24/02/2018

Um menino de paixões de ópera, Nelson Rodrigues


Bem me lembro dos meus cinco, seis anos. O vizinho era, então, todo
o meu horizonte humano. Ainda vejo as pessoas que moravam ao nosso
lado, ou em frente, ou na esquina. Os sujeitos se cumprimentavam assim: —
“Bom dia, vizinho. Como vai, vizinho?”. E a simples palavra tinha uma
tensão, um frêmito, uma magia. Era como se “vizinho” fosse um enfático
nome wagneriano, uma espécie de Lohengrin prodigioso.
O mundo era aquela meia dúzia de vizinhos. E justamente a Lili veio
morar duas ou três casas adiante da minha. Hoje ninguém se chama Lili. Lili
é um nome nostálgico, obsoleto, espectral. Naquele tempo, não. Em cada ma
havia uma Lili, ou duas ou, até, três. Havia um pó-de-arroz que se chamava
Lili. Minto. Não era Lili, era Lady. Também havia Odetes por toda a parte.
Ao passo que, hoje, somos um povo de poucas Odetes.
Lili. Conheci o nome antes da pessoa. Um dia, eu estava na mesa,
tomando café com macaxeira. E, então, alguém falou em Lili. Achei o nome
lindo. Lili. Aquilo ficou gorjeando em mim. Faço, porém, a ressalva: — aos
cinco, seis anos, não se faz nenhuma seleção auditiva. Para mim, qualquer
nome era bonito. Morava na rua Dona Maria um “seu” Sepúlveda. Era
capitão da Guarda Nacional e tinha bigodões. Sepúlveda, ou qualquer outro
nome, vem com um halo de mistério, de graça e de espanto. Que vontade
tive de me chamar Sepúlveda!
E Lili foi, exatamente, a minha primeira paixão de menino. Antes de
vê-la, eu a amei. Amei o puro nome, o puro som. Era a primeira Lili da
minha infância. Cinco anos tinha eu. Ou seis. Vá lá, seis. Sentia que aquele
nome insinuava um mistério ou, mais do que isso, um destino. Fui varado
por um sentimento de pena e de medo. Como se Lili fosse alguém que já
morreu e que só aparece, por um momento, na memória dos espelhos.
Até que, uma manhã, ou tarde, sei lá, eu a vi. E, de repente, Lili
deixou de ser apenas um som. Passava a ter um olhar, um perfil, um gesto. E
era gorda. Lili gorda. Hoje, ninguém vê uma gorda sem lhe acrescentar um

ponto de exclamação. Vivemos uma época tão sem busto, tão sem quadris,
que ninguém entenderia a Lili de 1918. Os homens eram magros, tinham a
face e o peito cavos. Mas a mulher podia ser gorda, ou, melhor, devia ser
gorda. A partir dos catorze anos, os quadris e os bustos explodiam. Simples
adolescentes tinham os flancos tão pesados que precisavam se pôr de perfil
para atravessar as portas. Lili era a gorda em flor, como a mulher do Lemos,
e outras, e outras.
Agora já sei a minha verdadeira idade, na época: seis anos. Sim, tinha
seis anos quando fui matriculado na escola pública, turno da manhã. A casa
de Lili ficava no caminho da escola. E não era bem casa, ou por outra, eu só
me lembro da janela, em que ela se debruçava, pendida de sonho. (Eu diria
que, em nossos dias, a televisão matou a janela.) Mas, como ia dizendo:
todas as manhãs passava eu com o meu livro, o meu caderno, meu lápis e a
merenda (geralmente uma banana). Quando via Lili, baixava a cabeça,
transido de vergonha, e deslizava rente à parede. O patético da escola era
quando eu passava na ida e quando passava na volta. Se ela estava na janela,
a minha felicidade era mortal. Lembro-me de que, uma manhã, a professora
me chamou para o quadro-negro. Eu devia desenhar uma flor, ou pintar,
não sei. Quando fui apanhar o giz, a professora me puxou: — “Menino, você
não lava as orelhas, menino?”. E fez um escândalo para a classe: — “Nunca
tomou banho?”. Exultava: — “Olha aqui o pescoço! Vem cá. Deixa eu ver as
unhas. Mostra, anda!”. Naquele momento, tive a sensação da nudez pública.
Nunca me senti tão nu. A professora está dizendo: — “Se aparecer aqui
outra vez de orelha suja, fica de castigo”. E eu só pensava em Lili. Que
alguém fosse dizer a Lili: — “Menino porco”.
(Estou falando muito de mim mesmo.) Mais alguns dias e começo a
ouvir gritos. Gritos de mulher varavam a rua, de ponta a ponta. Toda a
vizinhança veio para a janela. E ouvi alguém dizer: — “É a Lili que está
apanhando”. A menina tinha um pai de Amor de perdição, sim, um pai de
Camilo Castelo Branco. Minha mãe pergunta: — “Está sentindo alguma
coisa?”. Eu devia estar branco. Pouco depois saí para a escola. E pela
primeira vez parei na calçada de Lili. O pai batia de cinto. Da rua, ouvia-se o
cinto cantar na carne. A menina berrava: — “Não, papai, não!”. E o velho,
possesso: — “Engole o choro! Engole o choro!”.
Aquilo ficou em mim para sempre. Engole o choro. Eu, fascinado, não
saía do lugar. E, súbito, o velho parou de bater. Lili ficou gemendo, baixo e

doce: — “Papaizinho, papaizinho!”. E havia uma voluptuosidade triste no
seu lamento. Só então saí correndo para o colégio.
Chego no colégio. A professora me chama: — “Deixa eu ver. Vem cá.
Limpou as orelhas? E o pescoço?”. Baixei a vista: — “Tomei banho, sim”.
Pegou-me pelo braço e me sacudiu: — “Diga sim, senhora. Não tem
educação?”. E eu: — “Sim, senhora”. Mas ela ainda bufava: — “Você não se
esfrega direito. Precisa aprender a tomar banho”. Passou. Fui para meu
banco. Até o fim da aula teci toda uma fantasia fúnebre. Sonhava com a
minha morte. Se eu morresse, Lili teria pena de mim, amor por mim.
Quando eu passei pela casa de Lili, ela estava na janela. Cantarolava:
— “Cobre, me cobre, que eu tenho frio”. Claro que me escapava toda a
insinuação erótica do verso. Vim namorando o som. “Cobre, me cobre, que
eu tenho frio.” Em casa, falavam da surra de Lili. Conheci, então, toda a
história. Lili amava um rapaz do bairro, Paulinho Varanda. (Encantou-me
esse nome bucólico, ventilado, paisagístico.) E o pai não queria o namoro.
Paulinho Varanda não seria pior nem melhor do que ninguém. Mas tinha
um defeito hediondo para a época: era tuberculoso.
Estou vendo o Paulinho Varanda. Tinha a cara crivada de espinhas
como bexiga. Ficava horas na esquina, estivesse a pequena na janela ou não.
Quando estava resfriado, enrolava um lenço no pescoço. Ainda o ouço
tossindo. E tinha, na tosse, o olho enorme do asfixiado. Talvez Lili o amasse
por isso mesmo, pela tuberculose e pelas espinhas. Devia morrer de ternura
quando o via torcer-se e retorcer-se, em acessos medonhos. Um dia, na volta
da escola, o Paulinho Varanda me segura. Pergunta: — “Quer ganhar um
tostão?”. Respondi, assustado: — “Quero”. E ele: — “Está vendo aquela
moça? Que está na janela? Vai lá e entrega isso. Toma”. Deu-me o tostão e
um bilhete. Numa felicidade total, corri. Disse: — “Aquele moço mandou”.
Lili apanhou rápido o bilhete e fugiu da janela.
Até hoje não sei o que dizia o bilhete. Devia ser um apelo muito triste,
ou um adeus, quem sabe? Só sei que, de noite, toda a rua começou a ouvir os
gritos de Lili. Desta vez, não era surra.
[12/12/1967]
  

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