03/02/2018

Reze Menos Por Mim, Nelson Rodrigues


Vou falar de Alceu Amoroso Lima, mas o assunto é ainda Guimarães
Rosa, Eis o que eu queria dizer: — para mim, o amigo é o grande
acontecimento. (Bem me lembro daquela segunda-feira. Entro na redação e
vejo o Franklin de Oliveira. Vagava por entre mesas e cadeiras, e tão órfão
de Guimarães Rosa.) Há cinco ou seis anos, resolvi ser amigo do dr. Alceu.
Era dezembro. No dia 24, ligo para ele. Imaginei que, na espera de Natal, um
católico puro há de estar aberto para o mundo.
Comecei assim: — “Dr. Alceu, aqui fala o Nelson Rodrigues. Como
vai? Vai bem?”. Não havia nenhuma convivência entre nós. Mas ele
respondeu, vivamente: — “Ah, Nelson, tenho pensado tanto em você! Agora
mesmo, estava rezando por você”. Pensando em mim, rezando por mim. Vou
adiante: — “Dr. Alceu, estou-lhe telefonando para desejar todas as
felicidades, a si e aos seus” etc. etc. etc. Por um momento, tive vontade de
contar-lhe o seguinte: — “Dr. Alceu, quando eu era criança, o Tico-Tico
publicava um presépio para armar. O senhor sabe que eu recortava as
figurinhas e colava em papelão?”.
Todavia, não falei do presépio. Um ano depois, no mesmo 24 de
dezembro, disco novamente. E o dr. Alceu responde: — “Ah, Nelson, acabei
de rezar por você”. (Ah, não se esquecia de mim nas suas orações.) Mais
uma vez, não contei que em criança armava os presépios do Tico-Tico. E,
assim, Natal após Natal, não lhe faltei com o meu sofrido telefonema.
Eis o que eu pensava: — um católico, como o dr. Amoroso Lima, há de
ter Deus enterrado em si como um sino. Ele havia de imaginar que eu corria,
arquejante, atrás de um amigo, eternamente atrás de um amigo. E, no
entanto, eu sentia, com uma nitidez cruel, inapelável, que o dr. Alceu rezava
por mim e não era meu amigo. Simplesmente, não era meu amigo.
Até que, um dia, converso com uma senhora que acabava de chegar

de Roma. Entrara no Vaticano e fora recebida pelo papa. Na hora de se
despedir, o Santo padre baixa a voz e diz, súplice: — “Reze por mim”. Era
um papa, a mendigar uma oração. Tremendo de beleza, a pobre senhora
saiu dali como se fugisse.
No seguinte Natal, vou ligar para o dr. Alceu. Estou cada vez mais
convencido de que o amigo é um momento de eternidade. Antes de discar,
passo um bom quarto de hora sonhando diante do telefone. Eu queria ter,
com o dr. Alceu, uma conversa de lealdade total. Eis o que imaginava dizerlhe: — “Dr. Alceu, reze menos por mim. Se quiser, não reze nada. Mas seja
meu amigo. Apenas isso: — meu amigo. E, se insiste em rezar, vamos fazer
uma permuta: o senhor reza por mim e eu rezo por si”.
Daria tudo para ver o dr. Alceu mendigando as minhas orações, com a
humildade de um papa. Imaginei o velho católico a suplicar, do fundo do
seu desespero: — “Nelson, reze por mim. Eu preciso ser salvo. É a minha
salvação que está em jogo”. Se ele falasse assim, trêmulo de pavor, eu
responderia: — “Dr. Alceu, vou começar agora mesmo. Não desligue. Quero
que o senhor ouça a minha oração”. E assim eu salvaria o dr. Alceu Amoroso
Lima, e seríamos amigos eternamente.
Eu não rezo. Sou cristão e não rezo. A última vez em que rezei foi na
morte do meu irmão Roberto. Na morte, não: ele ainda agonizava e rezei
para salvá-lo. Quando o vi morto, fiz, a mim mesmo, o juramento ressentido:
— não rezar mais, nunca mais. (Roberto foi assassinado; e, morto, era belo
como os suicidas.) Mas rezaria pelo dr. Alceu se ele implorasse uma oração,
assim como um ceguinho pede uma moeda.
Bem me lembro do nosso último 24 de dezembro. Ouço a voz do dr.
Alceu: — “Alô?”. Estou imaginando: — “Vai repetir tudo, igualzinho como
da outra vez”. Digo: — “Dr. Alceu, é o Nelson Rodrigues. Como vai essa
figura?”. Foi de uma larga e cálida efusão: — “Ah, Nelson, acabei de rezar
por você”. Tomo um baque. Ele insiste: — “Tenho pedido muito por você”.
Aproveito uma pausa e dou o meu recado: — “Vim desejar-lhe todas as
felicidades etc. etc.”.
(E eu queria pingar, como no pires de um cego, a moeda da minha
oração.) Baixa em mim o tédio: começo a crer que o amigo é uma
impossibilidade. A conversa continuou e chegava a ser irreal, quase um
pesadelo humorístico. Subitamente, ele suspira: — “Ah, Nelson, você aí

nessa lama!”. Exatamente: — lama. Começo a ter medo do resto. Dr. Alceu
dizia “lama” familiarmente, como se falasse de uma tia minha, bem idosa e
até estimável. Tive a idéia de responder-lhe: — “Minha lama vai bem. E a
sua, dr. Alceu?”.
Acabei com aquilo sumariamente: — “Até logo, até logo. Passar bem”.
Desliguei e confesso: — com um desgosto do Natal e, até, um tédio
retrospectivo do presépio do Tico-Tico. Nunca mais telefonei, nunca mais.
Mas, ao relembrar o episódio, imagino um mundo em que as senhoras se
cumprimentassem assim: — “Como tem passado a sua lama?”. Eis o que o
dr. Alceu, na sua imodéstia de santo, não percebe — qualquer um tem seus
íntimos pântanos, sim, pântanos adormecidos. É preciso não despertá-los.
Mas certos acontecimentos acordam a lama do seu negro sono. Quando isso
acontece, a alma começa a exalar o tifo, a malária, e a paisagem apodrece.
Justamente, a morte de Guimarães Rosa tocou meu íntimo e
inconfesso pântano. Vivo, ele nos agredia e humilhava com a sua
monumental presença literária. Certa vez, ouvi o Otto Lara Resende dizer,
na
TV Globo: — “O genial João Guimarães Rosa”. Além de chamá-lo
“genial”, ainda lhe punha, por extenso, o nome. Eu estava em casa. Detestei
o Otto e pensei, desfeiteado: — “Uma besta, esse Otto”. No dia seguinte
estava eu dizendo, não sei a quem, que o Grande sertão tinha muito de gratuito, de incomunicável; e a linguagem do autor, que ninguém entendia, era
uma audição para surdos. Fiquei, por uns dias, ressentido com o Otto: —
“Nunca me chamou de gênio”, era o meu lamento.
E, súbito, num domingo, morria Guimarães Rosa. A notícia deu-me
um alívio, uma brusca e vil euforia. É fácil admirar, sem ressentimento, um
gênio morto. Já tínhamos um Machado de Assis. Guimarães Rosa seria outro
Machado de Assis. Claro que os demais continuavam vivíssimos,
atropelando. Mas esses não fundaram uma língua, nem escreveram “A
terceira margem do rio” (que o Hélio Pellegrino declamou para mim, ao
telefone).
No dia seguinte, Guimarães Rosa tinha uma imprensa de chefe de
Estado assassinado. Vocês se lembram quando um tiro arrancou o queixo
forte, vital, de Kennedy? Pois Guimarães Rosa subiu às manchetes como o
presidente fuzilado dos Estados Unidos. Pela primeira vez um escritor
aparecia em oito colunas, nas primeiras páginas. No princípio do século,

Euclides da Cunha também teve a mesma glória impressa. Mas não era o
autor de Os sertões, não era o bárbaro estilista. Para ser manchete, Euclides
teve de ser varado de balas.
Há qualquer coisa de árido, ou de vazio, ou de humilhante, na morte
natural do grande homem. Pois Guimarães Rosa, com um puro e
convencional enfarte, mereceu a promoção frenética das tragédias de
sangue. Repito: — pela primeira vez fez-se crítica literária nas manchetes. Os
meus amigos penduravam-se no telefone. O Hélio Pellegrino, na véspera,
restritivo, realizou uma fulminante revisão crítica. Relia o Guimarães Rosa e
tremia de beleza. Ligou para o Mário Pedrosa para arrastá-lo na mesma
admiração. Mas o Mário resmungou: — “É o novo Coelho Neto!”. Muito
antes, eu ouvira do Carlos Heitor Cony o mesmo berro: — “É o novo Coelho
Neto!”. Quanto a mim, fui ao velório na Academia. Entro e paro ante a
indignidade dos círios elétricos.
[6/12/1967]
 

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