemos com isso? Nada; ou ela nos põe
na rua, e já podemos esperá-lo, ou aceita um de nós, e tanto melhor para o outro
que verá o seu amigo feliz. — Estás falando sério? — Muito sério. — Nóbrega
acrescentou que não era só a beleza dela que a fazia atraente. Note que ele tinha
a presunção de ser espírito prático, mas era principalmente um sonhador que vivia
lendo e construindo aparelhos sociais e políticos. Segundo ele, os tais rapazes do
teatro evitavam falar dos bens da moça, que eram um dos feitiços dela, e uma
das causas prováveis da desconsolação de uns e dos sarcasmos de todos. E diziame: — Escuta, nem divinizar o dinheiro, nem também bani-lo; não vamos crer
que ele dá tudo, mas reconheçamos que dá alguma coisa e até muita coisa, —
este relógio, por exemplo. Combatamos pela nossa Quintília, minha ou tua, mas
provavelmente minha, porque sou mais bonito que tu.
— Conselheiro, a confissão é grave; foi assim brincando...?

— Foi assim brincando, cheirando ainda aos bancos da academia, que nos
metemos em negócio de tanta ponderação, que podia acabar em nada, mas deu
muito de si. Era um começo estouvado, quase um passatempo de crianças, sem a
nota da sinceridade; mas o homem põe e a espécie dispõe. Conhecíamo-la, posto
não tivéssemos encontros freqüentes; uma vez que nos dispusemos a uma ação
comum, entrou um elemento novo na nossa vida, e dentro de um mês estávamos
brigados.

— Brigados?

— Ou quase. Não tínhamos contado com ela, que nos enfeitiçou a ambos,
violentamente. Em algumas semanas já pouco falávamos de Quintília, e com
indiferença; tratávamos de enganar um ao outro e dissimular o que sentíamos. Foi
assim que as nossas relações se dissolveram, no fim de seis meses, sem ódio,
nem luta, nem demonstração externa, porque ainda nos falávamos, onde o acaso
nos reunia; mas já então tínhamos banca separada.
— Começo a ver uma pontinha do drama...

— Tragédia, diga tragédia; porque daí a pouco tempo, ou por desengano verbal
que ela lhe desse, ou por desespero de vencer, Nóbrega deixou-me só em campo.
Arranjou uma nomeação de juiz municipal lá para os sertões da Bahia, onde
definhou e morreu antes de acabar o quatriênio. E juro-lhe que não foi o inculcado
espírito prático de Nóbrega que o separou de mim; ele, que tanto falara das
vantagens do dinheiro, morreu apaixonado como um simples Werther.

— Menos a pistola.

Também o veneno mata; e o amor de Quintília podia dizer-se alguma coisa
parecido com isso; foi o que o matou, e o que ainda hoje me dói... Mas, vejo pelo
seu dito que o estou aborrecendo...

— Pelo amor de Deus. Juro-lhe que não; foi uma graçola que me escapou. Vamos
adiante, conselheiro; ficou só em campo.

— Quintília não deixava ninguém estar só em campo, — não digo por ela, mas
pelos outros. Muitos vinham ali tomar um cálix de esperanças, e iam cear a outra
parte. Ela não favorecia a um mais que a outro; mas era lhana, graciosa e tinha
essa espécie de olhos derramados que não foram feitos para homens ciumentos.

     Tive ciúmes amargos e, às vezes, terríveis. Todo argueiro me parecia um
cavaleiro, e todo cavaleiro um diabo. Afinal acostumei-me a ver que eram
passageiros de um dia. Outros me metiam mais medo, eram os que vinham
dentro da luva das amigas. Creio que houve duas ou três negociações dessas, mas
sem resultado. Quintília declarou que nada faria sem consultar o tio, e o tio
aconselhou a recusa, — coisa que ela sabia de antemão. O bom velho não gostava
nunca da visita de homens, com receio de que a sobrinha escolhesse algum e
casasse. Estava tão acostumado a trazê-la ao pé de si, como uma muleta da velha
alma aleijada, que temia perdê-la inteiramente.

— Não seria essa a causa da isenção sistemática da moça?

— Vai ver que não.

— O que noto é que o senhor era mais teimoso que os outros...

— ...Iludido, a princípio, porque no meio de tantas candidaturas malogradas,
Quintília preferia-me a todos os outros homens, e conversava comigo mais
largamente e mais intimamente, a tal ponto que chegou a correr que nos
casávamos.
— Mas conversavam de quê?

— De tudo o que ela não conversava com os outros; e era de fazer pasmar que
uma pessoa tão amiga de bailes e passeios, de valsar e rir, fosse comigo tão
severa e grave, tão diferente do que costumava ou parecia ser.

— A razão é clara: achava a sua conversação menos insossa que a dos outros
homens.

— Obrigado; era mais profunda a causa da diferença, e a diferença ia-se

acentuando com os tempos. Quando a vida cá embaixo a aborrecia muito, ia para
o Cosme Velho, e ali as nossas conversações eram mais freqüentes e compridas.
Não lhe posso dizer, nem o senhor compreenderia nada, o que foram as horas que
ali passei, incorporando na minha vida toda a vida que jorrava dela. Muitas vezes
quis dizer-lhe o que sentia, mas as palavras tinham medo e ficavam no coração.
Escrevi cartas sobre cartas; todas me pareciam frias, difusas, ou inchadas de
estilo. Demais, ela não dava ensejo a nada, tinha um ar de velha amiga. No
princípio de 1857 adoeceu meu pai em Itaboraí; corri a vê-lo, achei-o moribundo.
Este fato reteve-me fora da Corte uns quatro meses. Voltei pelos fins de maio.
Quintília recebeu-me triste da minha tristeza, e vi claramente que o meu luto
passara aos olhos dela...

— Mas que era isso senão amor?

— Assim o cri, e dispus a minha vida para desposá-la. Nisto, adoeceu o tio
gravemente. Quintília não ficava só, se ele morresse, porque, além dos muitos
parentes espalhados que tinha, morava com ela agora, na casa da Rua do Catete,
uma prima, D. Ana, viúva; mas, é certo que a afeição principal ia-se embora e
nessa transição da vida presente à vida ulterior podia eu alcançar o que desejava.
A moléstia do tio foi breve; ajudada da velhice, levou-o em duas semanas. Digolhe aqui que a morte dele lembrou-me a de meu pai, e a dor que então senti foi
quase a mesma. 

   Quintília viu-me padecer, compreendeu o duplo motivo, e,
segundo me disse depois, estimou a coincidência do golpe, uma vez que tínhamos
de o receber sem falta e tão breve. A palavra pareceu-me um convite
matrimonial; dois meses depois cuidei de pedi-la em casamento. D. Ana ficara
morando com ela e estavam no Cosme Velho. Fui ali, achei-as juntas no terraço,
que ficava perto da montanha. Eram quatro horas da tarde de um domingo. D.
Ana, que nos presumia namorados, deixou-nos o campo livre.

— Enfim!

— No terraço, lugar solitário, e posso dizer agreste, proferi a primeira palavra. O
meu plano era justamente precipitar tudo, com medo de que, cinco minutos de
conversa me tirassem as forças. Ainda assim, não sabe o que me custou; custaria
menos uma batalha, e juro-lhe que não nasci para guerras. Mas aquela mulher
magrinha e delicada impunha-se-me, como nenhuma outra, antes e depois...

— E então?

— Quintília adivinhara, pelo transtorno do meu rosto, o que lhe ia pedir, e deixoume falar para preparar a resposta. A resposta foi interrogativa e negativa. Casar
para quê? Era melhor que ficássemos amigos como dantes. Respondi-lhe que a
amizade era, em mim, desde muito, a simples sentinela do amor; não podendo
mais contê-lo, deixou que ele saísse. Quintília sorriu da metáfora, o que me doeu,
e sem razão; ela, vendo o efeito, fez-se outra vez séria e tratou de persuadir-me
de que era melhor não casar. — Estou velha, disse ela; vou em trinta e três anos.
— Mas se eu a amo assim mesmo, repliquei, e disse-lhe uma porção de coisas,
que não poderia repetir agora. Quintília refletiu um instante; depois insistiu nas
relações de amizade; disse que, posto que mais moço que ela, tinha a gravidade
de um homem mais velho e inspirava-lhe confiança como nenhum outro.

      Desesperançado, dei algumas passadas, depois sentei-me outra vez e narrei-lhe
tudo. Ao saber da minha briga com o amigo e companheiro da academia, e a
separação em que ficamos, sentiu-se, não sei se diga, magoada ou irritada.
Censurou-nos a ambos, não valia a pena que chegássemos a tal ponto. — A
senhora diz isso porque não sente a mesma coisa. — Mas então é um delírio? —
Creio que sim; o que lhe afianço é que ainda agora, se fosse necessário, separarme-ia dele uma e cem vezes; e creio poder afirmar-lhe que ele faria a mesma
coisa.

    Aqui olhou ela espantada para mim, como se olha para uma pessoa cujas
faculdades parecem transtornadas; depois abanou a cabeça, e repetiu que fora
um erro; não valia a pena. — Fiquemos amigos, disse-me, estendendo a mão. — É

impossível; pede-me coisa superior às minhas forças, nunca poderei ver na
senhora uma simples amiga; não desejo impor-lhe nada; dir-lhe-ei até que nem
mais insisto, porque não aceitaria outra resposta agora. Trocamos ainda algumas
palavras, e retirei-me... Veja a minha mão.

— Treme-lhe ainda...

— E não lhe contei tudo. Não lhe digo aqui os aborrecimentos que tive, nem a dor
e o despeito que me ficaram. Estava arrependido, zangado, devia ter provocado
aquele desengano desde as primeiras semanas; mas a culpa foi da esperança, que
é uma planta daninha, que me comeu o lugar de outras plantas melhores. No fim
de cinco dias saí para Itaboraí, onde me chamaram alguns interesses do
inventário de meu pai. Quando voltei, três semanas depois, achei em casa uma
carta de Quintília.

— Oh!

— Abri-a alvoroçadamente: datava de quatro dias. Era longa; aludia aos últimos
sucessos, e dizia coisas meigas e graves. Quintília afirmava ter esperado por mim
todos os dias, não cuidando que eu levasse o egoísmo até não voltar lá mais, por
isso escrevia-me, pedindo que fizesse dos meus sentimentos pessoais e sem eco
uma página de história acabada; que ficasse só o amigo, e lá fosse ver a sua
amiga. E concluía com estas singulares palavras: "Quer uma garantia? Juro-lhe
que não casarei nunca”.
  
   Compreendi que um vínculo de simpatia moral nos ligava
um ao outro; com a diferença que o que era em mim paixão específica, era nela
uma simples eleição de caráter. 

   Éramos dois sócios, que entravam no comércio da
vida com diferente capital: eu, tudo o que possuía; ela, quase um óbolo. Respondi
à carta dela nesse sentido; e declarei que era tal a minha obediência e o meu
amor, que cedia, mas de má vontade, porque, depois do que se passara entre
nós, ia sentir-me humilhado. Risquei a palavra ridículo, já escrita, para poder ir
vê-la sem este vexame; bastava o outro.

— Aposto que seguiu atrás da carta? É o que eu faria, porque essa moça, ou eu
me engano ou estava morta por casar com o senhor.

— Deixe a sua fisiologia usual; este caso é particularíssimo.

— Deixe-me adivinhar o resto; o juramento era um anzol místico; depois, o
senhor, que o recebera, podia desobrigá-la dele, uma vez que aproveitasse com a
absolvição. Mas, enfim, correr à casa dele.

— Não corri; fui dois dias depois. No intervalo, respondeu ela à minha carta com
um bilhete carinhoso, que rematava com esta idéia: "não fale de humilhação,
onde não houve público." Fui, voltei uma e mais vezes e restabeleceram-se as
nossas relações. Não se falou em nada; ao princípio, custou-me muito parecer o
que era dantes; depois, o demônio da esperança veio pousar outra vez no meu
coração; e, sem nada exprimir, cuidei que um dia, um dia tarde, ela viesse a casar
comigo. E foi essa esperança que me retificou aos meus próprios olhos, na
situação em que me achava. Os boatos de nosso casamento correram mundo.

     Chegaram aos nossos ouvidos; eu negava formalmente e sério; ela dava de
ombros e ria. Foi essa fase da nossa vida a mais serena para mim, salvo um
incidente curto, um diplomata austríaco ou não sei que, rapagão, elegante, ruivo,
olhos grandes e atrativos, e fidalgo ainda por cima. Quintília mostrou-se-lhe tão
graciosa, que ele cuidou estar aceito, e tratou de ir adiante.
   Creio que algum gesto
meu, inconsciente, ou então um pouco da percepção fina que o céu lhe dera,
levou depressa o desengano à legação austríaca. Pouco depois ela adoeceu; e foi
então que a nossa intimidade cresceu de vulto. Ela, enquanto se tratava, resolveu
não sair, e isso mesmo lhe disseram os médicos. Lá passava eu muitas horas
diariamente. Ou elas tocavam, ou jogávamos os três, ou então lia-se alguma
coisa; a maior parte das vezes conversávamos somente. Foi então que a estudei

muito; escutando as suas leituras vi que os livros puramente amorosos achava-os
incompreensíveis, e, se as paixões aí eram violentas, largava-os com tédio. Não
falava assim por ignorante; tinha notícia vaga das paixões, e assistira a algumas
alheias.

— De que moléstia padecia?

— Da espinha. Os médicos diziam que a moléstia não era talvez recente, e ia
tocando o ponto melindroso. Chegamos assim a 1859. Desde março desse ano a
moléstia agravou-se muito; teve uma pequena parada, mas para os fins do mês
chegou ao estado desesperador. Nunca vi depois criatura mais enérgica diante da
iminente catástrofe; estava então de uma magreza transparente, quase fluida; ria,
ou antes, sorria apenas, e vendo que eu escondia as minhas lágrimas, apertava-me as mãos agradecida.   

  Um dia, estando só com o médico, perguntou-lhe a
verdade; ele ia mentir; ela disse-lhe que era inútil, que estava perdida. — Perdida,
não, murmurou o médico. — Jura que não estou perdida? — Ele hesitou, ela
agradeceu-lho. Uma vez certa que morria, ordenou o que prometera a si mesma.

— Casou com o senhor, aposto?

— Não me relembre essa triste cerimônia; ou antes, deixe-me relembrá-la, porque
me traz algum alento do passado. Não aceitou recusas nem pedidos meus; casou
comigo à beira da morte. Foi no dia 18 de abril de 1859. Passei os últimos dois
dias, até 20 de abril ao pé da minha noiva moribunda, e abracei-a pela primeira
vez feita cadáver.

— Tudo isso é bem esquisito.

— Não sei o que dirá a sua fisiologia. A minha, que é de profano, crê que aquela
moça tinha ao casamento uma aversão puramente física. Casou meio defunta, às
portas do nada. Chame-lhe monstro, se quer, mas acrescente divino.
  



A DESEJADA DAS GENTES, Contos Fluminenses, Machado de Assis

17/02/2018

O Grande Homem, Nelson Rodrigues


Sou um obsessivo e volto a falar de Guimarães Rosa. O que me feriu,
na morte do ficcionista, foi a aridez do seu velório. Sei, evidente, que a
visitação não parou. Como se saía e como se entrava! E, coisa curiosa: não
senti, nas caras presentes, nenhum sentimento maior. Fora a família, só vi
duas pessoas marcadas pelo espanto da morte: — Franklin de Oliveira e
Gustavo Corção.
(Parece uma perversidade pôr, lado a lado, e chorando o mesmo
morto, duas figuras tão dessemelhantes.) Passei na Academia uns dez,
quinze minutos; e saí de lá certo de que o grande homem é o menos amado
dos seres. O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já
o desumaniza. Por exemplo: — um ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato
de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não
entranhas vivas.
Vou concluir: — o velório de Guimarães Rosa teria de ser fatalmente
frio por se tratar de um grande morto. Fosse ele um Lemos qualquer, e teria,
não uma apoteose crítica, mas lágrimas inumeráveis. Sem querer, disse o
nome certo: — Lemos. Esse Lemos existiu e, se não me engano, trabalhava
na Casa da Moeda (na Casa da Moeda ou na Imprensa Nacional).
Vejamos o nome: — Lemos. Lemos, como Oliveira, é nome de vizinho.
Um sujeito que se chama Lemos só pode ser vizinho; e o citado morava na
casa ao lado da minha. Era ainda em Aldeia Campista. Um patusco e pior: —
homem de vir, para o meio-fio, de pijama, aparar os calos com gilete. E fazia
isso com um deleite, um requinte, um lavor inexcedíveis. Outro dado
biográfico: — mal sabia assinar o nome.
Pois um dia o Lemos morreu. Teve, em pleno expediente, isso que o
repórter chama de “mal súbito”. E morreu. Eu era garoto e essa morte foi um
dos espantos da minha infância. Aldeia Campista parou por causa do
Lemos. Nunca vi ninguém tão chorado. Veio gente da Pavuna, de Quintino,
do Encantado. Favelados desceram.

Desde garotinho que eu sou um fascinado por qualquer dor, inclusive
as físicas. E posso dizer que não houve, no velório do Lemos, ninguém
omisso, indiferente ou frívolo. As pessoas que lá entravam começavam a
estrebuchar, a bater com os pés, como em transe mediúnico. Perdi a conta
dos ataques. E, na hora de fechar o caixão, foi espantoso.
Eis o fato: — com súbita e frenética agilidade, a viúva deu um pulo
inverossímil. Deu um pulo e montou, solidamente, no caixão. Era uma
senhora gorda e fez isso. Teve que ser arrastada por uns dez. Fecho os olhos
e ouço os seus gritos: — “Quero ser enterrada com o Lemos!”. E esganiçava
o apelo: — “Me leva contigo! Lemos, Lemos!”. Também ela o chamava de
Lemos.
Conto o fato para concluir: — por que todo esse elenco de uivos?
Explico: porque morrera o antigênio, o antigrande homem. É fácil amar e
chorar o pobre-diabo. Ainda por cima, aos dezessete anos, tivera varíola. Era
chamado de “Lemos Bexiga”. Ao passo que somos ressentidos contra o
sujeito que funda uma língua, inventa um Brasil e tira um sertão inédito da
própria cabeça como de uma cartola.
Mas falei, falei, e não estou dizendo o essencial. O que chamo
essencial é a carta que acabo de receber do Otto ou, por extenso, Otto Lara
Resende. Ora, uma carta do Otto é, para mim, uma experiência
desconhecida. Ele nunca me escreveu e vou mais longe: — nunca me
telefonou. E, súbito, recebo uma carta imensa. Quase não acreditei e passei
os olhos na assinatura. Mas o nome lá estava, indubitável, limpidíssimo: —
Otto.
Agora vem o já referido essencial: — o meu longínquo amigo trata,
como não podia deixar de o fazer, do Guimarães Rosa. Eram amigos, foram
íntimos, uniram as suas gargalhadas em piadas recíprocas e lapidares. Mas,
antes de entrar no assunto “Guimarães Rosa”, quero dizer duas palavras
sobre o “novo” Otto. Não exagero. O Otto que daqui saiu não tem nada a ver
com o Otto que lá está.
Sim, o Otto de Lisboa é um, o de São João Del-Rey, o da
TV Globo, é
outro. Já domingo, no Jornal do Brasil, saiu um artigo do “novo” Otto. O
leitor lê, lê e não entende que o nome do mineiro lá esteja. O Almeida
Garrett assinaria tal página com a maior desfaçatez. De mais a mais, eu e o
Hélio Pellegrino falamos com o Otto pelo telefone internacional (custou-nos
a ligação uns duzentos mil cruzeiros). E nada descreve o nosso estupor. A

voz que ouvíamos não era a do Otto mas a do Leopoldo Fróes. O Otto fala
como Leopoldo Fróes. É o mesmo sotaque lisboeta, sem tirar nem pôr.
(E, por isso, digo eu que o brasileiro nunca pode viajar. Foi para
Lisboa um Otto Lara Resende e Portugal vai-nos devolver um Leopoldo
Fróes.) Mas o caro amigo fala, em certo trecho da carta, em Guimarães Rosa.
Confesso a maligna curiosidade com que li tal passagem. Nós estávamos
aqui, isto é, a dois passos do acontecimento. Qualquer táxi nos levaria ao
velório. Ao passo que havia entre o Otto e o Guimarães Rosa todo um
oceano a separá-los. Que influência teria a distância nas leis da emoção ou,
melhor dizendo, da dor? É o que eu ia ver.
Mas o comportamento humano não tem nenhuma simplicidade.
Quando surgiu, na carta, o nome de Guimarães Rosa, fiz um suspense para
mim mesmo. Parei de ler e puxei um cigarro. Comecei a imaginar o que
dizia o Otto sobre o ficcionista. Não me interessava sua admiração. O
admirador porta-se muito mal diante da morte. Acendendo o cigarro, eu me
lembrava da visita que nos fez, há tempos, o Jean-Paul Sartre. Fui a uma de
suas conferências. Gente escorrendo do lustre, subindo pelas paredes. E os
presentes lambiam o Sartre com a vista. Olhei aquilo e concluí que há
admirações abjetas. Justamente, eu não queria que o Otto fizesse do
Guimarães Rosa um Sartre.
Li a primeira frase e parei. Eis o que me perguntava: — Será que o
Otto chorou pelo amor do Grande sertão? Na véspera da partida para
Portugal, ele passara na casa do Hélio Pellegrino. Os dois foram para a
cozinha tomar leite gelado. E, de repente, o Otto começou a chorar. No
pânico e vergonha das próprias lágrimas, correu para o banheiro. E, lá, se
trancou com o Hélio. O Otto soluçava. Era uma dor sofrida, mugida. Por
quem chorava ele? Por nós, pelo Brasil ou pela própria e inefável
miserabilidade? Pois eu queria que, na carta, ele chorasse também como se o
Guimarães Rosa fosse o próprio “Lemos Bexiga”. Mas comecei a ler e, de
repente, tive medo.
[9/12/1967]
  

11/02/2018

Um Homem Célebre, Machado de Assis


— Ah! o senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo
gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: — Desculpe meu
modo, mas... é mesmo o senhor?

       Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano,
enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o fez
parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao
todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, Rua do Areal, naquele dia dos
anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! Amava o riso e a
folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e
riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e
diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que
tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se
gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez
minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.

— Diga, minha senhora.

— É que nos toque agora aquela sua polca
Não Bula Comigo, Nhonhô.

       Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem
gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos,
derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os
pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada
vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia
chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.
Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de
jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro,
longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana
compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a
polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado.
Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais
modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais
enfadado, até que, alegando dor de cabeça, pediu licença para sair. Nem elas,
nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros,
algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.

Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou,
depois que dobrou a esquina da Rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua
grande polca festiva. 
      De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de
distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarineta. Dançavase. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a
andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do
baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na Rua do
Aterrado, onde morava. Já perto de casa, viu vir dois homens: um deles,
passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca,
rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois
abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a
meter-se em casa.

Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que
veio saber se ele queria cear.

— Não quero nada, bradou o Pestana: faça-me café e vá dormir.
Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto
acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d'alma, cumprimentou uns dez
retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara,
que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do
Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos
trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doido
por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe
transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não
ocupa a minha história, como ides ver.

      Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven,
Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados,
todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de
uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma
sonata de Beethoven.

      Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o
retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si,
desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça, depois parou
alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez
de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma
alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.
Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar
para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao
piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum
pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à
janela.
      As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à
espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar
vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem,
desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que
entretanto, a essa mesma hora, adormecia, pensando nele, famoso autor de
tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de
sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao
som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca
nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite,
rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que
fosse daquelas páginas imortais?

   Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de
idéia: ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em

vão: a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os dedos
correrem, à ventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart:
mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo.

   Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça
alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguiase, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça: mas daí a dez
minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.
Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado,
desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou
às sete horas. Vestiu-se e almoçou.

— Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as
ordens que tinha, porque as distrações do senhor eram freqüentes.
— A bengala.
— Mas parece que hoje chove.

— Chove, repetiu Pestana maquinalmente.

— Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.

Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:
— Espera aí.

     Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no
teclado. Começou a tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma
polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do
compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-seia que a musa compunha e bailava a um tempo. 
   Pestana esquecera as discípulas,
esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera
até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou
escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir
ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade,
escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.

    Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou
 para jantar: mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição
recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois dias
depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andariam já por umas
trinta. O editor achou-a linda.

— Vai fazer grande efeito.

   Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis
dar-lhe um título poético, escolheu este:
Pingos de Sol. O editor abanou a cabeça,
e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, ou por
alusão a algum sucesso do dia, — ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois:
A
Lei de 28 de Setembro
, ou Candongas Não Fazem Festa.

— Mas que quer dizer Candongas Não Fazem Festa? perguntou o autor.

— Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.

      Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a
polca, mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levouo a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou
apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.

   Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor
acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe
apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este:
Senhora Dona,
Guarde o Seu Balaio.

— E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.

     Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações compositor
bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original,
convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre.
Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava
de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e
zangava-se quando não a tocavam bem.
    Desde logo, as orquestras de teatro a
executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada,
uma noite, por um vulto que descia a Rua do Aterrado.
Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais
depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos.

  Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas
vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. E aí
voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda,
e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico, uma página
que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann.
Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e
noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e
que, uma vez que abrisse mão da música fácil...

— As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de
madrugada, ao deitar-se.

   Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à própria sala
dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as
compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas
fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois
de casar.

— Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu
aquela notícia.

— Vai casar com uma viúva.

— Velha?

— Vinte e sete anos.

— Bonita?

— Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a
ouviu cantar na última festa de S. Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela
possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: estatística.

  Os escrivães não deviam ter espírito, — mau espírito, quero dizer. A sobrinha
deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja.
Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos,
boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato
era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo;
artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por
aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras
sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas.

    Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à
primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não
achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias.

Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno.
     Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de
inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às
escondidas; coisa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar
com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a
fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um
domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um
trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente,
parando, interrogou-a com os olhos.

— Acaba, disse Maria; não é Chopin?

      Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueuse. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou
a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em
algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste,
desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de S.
Cristóvão.

— Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas... Viva a polca!

   Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um
doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a
vocação... Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro,
teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o
esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.

     Poucos dias depois, — uma clara e fresca manhã de maio de 1876, — eram seis
horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se
devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda noite, e agora dormia
profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente
que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses
seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e
morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e
desesperado.

    Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança
havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era
duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade.

    Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos,
a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido,
um molho de ossos, estendido na cama... Todas as horas da noite passaram
assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas-da-colônia e
de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana
invisível.

     Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois
de compor um
Requiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de
Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa
que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.

   Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação, e até os caprichos
do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o
Requiem deste
autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o
andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a

alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração
e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o
Requiem não estava
concluído. Redobrou de esforços; esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas
vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito,
cinco... A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.

     Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas
as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos, foram do marido, ou se
algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao
Requiem.
"Para quê?" dizia ele a si mesmo.
Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.

— Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente
pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?

— Nada.

— Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um
contrato: vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem
maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.
Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar
dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o
contrato.

— Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do
Imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma
eleitoral. A polca há de chamar-se:
Bravos à Eleição Direta! Não é política; é um
bom título de ocasião.

   Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio,
não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As
outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os
repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas
tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa
ópera ou concerto de artista, ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de
coisas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar
para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se
ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta
minutos depois.

   Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe
definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro
lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o
segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo,
acerca de suas composições; a diferença é que eram menos violentas. Nem
entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum
prazer e certo fastio.

    Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar
perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da
doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca
de ocasião. O enfermeiro, pobre clarineta de teatro, referiu-lhe o estado do
Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que
lhe dissesse o que era; o editor obedeceu.

— Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.

— Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.

Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarineta foi pé ante pé preparar o
remédio; o editor levantou-se e despediu-se.

— Adeus.

— Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe
logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.
Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na
madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal
consigo mesmo.
 
 


UM HOMEM CÉLEBRE, Machado de Assis, Contos Fluminenses

10/02/2018

Nenhum Vento pode Apagar, Nelson Rodrigues

NENHUM VENTO PODE APAGARQuando ando de táxi, sinto uma euforia absurda e terrível. Isso vem
de longe, vem de minha infância profunda. Bem me lembro dos meus seis,
sete anos. Meu pai deu um passeio de táxi, com toda a família; e eu, na
frente, ao lado do chauffeur, teci toda uma fantasia de onipotência. Repito: o
táxi ainda me compensa de velhas e santas humilhações.
O ônibus, não. Quando ando de ônibus (e, às vezes, só tenho o
dinheiro contadinho do ônibus), viajo como um ofendido e sou, realmente,
um desfeiteado. É uma promiscuidade tão abjeta, que eu diria: o ônibus
apinhado é o túmulo do pudor. “Exagero”, dirão. Paciência. Mas quando eu
passava fome, queria ser rico, e não para ter palácios ou andar de Mercedes.
A minha obsessão nunca foi a Mercedes, nunca foi o palácio. Simplesmente,
queria andar de táxi e nada mais.
Fiz a introdução para referir certa viagem de ônibus. Precisava ir à rua
Mariz e Barros. Como tinha pouco dinheiro no bolso, apanhei um ônibus e lá
vim eu, em pé, pendurado numa argola. Enguiçamos na praça Onze. Ao
lado, estava o edifício da Última Hora. No meio de pardieiros, e com a favela
por fundo, o edifício da Última Hora era um pavão enfático. Salto e vejo, mais
adiante, uma aglomeração.
O brasileiro é um fascinado por qualquer ajuntamento. Também fui
espiar. Lá estava ele, o cadáver. “De cor parda”, diria o repórter de polícia.
Acabara de ser atropelado e era um defunto desfolhado, despetalado ou que
outro nome tenha. E, ao lado, alguém acendera uma vela. Disse “alguém” e
já retifico: — ninguém. Eis o mistério dos nossos atropelados. Sem que
ninguém a ponha, sempre aparece uma chama que nenhuma chuva,
nenhum vento, consegue apagar.
E, por todo um dia, por toda uma noite, fica ardendo a estrela do
atropelado. Essa piedade de rua, de esquina, de meio-fio, só existe no Brasil.

Nos outros povos, mão nenhuma se lembraria de acender uma vela pelo
defunto desconhecido.
Eis o que eu queria dizer: — quando entrei na Academia, e vi a
miséria dos círios elétricos, comecei a pensar no morto da praça Onze. Eu
teria preferido, em vez de quatro lâmpadas estúpidas, a vela solitária do
atropelado. Não me demorei. Eis a verdade: — tenho medo do morto ilustre.
A visitação, que não pára, é tão sem amor! Olho a curiosidade frívola dos
que vão espiar o morto. Vejo o Franklin de Oliveira. Esse podia estar ali.
Andava de um lado para outro, errante na própria solidão. Fala comigo. Mas
a sua voz é inaudível como o hálito. Descubro, num canto, Gustavo Corção.
Corção, já com setenta anos feitos, tem um coração atormentado e
puro de menino. Conversamos num canto; e, baixinho, contou-me a morte
de Guimarães Rosa. O autor estava só em casa quando começou a passar
mal. Liga para uma senhora conhecida: — “Fulana, estou-me sentindo mal.
Ouviu? Estou-me sentindo mal. Chame o médico”. Repetia: — “Chame o
médico. O médico”. Desatinada, a senhora pede: — “Espera, que eu vou
chamar”. Sem desligar, corre para alguém, manda chamar o médico.
Quando apanha de novo o telefone, ouve o amigo: — “Socorro. Socorro”.
Mas era um apelo sem ponto de exclamação.
(Não acredito no medo da morte que, a meu ver, ninguém tem. Há
inversamente, em todos nós, a nostalgia da morte. Também não acredito no
medo de Guimarães Rosa. Nem a morte foi uma visita. Há muito tempo que
os dois se entendiam. E o escritor chegou a datá-la. Pode-se dizer que havia
uma convivência e que ele se tornara íntimo da própria morte.)
Quando estive na Academia, senti que, fora a família, só Franklin de
Oliveira e Gustavo Corção podiam estar ali. As estagiárias, não. As
estagiárias formam a nova classe da imprensa. Invadiram o velório;
atropelavam todos os que não fossem solidamente desconhecidos. Eu
conversava com o Corção quando uma delas me interpelou: — “O que é que
o senhor acha do Guimarães Rosa?”. Estava com um bloco, um lápis e
esperava o meu juízo final. Para ela, Corção, o reacionário, não existia. Só
queria a minha opinião. Sentindo-me irremediavelmente imbecil, comecei:
— “Guimarães Rosa é o renovador”. Paro, numa brusca vergonha da
trivialidade. Renovador e que mais? Concluo: “Renovador do romance
brasileiro”.

Só três dias depois comecei a ter pena de Guimarães Rosa, amor por
Guimarães Rosa Fui com o Carlos Heitor Cony ao Garoto do Papai, um
boteco que fica, ali, na primeira esquina. A pretexto de tomar uma média,
nós vamos fazer literatura. Conversamos sobre Guimarães Rosa. O Cony foi
o primeiro a chamar o autor de Grande sertão de “o novo Coelho Neto”. Mas
nem sempre a opinião da véspera é a mesma do dia seguinte. Quem sabe se
o Cony não seria, como o Hélio Pellegrino, um ex-restritivo? Foi nessa
esperança que o interroguei.
E, então, para o meu horror, ele deixou de lado o Coelho Neto e pôs-se
a falar no Conselheiro Acácio. O amigo negava até o célebre “viver é muito
perigoso”. Gaguejei: — “Escuta. Mas Conselheiro Acácio?”. Comecei a
repassar os tipos de Eça. Via o Pacheco falando: — “Enquanto Vossa
Excelência faz berreiro, eu, aqui, no meu canto, faço luz”. Com uma certeza
jucunda, o Cony insistia: — “Aquele ‘o sujeito morre para provar que viveu’
é Acácio. Tem santa paciência. Mas é Acácio”. No meu escândalo, balbuciei:
— “E o ‘A terceira margem’ também é Acácio?”.
O outro fez a concessão: — “‘Terceira margem’ é bom!”. Ainda insisti:
— “E o resto? Que diabo! A linguagem!”. Cony retruca: — “A linguagem
quem faz é o povo”. Primeiro, foi uma revisão crítica de calçada. Por fim,
talvez por cansaço físico, o Cony admitiu que Guimarães Rosa era um
grande escritor, mas com algum Acácio. Entramos no Garoto do Papai.
Estava, lá, o Reynaldo Jardim. Viro-me e faço-lhe a pergunta, à queimaroupa: — “O que é que você acha do Guimarães Rosa?”.
A resposta, fulminante, veio num berro: — “Um bolha!”. Desta feita, a
gíria tornava a desfeita maior. Exaltei-me também. Mas, quando falei da
linguagem, do idioma fundado, o Jardim dava pulos de indignação: — “Um
falsário! Um falsário!”. Por um momento, eu não sabia mais o que dizer, o
que pensar. O Reynaldo repetia, na fúria polêmica: “Falsário da linguagem”.
Comecei a beber o meu copo de leite (a úlcera tinha contrações de víbora
moribunda). E, súbito, fui varado por uma dessas certezas inapeláveis,
fatais: — Guimarães Rosa era o único gênio de nossa literatura.
[7/12/1967]
  

Morte acidental

          Enquanto ele falava, eu arrumava a churrasqueira até que todos viessem. Era uma típica festa de firma, onde as pessoas vão par...