28/01/2018

Entre Santos, Machado de Assis


  Quando eu era capelão de S. Francisco de Paula (contava um padre velho)
aconteceu-me uma aventura extraordinária.
    Morava ao pé da igreja, e recolhi-me tarde, uma noite. Nunca me recolhi tarde
que não fosse ver primeiro se as portas do templo estavam bem fechadas.
 Achei as bem fechadas, mas lobriguei luz por baixo delas. Corri assustado à procura da
ronda; não a achei, tornei atrás e fiquei no adro, sem saber que fizesse. A luz,
sem ser muito intensa, era-o demais para ladrões; além disso notei que era fixa e
igual, não andava de um lado para outro, como seria a das velas ou lanternas de
pessoas que estivessem roubando. O mistério arrastou-me; fui a casa buscar as
chaves da sacristia (o sacristão tinha ido passar a noite em Niterói), benzi-me
primeiro, abri a porta e entrei.

  O corredor estava escuro. Levava comigo uma lanterna e caminhava devagarinho,

calando o mais que podia o rumor dos sapatos. A primeira e a segunda porta que
comunicam com a igreja estavam fechadas; mas via-se a mesma luz e,
porventura, mais intensa que do lado da rua. Fui andando, até que dei com a
terceira porta aberta. Pus a um canto a lanterna, com o meu lenço por cima, para
que me não vissem de dentro, e aproximei-me a espiar o que era.
Detive-me logo. Com efeito, só então adverti que viera inteiramente desarmado e
que ia correr grande risco aparecendo na igreja sem mais defesa que as duas
mãos. Correram ainda alguns minutos. Na igreja a luz era a mesma, igual e geral,
e de uma cor de leite que não tinha a luz das velas. Ouvi também vozes, que
ainda mais me atrapalharam, não cochichadas nem confusas, mas regulares,
claras e tranqüilas, à maneira de conversação. Não pude entender logo o que
diziam. No meio disto, assaltou-me uma idéia que me fez recuar. Como naquele
tempo os cadáveres eram sepultados nas igrejas, imaginei que a conversação
podia ser de defuntos. Recuei espavorido, e só passado algum tempo, é que pude
reagir e chegar outra vez à porta, dizendo a mim mesmo que semelhante idéia era
um disparate. A realidade ia dar-me coisa mais assombrosa que um diálogo de
mortos. Encomendei-me a Deus, benzi-me outra vez e fui andando,
sorrateiramente, encostadinho à parede, até entrar. Vi então uma coisa
extraordinária.

  Dois dos três santos do outro lado, S. José e S. Miguel (à direita de quem entra na
igreja pela porta da frente), tinham descido dos nichos e estavam sentados nos
seus altares. As dimensões não eram as das próprias imagens, mas de homens.
Falavam para o lado de cá, onde estão os altares de S. João Batista e S. Francisco
de Sales. Não posso descrever o que senti. Durante algum tempo, que não chego
a calcular, fiquei sem ir para diante nem para trás, arrepiado e trêmulo. Com
certeza, andei beirando o abismo da loucura, e não caí nele por misericórdia
divina. Que perdi a consciência de mim mesmo e de toda outra realidade que não
fosse aquela, tão nova e tão única, posso afirmá-lo; só assim se explica a
temeridade com que, dali a algum tempo, entrei mais pela igreja, a fim de olhar
também para o lado oposto. Vi aí a mesma coisa: S. Francisco de Sales e S. João,
descidos dos nichos, sentados nos altares e falando com os outros santos.

    Tinha sido tal a minha estupefação que eles continuaram a falar, creio eu, sem
que eu sequer ouvisse o rumor das vozes. Pouco a pouco, adquiri a percepção
delas e pude compreender que não tinham interrompido a conversação; distinguias, ouvi claramente as palavras, mas não pude colher desde logo o sentido. Um
dos santos, falando para o lado do altar-mor, fez-me voltar a cabeça, e vi então
que S. Francisco de Paula, o orago da igreja, fizera a mesma coisa que os outros e
falava para eles, como eles falavam entre si. As vozes não subiam do tom médio
e, contudo, ouviam-se bem, como se as ondas sonoras tivessem recebido um
poder maior de transmissão. Mas, se tudo isso era espantoso, não menos o era a
luz, que não vinha de parte nenhuma, porque os lustres e castiçais estavam todos
apagados; era como um luar, que ali penetrasse, sem que os olhos pudessem ver
a lua; comparação tanto mais exata quanto que, se fosse realmente luar, teria
deixado alguns lugares escuros, como ali acontecia, e foi num desses recantos que
me refugiei.

      Já então procedia automaticamente. A vida que vivi durante esse tempo todo, não
se pareceu com a outra vida anterior e posterior. Basta considerar que, diante de
tão estranho espetáculo, fiquei absolutamente sem medo; perdi a reflexão, apenas
sabia ouvir e contemplar.
   Compreendi, no fim de alguns instantes, que eles inventariavam e comentavam as
orações e implorações daquele dia. Cada um notava alguma coisa. Todos eles,
terríveis psicólogos, tinham penetrado a alma e a vida dos fiéis, e desfibravam os
sentimentos de cada um, como os anatomistas escalpelam um cadáver. S. João
Batista e S. Francisco de Paula, duros ascetas, mostravam-se às vezes enfadados
e absolutos. Não era assim S. Francisco de Sales; esse ouvia ou contava as coisas

com a mesma indulgência que presidira ao seu famoso livro da Introdução à Vida
Devota.
   Era assim, segundo o temperamento de cada um, que eles iam narrando e
comentando. Tinham já contado casos de fé sincera e castiça, outros de
indiferença, dissimulação e versatilidade; os dois ascetas estavam a mais e mais
anojados, mas S. Francisco de Sales recordava-lhes o texto da Escritura: muitos
são os chamados e poucos os escolhidos, significando assim que nem todos os que
ali iam à igreja levavam o coração puro. S. João abanava a cabeça.

— Francisco de Sales, digo-te que vou criando um sentimento singular em santo:
começo a descrer dos homens.

— Exageras tudo, João Batista, atalhou o santo bispo, não exageremos nada. Olha
— ainda hoje aconteceu aqui uma coisa que me fez sorrir, e pode ser, entretanto,
que te indignasse. Os homens não são piores do que eram em outros séculos;
descontemos o que há neles ruim, e ficará muita coisa boa. Crê isto e hás de
sorrir ouvindo o meu caso.

— Eu?

— Tu, João Batista, e tu também, Francisco de Paula, e todos vós haveis de sorrir
comigo: e, pela minha parte, posso fazê-lo, pois já intercedi e alcancei do Senhor
aquilo mesmo que me veio pedir esta pessoa.

— Que pessoa?
— Uma pessoa mais interessante que o teu escrivão, José, e que o teu lojista,
Miguel...

— Pode ser, atalhou S. José, mas não há de ser mais interessante que a adúltera
que aqui veio hoje prostrar-se a meus pés. Vinha pedir-me que lhe limpasse o
coração da lepra da luxúria. Brigara ontem mesmo com o namorado, que a
injuriou torpemente, e passou a noite em lágrimas. De manhã, determinou
abandoná-lo e veio buscar aqui a força precisa para sair das garras do demônio.
Começou rezando bem, cordialmente; mas pouco a pouco vi que o pensamento a
ia deixando para remontar aos primeiros deleites. As palavras paralelamente, iam
ficando sem vida. Já a oração era morna, depois fria, depois inconsciente; os
lábios, afeitos à reza, iam rezando; mas a alma, que eu espiava cá de cima, essa
já não estava aqui, estava com o outro. Afinal persignou-se, levantou-se e saiu
sem pedir nada.

— Melhor é o meu caso.
— Melhor que isto? perguntou S. José curioso.

— Muito melhor, respondeu S. Francisco de Sales, e não é triste como o dessa
pobre alma ferida do mal da terra, que a graça do Senhor ainda pode salvar. E por
que não salvará também a esta outra? Lá vai o que é.

  Calaram-se todos, inclinaram-se os bustos, atentos, esperando. Aqui fiquei com
medo; lembrou-me que eles, que vêem tudo o que se passa no interior da gente,
como se fôssemos de vidro, pensamentos recônditos, intenções torcidas, ódios
secretos, bem podiam ter-me lido já algum pecado ou gérmen de pecado. Mas não
tive tempo de refletir muito; S. Francisco de Sales começou a falar.

— Tem cinqüenta anos o meu homem, disse ele, a mulher está de cama, doente
de uma erisipela na perna esquerda. Há cinco dias vive aflito porque o mal
agrava-se e a ciência não responde pela cura. Vede, porém, até onde pode ir um
preconceito público. Ninguém acredita na dor do Sales (ele tem o meu nome),

ninguém acredita que ele ame outra coisa que não seja dinheiro, e logo que houve
notícia da sua aflição desabou em todo o bairro um aguaceiro de motes e
dichotes; nem faltou quem acreditasse que ele gemia antecipadamente pelos
gastos da sepultura.

— Bem podia ser que sim, ponderou S. João.

— Mas não era. Que ele é usurário e avaro não o nego; usurário, como a vida, e
avaro, como a morte. Ninguém extraiu nunca tão implacavelmente da algibeira
dos outros o ouro, a prata, o papel e o cobre; ninguém os amuou com mais zelo e
prontidão. Moeda que lhe cai na mão dificilmente torna a sair; e tudo o que lhe
sobra das casas mora dentro de um armário de ferro, fechado a sete chaves.
Abre-o às vezes, por horas mortas, contempla o dinheiro alguns minutos, e fechao outra vez depressa; mas nessas noites não dorme, ou dorme mal. Não tem
filhos. A vida que leva é sórdida; come para não morrer, pouco e ruim. A família
compõe-se da mulher e de uma preta escrava, comprada com outra, há muitos
anos, e às escondidas, por serem de contrabando. Dizem até que nem as pagou,
porque o vendedor faleceu logo sem deixar nada escrito. A outra preta morreu há
pouco tempo; e aqui vereis se este homem tem ou não o gênio da economia;
Sales libertou o cadáver...

E o santo bispo calou-se para saborear o espanto dos outros.
— O cadáver?

— Sim, o cadáver. Fez enterrar a escrava como pessoa livre e miserável, para não
acudir às despesas da sepultura. Pouco embora, era alguma coisa. E para ele não
há pouco; com pingos d'água é que se alagam as ruas. Nenhum desejo de
representação, nenhum gosto nobiliário; tudo isso custa dinheiro, e ele diz que o
dinheiro não lhe cai do céu. Pouca sociedade, nenhuma recreação de família. Ouve
e conta anedotas da vida alheia, que é regalo gratuito.

— Compreende-se a incredulidade pública, ponderou S. Miguel.

— Não digo que não, porque o mundo não vai além da superfície das coisas. O
mundo não vê que, além de caseira eminente educada por ele, e sua confidente
de mais de vinte anos, a mulher deste Sales é amada deveras pelo marido. Não te
espantes, Miguel; naquele muro aspérrimo brotou uma flor descorada e sem
cheiro mas flor. A botânica sentimental tem dessas anomalias. Sales ama a
esposa; está abatido e desvairado com a idéia de a perder. Hoje de manhã, muito
cedo, não tendo dormido mais de duas horas entrou a cogitar no desastre
próximo. Desesperando da terra, voltou-se para Deus; pensou em nós, e
especialmente em mim que sou o santo do seu nome. Só um milagre podia salvá-
la; determinou vir aqui. Mora perto, e veio correndo. Quando entrou trazia o olhar
brilhante e esperançado; podia ser a luz da fé, mas era outra coisa muito
particular, que vou dizer. Aqui peço-vos que redobreis de atenção.
     Vi os bustos inclinarem-se ainda mais; eu próprio não pude esquivar-me ao
movimento e dei um passo para diante. A narração do santo foi tão longa e
miúda, a análise tão complicada, que não as ponho aqui integralmente, mas em
substância.

— Quando pensou em vir pedir-me que intercedesse pela vida da esposa, Sales
teve uma idéia específica de usurário, a de prometer-me uma perna de cera. Não
foi o crente, que simboliza desta maneira a lembrança do benefício; foi o usurário
que pensou em forçar a graça divina pela expectação do lucro. E não foi só a
usura que falou, mas também a avareza; porque em verdade, dispondo-se à
promessa, mostrava ele querer deveras a vida da mulher — intuição de avaro; —
despender é documentar: só se quer de coração aquilo que se paga a dinheiro,
disse-lho a consciência pela mesma boca escura. Sabeis que pensamentos tais não

se formulam como outros, nascem das entranhas do caráter e ficam na penumbra
da consciência. Mas eu li tudo nele logo que aqui entrou alvoroçado, com o olhar
fúlgido de esperança; li tudo e esperei que acabasse de benzer-se e rezar.

— Ao menos, tem alguma religião, ponderou S. José.

— Alguma tem, mas vaga e econômica. Não entrou nunca em irmandades e
ordens terceiras, porque nelas se rouba o que pertence ao Senhor; é o que ele diz
para conciliar a devoção com a algibeira. Mas não se pode ter tudo; é certo que
ele teme a Deus e crê na doutrina.

— Bem, ajoelhou-se e rezou.

— Rezou. Enquanto rezava, via eu a pobre alma, que padecia deveras, conquanto
a esperança começasse a trocar-se em certeza intuitiva. Deus tinha de salvar a
doente, por força, graças à minha intervenção, e eu ia interceder; é o que ele
pensava, enquanto os lábios repetiam as palavras da oração. Acabando a oração,
ficou Sales algum tempo olhando, com as mãos postas; afinal falou a boca do
homem, falou para confessar a dor, para jurar que nenhuma outra mão, além da
do Senhor, podia atalhar o golpe. A mulher ia morrer... ia morrer... ia morrer... E
repetia a palavra, sem sair dela. A mulher ia morrer. Não passava adiante. Prestes
a formular o pedido e a promessa não achava palavras idôneas, nem
aproximativas, nem sequer dúbias, não achava nada, tão longo era o descostume
de dar alguma coisa. Afinal saiu o pedido; a mulher ia morrer, ele rogava-me que
a salvasse, que pedisse por ela ao Senhor. A promessa, porém, é que não
acabava de sair. No momento em que a boca ia articular a primeira palavra, a
garra da avareza mordia-lhe as entranhas e não deixava sair nada. Que a
salvasse... que intercedesse por ela...

   No ar, diante dos olhos, recortava-se-lhe a perna de cera, e logo a moeda que ela
havia de custar. A perna desapareceu, mas ficou a moeda, redonda, luzidia,
amarela, ouro puro, completamente ouro, melhor que o dos castiçais do meu
altar, apenas dourados. Para onde quer que virasse os olhos, via a moeda,
girando, girando, girando. E os olhos a apalpavam, de longe, e transmitiam-lhe a
sensação fria do metal e até a do relevo do cunho. Era ela mesma, velha amiga de
longos anos, companheira do dia e da noite, era ela que ali estava no ar, girando,
às tontas; era ela que descia do teto, ou subia do chão, ou rolava no altar, indo da
Epístola ao Evangelho, ou tilintava nos pingentes do lustre.

    Agora a súplica dos olhos e a melancolia deles eram mais intensas e puramente
voluntárias. Vi-os alongarem-se para mim, cheios de contrição, de humilhação, de
desamparo; e a boca ia dizendo algumas coisas soltas, — Deus, — os anjos do
Senhor, — as bentas chagas, — palavras lacrimosas e trêmulas, como para pintar
por elas a sinceridade da fé e a imensidade da dor. Só a promessa da perna é que
não saía. Às vezes, a alma, como pessoa que recolhe as forças, a fim de saltar um
valo, fitava longamente a morte da mulher e rebolcava-se no desespero que ela
lhe havia de trazer; mas, à beira do valo, quando ia a dar o salto, recuava. A
moeda emergia dele e a promessa ficava no coração do homem.

    O tempo ia passando. A alucinação crescia, porque a moeda, acelerando e
multiplicando os saltos, multiplicava-se a si mesma e parecia uma infinidade
delas; e o conflito era cada vez mais trágico. De repente, o receio de que a mulher
podia estar expirando, gelou o sangue ao pobre homem e ele quis precipitar-se.
Podia estar expirando... Pedia-me que intercedesse por ela, que a salvasse...
Aqui o demônio da avareza sugeria-lhe uma transação nova, uma troca de
espécie, dizendo-lhe que o valor da oração era superfino e muito mais excelso que
o das obras terrenas. E o Sales, curvo, contrito, com as mãos postas, o olhar
submisso, desamparado, resignado, pedia-me que lhe salvasse a mulher. Que lhe
salvasse a mulher, e prometia-me trezentos, — não menos, — trezentos padre-

nossos e trezentas ave-marias. E repetia enfático: trezentos, trezentas,
trezentos... Foi subindo, chegou a quinhentos, a mil padre-nossos e mil avemarias. Não via esta soma escrita por letras do alfabeto, mas em algarismos,
como se ficasse assim mais viva, mais exata, e a obrigação maior, e maior
também a sedução. Mil padre-nossos, mil ave-marias. E voltaram as palavras
lacrimosas e trêmulas, as bentas chagas, os anjos do Senhor... 1.000 — 1.000 —
1.000. Os quatro algarismos foram crescendo tanto, que encheram a igreja de alto
a baixo, e com eles, crescia o esforço do homem, e a confiança também; a
palavra saía-lhe mais rápida, impetuosa, já falada, mil, mil, mil, mil ... Vamos lá,
podeis rir à vontade, concluiu S. Francisco de Sales.
E os outros santos riram efetivamente, não daquele grande riso descomposto dos
deuses de Homero, quando viram o coxo Vulcano servir à mesa, mas de um riso
modesto, tranqüilo, beato e católico.

   Depois, não pude ouvir mais nada. Caí redondamente no chão. Quando dei por
mim era dia claro... Corri a abrir todas as portas e janelas da igreja e da sacristia,
para deixar entrar o sol, inimigo dos maus sonhos.
  



ENTRE SANTOS, Machado de Assis

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