17/03/2018

Duas mãos postas, Nelson Rodrigues


“Eu rezo! Pode deixar que eu rezo! Eu acredito na força da oração!”
Quem falava assim, e trêmulo de fé, não era o vizinho do lado, nem o
açougueiro da esquina, nem o português do botequim. Não. Era d. Hélder,
sim, sim, exatamente d. Hélder e não um qualquer. Eu pedia por alguém e
repito: alguém da minha amizade ou, melhor dizendo, alguém do meu
amor.
E que fiz eu? Fiz a opção entre d. Hélder e d. Marcos Barbosa (o que
me fascina neste último é o sorriso de Manuel Bandeira). Acabei ligando
para d. Hélder Câmara. Contei-lhe tudo, tudo. Disse: — “Há uma moça
assim, assim, que eu amo. Que é tudo para mim. Essa moça está sofrendo. E
eu queria que o senhor fosse vê-la. Faz isso para mim, d. Hélder, faz?”.
D. Hélder foi de uma solidariedade fulminante. Não fez o suspense de
uma dúvida. Nada. Faria isso por mim. E, rápido, prático, pedia endereço,
telefone. Sem vê-lo, eu o imaginava apanhando lápis, papel. Dei a rua, o
número e o telefone. Ah, faltava o nome. Passei-lhe o nome. Era em Santa
Teresa. Subiria Santa Teresa. Deixei o telefone, certo de que acabava de falar
com um santo.
Não é recente a minha fascinação pela batina. Vem de longe, muito
longe. Eu era garotinho e vi uma menina atravessando a rua para beijar a
mão de um padre. E, depois, outras meninas beijaram a mão de outros
padres. Hoje, ninguém beija a mão de padre, ninguém.
Eu queria um padre junto à mulher que amava. Ela sofria. Muito bem:
— e era preciso que a piedade e o amor vestissem batina. A solidariedade de
d. Hélder fez-me um bem lancinante. Eis o que eu pensava: — “Ainda bem
que procurei d. Hélder e não d. Marcos”. Por certo, d. Marcos teria também
uma estrutura muito doce. Mas d. Hélder era mais promovido. Sim, tinha
mais nome, mais imprensa (pode parecer torpe essa reflexão que, na época,
me ocorreu).
D. Hélder cumpriu a palavra: telefonou. No dia seguinte, falou

comigo: — “A moça estava de saída”. Combinaram que ele telefonaria
depois. (Carlos Heitor Cony contou-me que, na sua passagem pelo
seminário, falou certa vez com d. Hélder. Abriu-lhe a alma: — “Meu pecado
é o orgulho. Sou muito orgulhoso etc. etc.”. D. Hélder foi exemplar: — “Meu
filho, nunca seja orgulhoso de dentro para fora, mas de fora para dentro”.
Cony parou, perplexo. O outro, mais didático, completou: — “Para fora, seja
modesto, seja humilde. O orgulho interior Deus perdoa”.)
Liguei para a mulher amada. Ela estava feliz, feliz, com o telefonema.
Disse: — “Foi tão simpático”. Parecia menos deprimida, menos crispada. E
eu: — “Meu anjo, escuta. Tudo vai sair bem. Você vai ver: d. Hélder é
formidável. E inteligente, muito inteligente”. A inteligência era o de menos.
Sempre tive a obsessão da bondade. Mas eu tinha medo, eis a verdade.
Quem ama conhece todo o inferno da mania de perseguição.
Retifico: a mania de perseguição não é mania de perseguição. De fato,
qualquer amor há de sofrer uma perseguição concreta e assassina. Somos
impotentes do sentimento e não perdoamos o amor alheio. Eu amava e
comecei a sentir, por toda a parte, pressões contra mim e o ser amado. Soube
de alguém que fizera este comentário: — “Se essa moça gosta do Nelson, é
uma débil mental!”.
E d. Hélder não foi. Desesperado, eu dizia: — “Mas ele prometeu. Não
telefonou para você? Não disse que ia? Vou falar com ele”. Liguei várias
vezes. Começou a não estar. Cerquei-o em casa. D. Hélder suspirava: —
“Não posso, não devo”. Aterrado, fiz-lhe todo um furioso apelo: — “D.
Hélder, não se trata de opinar. O senhor não opina. Não precisa ser nem
contra, nem a favor. O que eu quero do senhor é um ato de compaixão. Me
entende? A moça está sofrendo. O senhor diz uma palavra amiga e só. D.
Hélder!”.
Foi aí que ele falou em “rezar” e repetiu: — “Rezo! Rezo!”. Por um
momento, eu não soube o que dizer. Ele pôs-se a demonstrar o valor
formidável (e prático) da oração. Foi patético no telefone: — “Acredito na
oração! Acredito! Tenho rezado pela moça!”. Reagi à sua veemência com a
minha veemência.
O que é que eu disse? Disse que a oração é linda. Duas mãos postas
são sempre tocantes, ainda que se reze pelo vampiro de Dusseldorf. Mas por
que não (e também) a presença, a cálida presença física? Por que não o gesto,
o olhar, o sorriso? E por que não a voz, a inflexão? Por que não a lágrima? (o

ausente não chora).
E falei muito e deixei de dizer tanta coisa. Poderia contar que, na rua
Alegre, quis ser coroinha. Ainda hoje, quando vejo a torre de uma igreja,
sinto em mim todo um frêmito de batinas, de freiras, de círios e de santos.
Aos oito anos, eu próprio queria ser santo; desejei ser crucificado e
imaginava alguém enxugando, na minha fronte, o suor do martírio. Mas
calei-me. Senti em d. Hélder o tédio da nossa discussão. Direi mesmo a
palavra cruel e inapelável: ali, eu era o “chato”.
(Desesperado, fui bater a d. Marcos Barbosa. O nosso primeiro
encontro foi na Rádio Jornal do Brasil. E que bem me fez o seu sorriso de
Manuel Bandeira. (Era mais gordo do que eu pensava.) Contei-lhe tudo.
Repeti que não se tratava de opinar; ninguém precisava ser contra ou a
favor. O que eu queria era um mínimo de bondade, apenas isso, um mínimo
de compaixão. Ele me ouviu, tenso; e não senti, na sua atitude, nenhuma
fuga. Quando acabei, disse que ia; e foi. Aí é que está: foi. Subiu Santa
Teresa; desceu do bonde; bateu na porta. E riu para a moça, com os dentes
de Manuel Bandeira.)
Passou. E hoje vejo pelos jornais que d. Hélder mudou muito. Não é o
mesmo, eis a verdade, não é o mesmo. Aí estão os seus pronunciamentos; faz
viagens; anda de um lado para outro. Foi a Nova York, que é um pouco mais
longe do que Santa Teresa. E, lá, promovido como O Arcebispo Vermelho,
fez discursos. Por que não ficou aqui rezando? E outra coisa: — há fome no
Nordeste? Nem tudo está perdido, porque temos aí a fé de d. Hélder. Pena é
que, nos seus manifestos, ele não faça uma única e escassa referência ao
sobrenatural. Sim, nunca prometeu orar pelas populações famintas. E eu
estou imaginando se, um dia, Jesus baixasse à Terra. Vejo Cristo
caminhando pela rua do Ouvidor. De passagem, põe uma moeda no pires de
um ceguinho. Finalmente na esquina da avenida, Jesus vê d. Hélder. Corre
para ele; estende-lhe a mão. D. Hélder responde: — “Não tenho trocado”. E
passa adiante.
[16/12/1967]
  

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