31/03/2018

Amor para além da vida e da morte, Nelson Rodrigues

AMOR PARA ALÉM DA VIDA E DA MORTEHá vinte anos ou trinta (exatamente, trinta), ia passando eu por um
cinema e paro um momento. A porta do cinema me fascina como a capa de
um livro. E lá estava anunciado o filme da semana: De amor também se morre.
Os artistas eram Charles Boyer, com trinta anos menos, e Olivia de
Havilland. (Ou por outra: — não era Olivia de Havilland, mas a irmã de
Olivia, cujo nome não me ocorre.)
De amor também se morre, se não me engano, uma história inglesa,
adaptada por Jean Giraudoux. Este foi um virtuose. Usava a prosa francesa
como um luminoso disfarce de sua impotência vital. Mas tanto Giraudoux
como Charles Boyer, como a irmã de Olivia de Havilland, eram nomes
secundários ou nulos. O apelo encantado vinha do título irresistível: — De
amor também se morre.
(Agora me lembro: — a irmã de Olivia de Havilland chamava-se Joan
Fontaine.) E as pessoas que passavam na calçada, ou no bonde, ou de
automóvel, sentiam um frescor de fonte e de idílio. Morrer de amor, morrer
por amor, eis uma utopia que está cravada em qualquer coração. Ninguém
precisava entrar no cinema, ver o filme. O filme era o título. E o vago
transeunte levava o título como uma dália roubada.
Eis o que eu queria dizer: — minha cunhada Célia, viúva do meu
irmão Mário Filho, morreu de amor. Sempre escrevo que todo amor é eterno;
e, se acaba, não era amor. Lembro-me de uma festa a que comparecemos, eu
e Lúcia, Mário e Célia. Foi em agosto, e Mário ia morrer em setembro, menos
de um mês depois. E, então, comecei a dizer as verdades que me parecem
eternas.
Conversando com seis ou sete senhoras, afirmei, por exemplo: —
“Ninguém sobrevive ao grande amor”. Houve um alegre espanto. Como é?
Eu queria que a viúva morresse para o mundo? Uma das presentes disse que

a viúva tinha direito a uma segunda, terceira ou quarta experiência
matrimonial. E instalou-se ali uma divertida polêmica, de uma frivolidade a
um só tempo irresponsável e sinistra.
Cercado de risadas por todos os lados, pedi novamente a palavra: —
“Um momento, um momento. Falo da viúva que ama. A outra não
interessa”. E, de fato, a viúva que não ama é a da valsa, é a própria Viúva
alegre, de Franz Lehar. Tive a probidade de reconhecer que, em 99% dos
casos, as viúvas são alegres. Era eu sozinho contra muitas. E terminei
dizendo, por outras palavras, o seguinte: se a viúva amava o falecido, o
segundo matrimônio passa a ser o adultério com Guaranás, salgadinhos e
convidados.
Das senhoras presentes, apenas a minha cunhada Célia achou comigo
que o amor há de ser, fatalmente, o primeiro, único e último. Ninguém ama
por uma temporada, por duas semanas ou seis meses. Ama-se para sempre.
O amor há de continuar para além da vida e para além da morte. Célia
achava que temos de morrer com o ser amado. O amor não deixa
sobreviventes.
Eu me lembro de Célia na morte de Mário. As viúvas que não amam e
que apenas representam uma dor não sentida podem ficar altas, eretas,
solenes, hieráticas etc. Mas Célia me deu sempre a sensação que não estava
de pé, que ia de queda em queda, que não parava de cair, como nos sonhos
abismais. Houve um momento em que a fizeram sentar-se, junto ao caixão:
— baixava a cabeça e assim ficou uma eternidade, pendida de sonho.
E, depois, não parou mais. Um mês, dois, três meses depois, ela dizia
a mim e aos outros: — “Eu gosto cada vez mais do Mário”. Para o que ama,
a morte não interrompe nada. O amor continua nas profundezas, sim, nas
profundezas onde estão as raízes do ser, crispadas como víboras. Gostar
cada vez mais de um morto. Amá-lo a cada dia mais do que na véspera.
Claro que, diante da grande dor, cada um age e reage como um idiota da
objetividade.
Eu fugia de seus telefonemas. Avisava em casa: — “Se for Célia, não
estou”. Sempre que falava comigo começava: “Você, que era o maior amigo
de Mário”. E eu não queria ver que a monotonia é própria, obrigatória, da
grande dor. Foi preciso que Célia morresse para que eu sentisse a minha
própria aridez. Foi um erro ou, pior do que isso, foi uma impiedade a minha

fuga. Como me arrependo de não ter dito: — “Sofra. Não tenha medo de
sofrer. E não esqueça, nunca, nunca”.
É de Neruda, do Neruda da primeira fase, este verso: — “Tão curto o
amor e tão longo o esquecimento”. Ai de nós, ai de nós! Não fazemos outra
coisa senão esquecer. E, se alguém não esquece, nós pensamos logo em
“tratamento psiquiátrico”. É uma inversão cruel e estúpida. Os psiquiatras e
os psicanalistas deviam-se incumbir dos que esquecem fácil. Sim, foi preciso
que eu a visse morta. E me veio, então, tarde demais, todo um fluxo de
consciência. O que parecia morbidez era saúde. E o gemido, o soluço, o grito,
as entranhas feridas, tudo, tudo era graça.
Pensou em se dedicar à obra do marido, viver para a obra do marido.
Uma vez, quis telefonar para o João Saldanha e o Armando Nogueira e
pedir-lhes: — “Chamem o Estádio Mário Filho de Estádio Mário Filho, e não
de Maracanã”. Seria bem capaz de sair de porta em porta, trêmula de amor,
anunciando: — “Não é Maracanã, é Mário Filho. Estádio Mário Filho”.
Outras vezes, passava pelo estádio. Lá estava o nome: — “Mário Filho”. E
vinha, de suas profundezas, toda uma dilacerada euforia.
Lembro-me de que pensei mil vezes: — “Vai morrer. Qualquer dia
morre!”. Morrer de amor, morrer por amor, era a sua clara predestinação.
Estamos tão esquecidos de sofrer que a sua dor nos parecia, e cada vez mais,
uma doença psicológica, quase a loucura. E ninguém entendia que a grande
dor deve ser preservada (a dor que passa abre, na vida interior, imensas e
lívidas sibérias).
Quando meu irmão morreu, escrevi que o último rosto não mente,
não finge, não trai. Também me curvei sobre o caixão de minha cunhada
Célia. Fiquei olhando aquela paz que era mais êxtase do que sono. A morte
foi para ela um retorno. Era o rosto da adolescência, o rosto do idílio. As
feições dos dezesseis anos. Eu me lembro do instante em que meu irmão
Augusto me disse, no telefone: — “Você soube da Célia? Aquilo que você
previa aconteceu”. Minha reação foi estupidamente convencional. Era uma
irmã que eu perdia. Mas quando a vi, no caixão, percebi toda a verdade: —
nenhuma mulher podia ser mais feliz.
[23/12/1967]
  

25/03/2018

D.Paula, Machado de Assis


    Não era possível chegar mais a ponto. D. Paula entrou na sala exatamente quando
a sobrinha enxugava os olhos cansados de chorar. Compreende-se o assombro da
tia. Entender-se-á também o da sobrinha, em se sabendo que D. Paula vive no
alto da Tijuca, donde raras vezes desce; a última foi pelo Natal passado, e
estamos em maio de 1882.
 
    Desceu ontem, à tarde, e foi para casa da irmã, Rua
do Lavradio. Hoje, tão depressa almoçou, vestiu-se e correu a visitar a sobrinha. A
primeira escrava que a viu, quis ir avisar a senhora, mas D. Paula ordenou-lhe que
não, e foi pé ante pé, muito devagar, para impedir o rumor das saias, abriu a
porta da sala de visitas, e entrou.

— Que é isto? exclamou.

Venancinha atirou-se-lhe aos braços, as lágrimas vieram-lhe de novo. A tia beijoua muito, abraçou-a, disse-lhe palavras de conforto, e pediu, e quis que lhe
contasse o que era, se alguma doença, ou...

— Antes fosse uma doença! antes fosse a morte! interrompeu a moça.

— Não digas tolices; mas que foi? anda, que foi?

     Venancinha enxugou os olhos e começou a falar. Não pôde ir além de cinco ou seis
palavras; as lágrimas tornaram, tão abundantes e impetuosas, que D. Paula achou
de bom aviso deixá-las correr primeiro. Entretanto, foi tirando a capa de rendas
pretas que a envolvia, e descalçando as luvas. Era uma bonita velha, elegante,
dona de um par de olhos grandes, que deviam ter sido infinitos.
 Enquanto a sobrinha chorava, ela foi cerrar cautelosamente a porta da sala, e voltou ao
canapé. No fim de alguns minutos, Venancinha cessou de chorar, e confiou à tia o
que era.

    Era nada menos que uma briga com o marido, tão violenta, que chegaram a falar
de separação. A causa eram ciúmes. Desde muito que o marido embirrava com
um sujeito; mas na véspera à noite, em casa do C..., vendo-a dançar com ele
duas vezes e conversar alguns minutos, concluiu que eram namorados. Voltou
amuado para casa; de manhã, acabado o almoço, a cólera estourou, e ele disselhe coisas duras e amargas, que ela repeliu com outras.

— Onde está teu marido? perguntou a tia.

— Saiu; parece que foi para o escritório.

     D. Paula perguntou-lhe se o escritório era ainda o mesmo, e disse-lhe que

descansasse, que não era nada; dali a duas horas tudo estaria acabado. Calçava
as luvas rapidamente.

— Titia vai lá?

— Vou... Pois então? Vou. Teu marido é bom, são arrufos. 104? Vou lá; espera por
m
im, que as escravas não te vejam.

   Tudo isso era dito com volubilidade, confiança e doçura. Calçadas as luvas, pôs o
mantelete, e a sobrinha ajudou-a, falando também, jurando que, apesar de tudo,
adorava o Conrado. Conrado era o marido, advogado desde 1874. D. Paula saiu,
levando muitos beijos da moça. Na verdade, não podia chegar mais a ponto. De
caminho, parece que ela encarou o incidente, não digo desconfiada, mas curiosa,
um pouco inquieta da realidade positiva; em todo caso ia resoluta a reconstruir a
paz doméstica.

    Chegou, não achou o sobrinho no escritório, mas ele veio logo, e, passado o
primeiro espanto, não foi preciso que D. Paula lhe dissesse o objeto da visita;
Conrado adivinhou tudo. Confessou que fora excessivo em algumas coisas, e, por
outro lado, não atribuía à mulher nenhuma índole perversa ou viciosa. Só isso; no
mais, era uma cabeça de vento, muito amiga de cortesias, de olhos ternos, de
palavrinhas doces, e a leviandade também é uma das portas do vício. Em relação
à pessoa de quem se tratava, não tinha dúvida de que eram namorados.

     Venancinha contara só o fato da véspera; não referiu outros, quatro ou cinco, o
penúltimo no teatro, onde chegou a haver tal ou qual escândalo. Não estava
disposto a cobrir com a sua responsabilidade os desazos da mulher. Que
namorasse, mas por conta própria.

     D. Paula ouviu tudo, calada; depois falou também. Concordava que a sobrinha
fosse leviana; era próprio da idade. Moça bonita não sai à rua sem atrair os olhos,
e é natural que a admiração dos outros a lisonjeie. Também é natural que o que
ela fizer de lisonjeada pareça aos outros e ao marido um princípio de namoro: a
fatuidade de uns e o ciúme do outro explicam tudo. 

Pela parte dela, acabava de ver a moça chorar lágrimas sinceras, deixou-a consternada, falando de morrer, abatida com o que ele lhe dissera. E se ele próprio só lhe atribuía leviandade, por
que não proceder com cautela e doçura, por meio de conselho e de observação,
poupando-lhe as ocasiões, apontando-lhe o mal que fazem à reputação de uma
senhora as aparências de acordo, de simpatia, de boa vontade para os homens?

    Não gastou menos de vinte minutos a boa senhora em dizer essas coisas mansas,
com tão boa sombra, que o sobrinho sentiu apaziguar-se-lhe o coração. Resistia, é
verdade; duas ou três vezes, para não resvalar na indulgência, declarou à tia que
entre eles tudo estava acabado. E, para animar-se, evocava mentalmente as
razões que tinha contra a mulher. A tia, porém, abaixava a cabeça para deixar
passar a onda, e surgia outra vez com os seus grandes olhos sagazes e teimosos.
Conrado ia cedendo aos poucos e mal. Foi então que D. Paula propôs um meio termo.

— Você perdoa-lhe, fazem as pazes, e ela vai estar comigo, na Tijuca, um ou dois
meses; uma espécie de desterro. Eu, durante este tempo, encarrego-me de lhe
pôr ordem no espírito. Valeu?

     Conrado aceitou. D. Paula, tão depressa obteve a palavra, despediu-se para levar
a boa nova à outra, Conrado acompanhou-a até à escada. Apertaram as mãos; D.
Paula não soltou a dele sem lhe repetir os conselhos de brandura e prudência;
depois, fez esta reflexão natural:

— E vão ver que o homem de quem se trata nem merece um minuto dos nossos
cuidados...

— É um tal Vasco Maria Portela...

      D. Paula empalideceu. Que Vasco Maria Portela? Um velho, antigo diplomata,
que... Não, esse estava na Europa desde alguns anos, aposentado, e acabava de
receber um título de barão. Era um filho dele, chegado de pouco, um pelintra... D.
Paula apertou-lhe a mão, e desceu rapidamente. No corredor, sem ter necessidade
de ajustar a capa, fê-lo durante alguns minutos, com a mão trêmula e um pouco
de alvoroço na fisionomia.
     Chegou mesmo a olhar para o chão, refletindo. Saiu, foi
ter com a sobrinha, levando a reconciliação e a cláusula. Venancinha aceitou tudo.
Dois dias depois foram para a Tijuca. Venancinha ia menos alegre do que
prometera; provavelmente era o exílio, ou pode ser também que algumas
saudades. Em todo caso, o nome de Vasco subiu a Tijuca, se não em ambas as
cabeças, ao menos na da tia, onde era uma espécie de eco, um som remoto e
brando, alguma coisa que parecia vir do tempo da Stoltz e do ministério Paraná.
Cantora e ministério, coisas frágeis, não o eram menos que a ventura de ser
moça, e onde iam essas três eternidades? 

      Jaziam nas ruínas de trinta anos. Era tudo o que D. Paula tinha em si e diante de si.
Já se entende que o outro Vasco, o antigo, também foi moço e amou. Amaram-se,
fartaram-se um do outro, à sombra do casamento, durante alguns anos, e, como
o vento que passa não guarda a palestra dos homens, não há meio de escrever
aqui o que então se disse da aventura. A aventura acabou; foi uma sucessão de
horas doces e amargas, de delícias, de lágrimas, de cóleras, de arroubos, drogas
várias com que encheram a esta senhora a taça das paixões. D. Paula esgotou-a
inteira e emborcou-a depois para não mais beber. A saciedade trouxe-lhe a
abstinência, e com o tempo foi esta última fase que fez a opinião. Morreu-lhe o
marido e foram vindo os anos. D. Paula era agora uma pessoa austera e pia, cheia
de prestígio e consideração.

     A sobrinha é que lhe levou o pensamento ao passado. Foi a presença de uma
situação análoga, de mistura com o nome e o sangue do mesmo homem, que lhe
acordou algumas velhas lembranças. Não esqueçam que elas estavam na Tijuca,
que iam viver juntas algumas semanas, e que uma obedecia à outra; era tentar e
desafiar a memória.

— Mas nós deveras não voltamos à cidade tão cedo? perguntou Venancinha rindo,
no outro dia de manhã.

— Já estás aborrecida?

— Não, não, isso nunca, mas pergunto...

   D. Paula, rindo também, fez com o dedo um gesto negativo; depois, perguntoulhe se tinha saudades cá de baixo. Venancinha respondeu que nenhumas; e para
dar mais força à resposta, acompanhou-a de um descair dos cantos da boca, a
modo de indiferença e desdém. Era pôr demais na carta, D. Paula tinha o bom
costume de não ler às carreiras, como quem vai salvar o pai da forca, mas
devagar, enfiando os olhos entre as sílabas e entre as letras, para ver tudo, e
achou que o gesto da sobrinha era excessivo.

"Eles amam-se!" pensou ela.

      A descoberta avivou o espírito do passado. D. Paula forcejou por sacudir fora
essas memórias importunas; elas, porém, voltavam, ou de manso ou de assalto,
como raparigas que eram, cantando, rindo, fazendo o diabo. D. Paula tornou aos
seus bailes de outro tempo, às suas eternas valsas que faziam pasmar a toda a
gente, às mazurcas, que ela metia à cara das sobrinhas como sendo a mais
graciosa coisa do mundo, e aos teatros, e às cartas, e vagamente, aos beijos; mas
tudo isso — e esta é a situação — tudo isso era como as frias crônicas, esqueleto

da história, sem a alma da história.

  Passava-se tudo na cabeça. D. Paula tentava emparelhar o coração com o cérebro, a ver se sentia alguma coisa além da pura repetição mental, mas, por mais que evocasse as comoções extintas, não lhe voltava nenhuma. Coisas truncadas!

     Se ela conseguisse espiar para dentro do coração da sobrinha, pode ser que
achasse ali a sua imagem, e então... Desde que esta idéia penetrou no espírito de
D. Paula, complicou-lhe um pouco a obra de reparação e cura. Era sincera, tratava
da alma da outra, queria vê-la restituída ao marido. Na constância do pecado é
que se pode desejar que outros pequem também, para descer de companhia ao
purgatório; mas aqui o pecado já não existia. D. Paula mostrava à sobrinha a
superioridade do marido, as suas virtudes e assim também as paixões, que
podiam dar um mau desfecho ao casamento, pior que trágico, o repúdio.
     Conrado, na primeira visita que lhes fez, nove dias depois, confirmou a
advertência da tia; entrou frio e saiu frio. Venancinha ficou aterrada. Esperava que
os nove dias de separação tivessem abrandado o marido, e, em verdade, assim
era; mas ele mascarou-se à entrada e conteve-se para não capitular. E isto foi
mais salutar que tudo o mais. O terror de perder o marido foi o principal elemento
de restauração. O próprio desterro não pôde tanto.

      Vai senão quando, dois dias depois daquela visita, estando ambas ao portão da
chácara, prestes a sair para o passeio do costume, viram vir um cavaleiro.
Venancinha fixou a vista, deu um pequeno grito, e correu a esconder-se atrás do
muro. D. Paula compreendeu e ficou. Quis ver o cavaleiro de mais perto; viu-o dali
a dois ou três minutos, um galhardo rapaz, elegante, com as suas finas botas
lustrosas, muito bem-posto no selim; tinha a mesma cara do outro Vasco, era o
filho; o mesmo jeito da cabeça, um pouco à direita, os mesmos ombros largos, os
mesmos olhos redondos e profundos.

      Nessa mesma noite, Venancinha contou-lhe tudo, depois da primeira palavra que
ela lhe arrancou. Tinham-se visto nas corridas, uma vez, logo que ele chegou da
Europa. Quinze dias depois, foi-lhe apresentado em um baile, e pareceu-lhe tão
bem, com um ar tão parisiense, que ela falou dele, na manhã seguinte, ao marido.
Conrado franziu o sobrolho, e foi este gesto que lhe deu uma idéia que até então
não tinha. Começou a vê-lo com prazer; daí a pouco com certa ansiedade. Ele
falava-lhe respeitosamente, dizia-lhe coisas amigas, que ela era a mais bonita
moça do Rio, e a mais elegante, que já em Paris ouvira elogiá-la muito, por
algumas senhoras da família Alvarenga. Tinha graça em criticar os outros, e sabia
dizer também umas palavras sentidas, como ninguém.

      Não falava de amor, mas perseguia-a com os olhos, e ela, por mais que afastasse os seus, não podia afastá-los de todo. Começou a pensar nele, amiudadamente, com interesse, e
quando se encontravam, batia-lhe muito o coração; pode ser que ele lhe visse
então, no rosto, a impressão que fazia.

   D. Paula, inclinada para ela, ouvia essa narração, que aí fica apenas resumida e
coordenada. Tinha toda a vida nos olhos; a boca meio aberta, parecia beber as
palavras da sobrinha, ansiosamente, como um cordial. E pedia-lhe mais, que lhe
contasse tudo, tudo. Venancinha criou confiança. O ar da tia era tão jovem, a
exortação tão meiga e cheia de um perdão antecipado, que ela achou ali uma
confidente e amiga, não obstante algumas frases severas que lhe ouviu,
mescladas às outras, por um motivo de inconsciente hipocrisia. Não digo cálculo;
D. Paula enganava-se a si mesma. Podemos compará-la a um general inválido,
que forceja por achar um pouco do antigo ardor na audiência de outras
campanhas.

 — Já vês que teu marido tinha razão, dizia ela; foste imprudente, muito
imprudente...

Venancinha achou que sim, mas jurou que estava tudo acabado.

— Receio que não. Chegaste a amá-lo deveras?

— Titia...
— Tu ainda gostas dele!

— Juro que não. Não gosto; mas confesso... sim... confesso que gostei... Perdoeme tudo; não diga nada a Conrado; estou arrependida... Repito que a princípio um
pouco fascinada... Mas que quer a senhora?

— Ele declarou-te alguma coisa?
—Declarou; foi no teatro, uma noite, no Teatro Lírico, à saída. Tinha costume de ir
buscar-me ao camarote e conduzir-me até o carro, e foi à saída... duas palavras...
D. Paula não perguntou, por pudor, as próprias palavras do namorado, mas
imaginou as circunstâncias, o corredor, os pares que saíam, as luzes, a multidão,
o rumor das vozes, e teve o poder de representar, com o quadro, um pouco das
sensações dela; e pediu-lhas com interesse, astutamente.

— Não sei o que senti, acudiu a moça cuja comoção crescente ia desatando a
língua; não me lembro dos primeiros cinco minutos. Creio que fiquei séria; em
todo o caso, não lhe disse nada. Pareceu-me que toda gente olhava para nós, que
teriam ouvido, e quando alguém me cumprimentava sorrindo, dava-me idéia de
estar caçoando. Desci as escadas não sei como, entrei no carro sem saber o que
fazia; ao apertar-lhe a mão, afrouxei bem os dedos. Juro-lhe que não queria ter
ouvido nada. Conrado disse-me que tinha sono, e encostou-se ao fundo do carro;
foi melhor assim, porque eu não sei que diria, se tivéssemos de ir conversando.

      Encostei-me também, mas por pouco tempo; não podia estar na mesma posição.
Olhava para fora através dos vidros, e via só o clarão dos lampiões, de quando em
quando, e afinal nem isso mesmo; via os corredores do teatro, as escadas, as
pessoas todas, e ele ao pé de mim, cochichando as palavras, duas palavras só, e
não posso dizer o que pensei em todo esse tempo; tinha as idéias baralhadas,
confusas, uma revolução em mim...

— Mas, em casa?

— Em casa, despindo-me, é que pude refletir um pouco, mas muito pouco. Dormi
tarde, e mal. De manhã, tinha a cabeça aturdida. Não posso dizer que estava
alegre nem triste; lembro-me que pensava muito nele, e para arredá-lo prometi a
mim mesma revelar tudo ao Conrado; mas o pensamento voltava outra vez. De
quando em quando, parecia-me escutar a voz dele, e estremecia. Cheguei a
lembrar-me que, à despedida, lhe dera os dedos frouxos, e sentia, não sei como
diga, uma espécie de arrependimento, um medo de o ter ofendido... e depois
vinha o desejo de o ver outra vez... Perdoe-me, titia; a senhora é que quer que
lhe conte tudo.

     A resposta de D. Paula foi apertar-lhe muito a mão e fazer um gesto de cabeça.
Afinal achava alguma coisa de outro tempo, ao contato daquelas sensações
ingenuamente narradas. Tinha os olhos ora meio cerrados, na sonolência da
recordação, — ora aguçados de curiosidade e calor, e ouvia tudo, dia por dia,
encontro por encontro, a própria cena do teatro, que a sobrinha a princípio lhe
ocultara. E vinha tudo o mais, horas de ânsia, de saudade, de medo, de
esperança, desalentos, dissimulações, ímpetos, toda a agitação de uma criatura
em tais circunstâncias, nada dispensava a curiosidade insaciável da tia. Não era
um livro, não era sequer um capítulo de adultério, mas um prólogo, —
interessante e violento.

    Venancinha acabou. A tia não lhe disse nada, deixou-se estar metida em si

mesma; depois acordou, pegou-lhe na mão e puxou-a. Não lhe falou logo; fitou
primeiro, e de perto, toda essa mocidade, inquieta e palpitante, a boca fresca, os
olhos ainda infinitos, e só voltou a si quando a sobrinha lhe pediu outra vez
perdão. D. Paula disse-lhe tudo o que a ternura e a austeridade da mãe lhe
poderia dizer, falou-lhe de castidade, de amor ao marido, de respeito público; foi
tão eloqüente que Venancinha não pôde conter-se, e chorou.

      Veio o chá, mas não há chá possível depois de certas confidências. Venancinha
recolheu-se logo, e, como a luz era agora maior, saiu da sala com os olhos baixos,
para que o criado lhe não visse a comoção. D. Paula ficou diante da mesa e do
criado. Gastou vinte minutos, ou pouco menos, em beber uma xícara de chá e
roer um biscoito, e apenas ficou só, foi encostar-se à janela, que dava para a
chácara.

       Ventava um pouco, as folhas moviam-se sussurrando, e, conquanto não fossem as
mesmas do outro tempo, ainda assim perguntavam-lhe: "Paula, você lembra-se
do outro tempo?" Que esta é a particularidade das folhas, as gerações que passam
contam às que chegam as coisas que viram, e é assim que todas sabem tudo e
perguntam por tudo. Você lembra-se do outro tempo?

      Lembrar, lembrava; mas aquela sensação de há pouco, reflexo apenas, tinha
agora cessado. Em vão repetia as palavras da sobrinha, farejando o ar agreste da
noite: era só na cabeça que achava algum vestígio, reminiscências, coisas
truncadas. 

     O coração empacara de novo, o sangue ia outra vez com a andadura
do costume. Faltava-lhe o contato moral da outra. E continuava, apesar de tudo,
diante da noite, que era igual às outras noites de então, e nada tinha que se
parecesse com as do tempo da Stoltz e do Marquês de Paraná; mas continuava, e
lá dentro as pretas espalhavam o sono contando anedotas, e diziam, uma ou outra
vez, impacientes:
—Sinhá velha hoje deita tarde como diabo!
  



D. PAULA, Contos Fluminenses, Machado de Assis

24/03/2018

A virgem sonhava no jardim, Nelson Rodrigues


Não sei se vocês sabem o que aconteceu com o velho Confúcio. Certa
vez, uma virgem sonhava no jardim. E, de repente, um raio de sol tocou-lhe
o ventre. Assim nasceu Confúcio, filho de mulher e de um raio de sol. E
nasceu com noventa anos, já de sapatos e já de guarda-chuva,
Aos sete anos, achei que todo mundo imitava Confúcio. O sujeito já
nascia com a cara e a idade definitivas. Por exemplo: — Rui Barbosa. Para
mim, era um septuagenário nato e para sempre septuagenário. E assim os
outros e eu mesmo. Eu teria sempre sete anos, ficaria cristalizado nos sete
anos, eternamente. O passado não existia, nem o futuro. Não sentia, por trás
de mim, nenhum passado.
Como eu seria sempre menino, era fascinado pelos adultos. E, mais
ainda, pelos velhos. Ao lado de nossa casa morava um trêmulo velho, de
olho azul. Teria seus setenta e cinco, oitenta anos. Eu achava linda até a sua
hemiplegia. (Escrevi “olho azul” e podia acrescentar: — lábio roxo.) Até
1925, o Brasil era uma paisagem de velhos em flor.
Lembro-me de um outro ancião que, certa vez, me passou a mão pela
cabeça. Esse gesto vago, de uma ternura distraída, me dilacerou de alegria.
De outra feita, uma senhora me pediu para comprar anil, no armazém. Fui
correndo e voltei, na vaidade do pequeno serviço. Ah, também fui muito
usado pelos namorados. Levava bilhetinhos, recados, flores.
Em 1919, eu não saía da casa de uma d. Filó ou, por extenso, Filomena
(nome inviável em nossos dias). Morava num sobrado da rua D. Zulmira; no
térreo residia outra família. Lembro-me de que, no quintal, junto do muro,
havia um abacateiro. Como no soneto de Raul de Leone, a árvore ia dar seus
abacates no pomar alheio. D. Filó era a mãe de Silene e de Antoninho, cada
um filho de um matrimônio. D. Filó era viúva duas vezes.
Os vizinhos diziam de Silene: — “Um biscuit”. Devia ser linda. E, anos

depois, quando houve o concurso de Miss Brasil, o primeiro, eu ouvia dizer:
— “Silene é mais bonita do que Zezé Leone”. Não sei, não sei. Naquele
tempo, eu não sabia o que era ser bonita. Até certa idade, não tive nenhum
gosto seletivo. Havia uma cozinheira em casa, uma crioula, mãe do Zé
Lomba. Vejo o seu pescoço. Tinha um bócio, quase do tamanho de uma
melancia. Pois eu achava bonita a mãe do Zé Lomba, inclusive o bócio.
Era a época das minhas paixões. E eu não sabia dizer qual a mais
bonita, d. Filó ou Silene. Gostava ora de uma, ora de outra e, às vezes, de
ambas ao mesmo tempo. D. Filó tinha papada como a diretora de minha
escola. (Só muito depois, já adulto, descobri a verdade pretérita: — d. Filó
era feia como a mãe velha da mulher bonita.) Aí está: — feia como a mãe
velha da mulher bonita.
Eu ia para a casa do Antoninho todos os dias. No fundo do quintal
jogávamos bola de gude. E ninguém podia imaginar que só o amor (e amor
por duas mulheres) me levava ali. Estou ouvindo d. Filó: — “Nelson, você
gosta de pessegada?”. Ah, naquele tempo, só não gostava de jiló, só não
gostava de chuchu; era guloso de tudo o mais. “Toma, Nelson.” E me dava a
fatia de pessegada. Lembro-me da fruteira, no centro da mesa, com
sujeirinha de mosca nas bananas.
Quase todo o dia, d. Filó chamava a filha: — “Vem apanhar, Silene”.
Que idade tinha a menina? Uns dezessete anos. Dizia, branca: — “Não,
mamãe, não”. E a outra: — “Vem, anda, Silene!”. A filha podia correr, mas
ficava no canto da sala, acuada, sem se mexer. E chorava antes de apanhar.
A mãe vinha. E, então, Silene parava de chorar, passiva como uma borboleta
espetada na parede. D. Filó dizia-lhe: — “Mostra a mão”. E repetia, sem
raiva, quase doce: — “Mostra a mão”. E Silene abria a mão para os bolos.
(Como os filhos apanhavam em 1919! De repente, os gritos
começavam. Era uma surra. E eu, em casa, ou na calçada, parava de brincar;
ficava ouvindo, crispado. Mas d. Filó batia sem paixão, sem ódio. As outras
mães, não. Na esquina morava uma baiana. Batia no filho e se esganiçava: —
“Por que você não morre, desgraçado? Tomara que você morra!”. Morrer,
morrer. D. Filó não falava em morte. Certa vez, batia na filha, quando sentiu
cheiro de queimado. Foi à cozinha tirar a panela do fogo; depois, voltou e
continuou a surra.)
Silene apanhava de palmatória e na mão, sempre na mão. (Só uma vez

d. Filó bateu-lhe nos quadris.) Um dia, perguntei ao Antoninho: — “Mas o
que é que tua irmã fez?”. Ele não sabia, ninguém sabia. Mas eu sentia, na
moça, uma culpa misteriosa, sim, uma culpa fantástica. As duas sabiam e
havia entre elas um segredo mortal. No fundo, no fundo, eu ia à casa de d.
Filó ver Silene apanhar.
No fim de 1918, houve uma batalha de confetes na rua D. Zulmira.
Hoje não há mais batalha de confetes e quase não há mais carnaval.
Ninguém imagina o que foi a fúria carnavalesca depois da “Espanhola”. As
famílias estavam sem vários filhos, tias, mães, pais. Lembro-me de um dos
nossos vizinhos que perdeu, na Gripe, até o cachorro da casa. O tédio da
morte enlouqueceu a cidade.
As batalhas da rua D. Zulmira eram célebres. E aquela foi uma
loucura inédita. Eu e Antoninho, do alto da sacada, espiávamos o
movimento, embaixo. Ouço d. Filó gritando com Silene: — “Você pensa que
é mais bonita do que eu? Fica sabendo: — eu não me troco por você, sua
lambisgóia!”. Silene respondeu baixinho não sei o quê. E a mãe: — “Você
não me conhece, Silene!”. A filha sussurrou qualquer coisa que eu também
não ouvi. Novamente, a voz de d. Filó: — “O que se faz aqui, aqui se paga.
Você vai me pagar tudo, tudo!”.
Passou. Meia hora depois, as duas desceram para o portão. Eu, no
sobrado, começava a ter medo. Ainda pensei: — “Vou-me embora”. E, de
repente, os gritos começaram lá embaixo no portão. Antoninho disse,
branco: — “É Silene”. Houve um fluxo e refluxo da multidão. Uma voz de
homem berra: — “Chamem a Assistência”. Um soldado sobe a escada, com
Silene no colo. D. Filó repetia, fora de si: — “Foi o mascarado! Foi o
mascarado!”. Silene gemia grosso, como um homem: — “Estou cega, estou
cega”. A sala foi invadida de fantasias. Um sujeito arrancou a máscara de
caveira para espiar melhor. D. Filó não parava (nunca me esqueço: tinha
uma orla de suor em cima do lábio superior). Arfava: — “Um mascarado.
Apertou uma seringa de borracha”. Um esguicho de iodo no olho de Silene.
Corri para casa, quando a Assistência entrava na rua. Só uns quinze
dias depois voltei lá. Vi Silene, com um olho normal e um outro enorme e
branco. O olho branco chorava sem lágrimas. Entrei e ela virou o rosto, na
vergonha da cegueira. D. Filó perguntou: — “Nelson, quer pessegada?”.
Quis. E, depois, a mãe vira-se para a filha e diz baixo, tão baixo, que só eu

ouvi — “Caolha!”. E foi guardar a lata de doce. Saí e vim para casa.
Começava a ter medo dos outros. Aprendia que a nossa solidão nasce da
convivência humana.
[20/12/1967]
  

18/03/2018

Um Apólogo, Machado de Assis


   Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que
vale alguma coisa neste mundo?

— Deixe-me, senhora.

— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar
insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem
cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu.

Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

— Mas você é orgulhosa.

— Decerto que sou.

— Mas por quê?

— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os
cose, senão eu?

— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose
sou eu, e muito eu?

— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou
feição aos babados...

— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você,
que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...

— Também os batedores vão adiante do imperador.

— Você é imperador?

— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante;
vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que
prendo, ligo, ajunto...

      Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse
que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si,
para não andar atrás dela. 

   Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha,
pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam
andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os
dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor
poética. E dizia a agulha:

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta
distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela,
unidinha a eles, furando abaixo e acima...

    A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo
enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para
ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se
também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia
mais que o
plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou
a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no
quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

         Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestirse, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E
enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro,
arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar
da agulha, perguntou-lhe:

— Ora agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo
parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e
diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o
balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

     Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não
menor experiência, murmurou à pobre agulha: — Anda, aprende, tola. Cansas-te
em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na
caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde
me espetam, fico.

     Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a
cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!
  




UM APÓLOGO, Contos Fluminenses, Machado de Assis

17/03/2018

Duas mãos postas, Nelson Rodrigues


“Eu rezo! Pode deixar que eu rezo! Eu acredito na força da oração!”
Quem falava assim, e trêmulo de fé, não era o vizinho do lado, nem o
açougueiro da esquina, nem o português do botequim. Não. Era d. Hélder,
sim, sim, exatamente d. Hélder e não um qualquer. Eu pedia por alguém e
repito: alguém da minha amizade ou, melhor dizendo, alguém do meu
amor.
E que fiz eu? Fiz a opção entre d. Hélder e d. Marcos Barbosa (o que
me fascina neste último é o sorriso de Manuel Bandeira). Acabei ligando
para d. Hélder Câmara. Contei-lhe tudo, tudo. Disse: — “Há uma moça
assim, assim, que eu amo. Que é tudo para mim. Essa moça está sofrendo. E
eu queria que o senhor fosse vê-la. Faz isso para mim, d. Hélder, faz?”.
D. Hélder foi de uma solidariedade fulminante. Não fez o suspense de
uma dúvida. Nada. Faria isso por mim. E, rápido, prático, pedia endereço,
telefone. Sem vê-lo, eu o imaginava apanhando lápis, papel. Dei a rua, o
número e o telefone. Ah, faltava o nome. Passei-lhe o nome. Era em Santa
Teresa. Subiria Santa Teresa. Deixei o telefone, certo de que acabava de falar
com um santo.
Não é recente a minha fascinação pela batina. Vem de longe, muito
longe. Eu era garotinho e vi uma menina atravessando a rua para beijar a
mão de um padre. E, depois, outras meninas beijaram a mão de outros
padres. Hoje, ninguém beija a mão de padre, ninguém.
Eu queria um padre junto à mulher que amava. Ela sofria. Muito bem:
— e era preciso que a piedade e o amor vestissem batina. A solidariedade de
d. Hélder fez-me um bem lancinante. Eis o que eu pensava: — “Ainda bem
que procurei d. Hélder e não d. Marcos”. Por certo, d. Marcos teria também
uma estrutura muito doce. Mas d. Hélder era mais promovido. Sim, tinha
mais nome, mais imprensa (pode parecer torpe essa reflexão que, na época,
me ocorreu).
D. Hélder cumpriu a palavra: telefonou. No dia seguinte, falou

comigo: — “A moça estava de saída”. Combinaram que ele telefonaria
depois. (Carlos Heitor Cony contou-me que, na sua passagem pelo
seminário, falou certa vez com d. Hélder. Abriu-lhe a alma: — “Meu pecado
é o orgulho. Sou muito orgulhoso etc. etc.”. D. Hélder foi exemplar: — “Meu
filho, nunca seja orgulhoso de dentro para fora, mas de fora para dentro”.
Cony parou, perplexo. O outro, mais didático, completou: — “Para fora, seja
modesto, seja humilde. O orgulho interior Deus perdoa”.)
Liguei para a mulher amada. Ela estava feliz, feliz, com o telefonema.
Disse: — “Foi tão simpático”. Parecia menos deprimida, menos crispada. E
eu: — “Meu anjo, escuta. Tudo vai sair bem. Você vai ver: d. Hélder é
formidável. E inteligente, muito inteligente”. A inteligência era o de menos.
Sempre tive a obsessão da bondade. Mas eu tinha medo, eis a verdade.
Quem ama conhece todo o inferno da mania de perseguição.
Retifico: a mania de perseguição não é mania de perseguição. De fato,
qualquer amor há de sofrer uma perseguição concreta e assassina. Somos
impotentes do sentimento e não perdoamos o amor alheio. Eu amava e
comecei a sentir, por toda a parte, pressões contra mim e o ser amado. Soube
de alguém que fizera este comentário: — “Se essa moça gosta do Nelson, é
uma débil mental!”.
E d. Hélder não foi. Desesperado, eu dizia: — “Mas ele prometeu. Não
telefonou para você? Não disse que ia? Vou falar com ele”. Liguei várias
vezes. Começou a não estar. Cerquei-o em casa. D. Hélder suspirava: —
“Não posso, não devo”. Aterrado, fiz-lhe todo um furioso apelo: — “D.
Hélder, não se trata de opinar. O senhor não opina. Não precisa ser nem
contra, nem a favor. O que eu quero do senhor é um ato de compaixão. Me
entende? A moça está sofrendo. O senhor diz uma palavra amiga e só. D.
Hélder!”.
Foi aí que ele falou em “rezar” e repetiu: — “Rezo! Rezo!”. Por um
momento, eu não soube o que dizer. Ele pôs-se a demonstrar o valor
formidável (e prático) da oração. Foi patético no telefone: — “Acredito na
oração! Acredito! Tenho rezado pela moça!”. Reagi à sua veemência com a
minha veemência.
O que é que eu disse? Disse que a oração é linda. Duas mãos postas
são sempre tocantes, ainda que se reze pelo vampiro de Dusseldorf. Mas por
que não (e também) a presença, a cálida presença física? Por que não o gesto,
o olhar, o sorriso? E por que não a voz, a inflexão? Por que não a lágrima? (o

ausente não chora).
E falei muito e deixei de dizer tanta coisa. Poderia contar que, na rua
Alegre, quis ser coroinha. Ainda hoje, quando vejo a torre de uma igreja,
sinto em mim todo um frêmito de batinas, de freiras, de círios e de santos.
Aos oito anos, eu próprio queria ser santo; desejei ser crucificado e
imaginava alguém enxugando, na minha fronte, o suor do martírio. Mas
calei-me. Senti em d. Hélder o tédio da nossa discussão. Direi mesmo a
palavra cruel e inapelável: ali, eu era o “chato”.
(Desesperado, fui bater a d. Marcos Barbosa. O nosso primeiro
encontro foi na Rádio Jornal do Brasil. E que bem me fez o seu sorriso de
Manuel Bandeira. (Era mais gordo do que eu pensava.) Contei-lhe tudo.
Repeti que não se tratava de opinar; ninguém precisava ser contra ou a
favor. O que eu queria era um mínimo de bondade, apenas isso, um mínimo
de compaixão. Ele me ouviu, tenso; e não senti, na sua atitude, nenhuma
fuga. Quando acabei, disse que ia; e foi. Aí é que está: foi. Subiu Santa
Teresa; desceu do bonde; bateu na porta. E riu para a moça, com os dentes
de Manuel Bandeira.)
Passou. E hoje vejo pelos jornais que d. Hélder mudou muito. Não é o
mesmo, eis a verdade, não é o mesmo. Aí estão os seus pronunciamentos; faz
viagens; anda de um lado para outro. Foi a Nova York, que é um pouco mais
longe do que Santa Teresa. E, lá, promovido como O Arcebispo Vermelho,
fez discursos. Por que não ficou aqui rezando? E outra coisa: — há fome no
Nordeste? Nem tudo está perdido, porque temos aí a fé de d. Hélder. Pena é
que, nos seus manifestos, ele não faça uma única e escassa referência ao
sobrenatural. Sim, nunca prometeu orar pelas populações famintas. E eu
estou imaginando se, um dia, Jesus baixasse à Terra. Vejo Cristo
caminhando pela rua do Ouvidor. De passagem, põe uma moeda no pires de
um ceguinho. Finalmente na esquina da avenida, Jesus vê d. Hélder. Corre
para ele; estende-lhe a mão. D. Hélder responde: — “Não tenho trocado”. E
passa adiante.
[16/12/1967]
  

11/03/2018

Conto de Escola, Machado de Assis


    A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de
1840. Naquele dia — uma segunda-feira, do mês de maio — deixei-me estar
alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava
entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant’Ana, que não era então esse parque
atual, construção de
gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito,
alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o
problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a
escola. Aqui vai a razão.


    Na semana anterior tinha feito dois suetos, e, descoberto o caso, recebi o
pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro.
As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal
de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição
comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e
contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham
começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela
manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes.

    Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele
entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do
costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada,
calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto
de cinqüenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé
e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os
meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se.
Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos.

Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre.
Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda.
Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta
ou cinqüenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o
cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara
doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se
antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco.

— O que é que você quer?

— Logo, respondeu ele com voz trêmula.

     Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da
escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um
escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra
convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos
de ferro.
    Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas
deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza
nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa;
tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco
ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a
dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de
primeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas expressões. Os
outros foram acabando; não tive remédio senão acabar também, entregar a
escrita, e voltar para o meu lugar.

    Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia
por andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos
vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e
do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças da escola,
no claro azul do céu, por cima do Morro do Livramento, um papagaio de papel,
alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma coisa soberba. E
eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos
joelhos.

— Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.

— Não diga isso, murmurou ele.

   Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria pedirme alguma coisa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo, e,
rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.

Seu Pilar... murmurou ele daí a alguns minutos.

— Que é?

— Você...

— Você quê?

     Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes, o
Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa
circunstância, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a
arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo, e vi que parecia atento; podia ser uma
simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma coisa
entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos, era mais
velho que nós.

    Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, falandolhe baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava dele
nem de mim. Ou então, de tarde...

— De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.

— Então agora...

— Papai está olhando.

       Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o
muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também
éramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e
tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as idéias e
as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era
grande a agitação pública. 

    Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude
averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa
lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do
diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume,
que não era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas
dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao
menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de
quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a
valer.

    No fim de algum tempo — dez ou doze minutos — Raimundo meteu a mão no
bolso das calças e olhou para mim.

— Sabe o que tenho aqui?

— Não.

— Uma pratinha que mamãe me deu.

— Hoje?

— Não, no outro dia, quando fiz anos...

— Pratinha de verdade?

— De verdade.

     Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei,
cuido que doze vinténs ou dois tostões, não me lembro; mas era uma moeda, e
tal moeda que me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu em mim o
olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que estava
caçoando, mas ele jurou que não.

— Mas então você fica sem ela?

— Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa

caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?

    Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a
mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo,
que queria sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele
me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira
reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando a
pratinha nos joelhos...

       Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma idéia antes
própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra
mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos
termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá,
dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer
nada.

       Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não o tendo
aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai.
Se me tem pedido a coisa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de
outras vezes; mas parece que era a lembrança das outras vezes, o medo de achar
a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria, — e pode ser
mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal, — parece que tal foi a
causa da proposta. 

   O pobre-diabo contava com o favor, — mas queria assegurarlhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava
como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha
vista, como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e
para mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um cobre
feio, grosso, azinhavrado...

   Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que
continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. — Ande,
tome, dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se
fora diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E ele
não podia ver nada, estava agarrado aos jornais lendo com fogo, com
indignação...

— Tome, tome...

Relancei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao Raimundo
que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei; mas daí
a pouco deitei-lhe outra vez o olho, e — tanto se ilude a vontade! — não lhe vi
mais nada. Então cobrei ânimo.

— Dê cá...

       Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças,
com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à perna.
Restava prestar o serviço, ensinar a lição e não me demorei em fazê-lo, nem o fiz
mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de
papel que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia
um esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que
ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.

     De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso
que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele,
achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se
no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa,
o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.

— Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.

— Diga-me isto só, murmurou ele.

      Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso, lembravame o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a
olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau,
estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso
que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes, nem o
mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os
com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas na
mesa. 
    E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio,
guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me
ali com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das
calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-ia em
casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a
apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição,
com uma grande vontade de espiá-la.

— Oh!
seu Pilar! bradou o mestre com voz de trovão.

    Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei com o
mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em
pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.

— Venha cá! bradou o mestre.

     Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos
pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais lia,
ninguém fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do mestre,
sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.

— Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? disse-me o
Policarpo.

— Eu...

— Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! clamou.

    Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito. Policarpo
bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão no
bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro
lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então dissenos uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de
praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo
íamos ser castigados. Aqui pegou da palmatória.

— Perdão,
seu mestre... solucei eu.

— Não há perdão! Dê cá a mão! dê cá! vamos! sem-vergonha! dê cá a mão!

— Mas,
seu mestre...

— Olhe que é pior!

       Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por
cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e
inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma coisa; não lhe poupou nada, dois,
quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos semvergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio, apanharíamos tal
castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões!

tratantes! faltos de brio!

    Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os
olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do
mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria
igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para
ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão
certo como três e dois serem cinco.

      Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou a
cara, e penso que empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta; estava
com medo. Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os joelhos, o
nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade, por
que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma coisa?

"Tu me pagas! tão duro como osso!" dizia eu comigo.

      Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria brigar ali
mesmo, na Rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na Rua Larga de S.
Joaquim. Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente
escondera-se em algum corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras
casas, perguntei por ele a algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde
faltou à escola.

      Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti a
minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando
ao diabo os dois meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a
moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a
apanhara, sem medo nem escrúpulos...

     De manhã, acordei cedo. A idéia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O
dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as
calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a
pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei o
passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não andei
tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as,
fugia aos encontros, ao lixo da rua...

    Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente,
rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido,
igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram
andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes
disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... 

Olhei para um e outro lado; afinal,
não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio que
cantarolando alguma coisa:
Rato na casaca... Não fui à escola, acompanhei os
fuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei
para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento
na alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que
me deram o primeiro conhecimento.
um da corrupção, outro da delação; mas o
diabo do tambor...


CONTO DE ESCOLA, Contos Fluminenses, Machado de Assis 

10/03/2018

Uma banana como Merenda, Nelson Rodrigues


Eu e o Hélio Pellegrino temos um amigo que é o que se chama um
erudito. E o pior é que se trata de um caso recente e diria mesmo de
fulminante erudição. A princípio suspeitei de uma deslavada escroqueria
intelectual. E aqui começa o mistério que desafia todo o meu raciocínio e
toda a minha intuição. Do dia para a noite o semi-analfabeto aprendeu não
sei quantos idiomas.
Já não digo francês, que todos falam, menos eu. Não. O rapaz
declamava Goethe em puríssimo alemão. E, certa noite, passei pelo seu
quarto, na praça Onze (ele mora no alto, junto à clarabóia, como no tempo
de Paulo de Koch). Entro e o surpreendo, no meio de três ou quatro, em pé,
recitando o padre-nosso em grego. Saí dali e fui ligar para o Hélio
Pellegrino. Disse-lhe, sinceramente esmagado: — “Hélio, nós somos dois
analfabetos!”.
Eu e o Hélio, cada vez mais inferiorizados, temos seguido pelos
jornais a carreira de tão vasta e súbita erudição. E eu fico a resmungar, na
irritação da minha impotência: “Como sabe! Como lê! Como cita!”. Até que,
de repente, baixou-me uma luz e descobri toda a fragilidade daquela
monstruosa estrutura. Aquilo era uma catedral de pauzinhos de fósforos,
sim, um gótico de palitos.
Certa manhã, fui para a máquina e bati minha primeira carta
anônima. Se bem me lembro, dizia mais ou menos o seguinte: — “Leia
pouco, pelo amor de Deus, leia pouco!”. E assim, nesse tom de salubérrimo
descaro, fui dizendo tudo. Aconselhei-o a voltar ao Dumas pai, a Ponson Du
Terrail, a Michel Zevaco, Eugène Sue e outros folhetinistas de boa cepa.
Acabei a carta, enfiei-a no envelope e tive a desfaçatez de mandá-la
registrada.
Agora, a revelação: — em que pese o evidente traço caricatural, não

estou longe de pensar assim. Por tudo que sei da vida, dos homens, deve-se
ler pouco e reler muito. A arte da leitura é a da releitura. Há uns poucos
livros totais, uns três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É
preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia. E, no entanto, o
leitor se desgasta, se esvai, em milhares de livros mais áridos do que três
desertos.
Certa vez, um erudito resolveu fazer ironia comigo. Perguntou-me:
“O que é que você leu?”. Respondi: “Dostoievski”. Ele queria me atirar na
cara os seus quarenta mil volumes. Insistiu: “Que mais?”. E eu:
“Dostoievski”. Teimou: “Só?”. Repeti: “Dostoievski”. O sujeito, aturdido
pelos seus quarenta mil volumes, não entendeu nada. Mas eis o que eu
queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoievski. Ou uma
única peça de Shakespeare. Ou um único poema não sei de quem. O mesmo
livro é um na véspera e outro no dia seguinte. Pode haver um tédio na
primeira leitura. Nada, porém, mais denso, mais fascinante, mais novo, mais
abismal do que a releitura.
(Divaguei demais e desculpem.) De Dostoievski passo à minha
infância. Há bastante de Dostoievski, bastante de Dickens, na rua Alegre, em
Aldeia Campista. Não será a pura semelhança episódica, Não. É uma
semelhança, digamos assim, de atmosfera. Sinto que parte de minha infância
está inserida, difusa, volatilizada em certas páginas de Dickens ou
Dostoievski. Por exemplo: — eu poderia fazer, com minha passagem pela
escola pública, uma antologia de humilhações. (Está comigo, enterrado em
mim, um perene menino humilhado.)
A escola era bem na esquina da rua Alegre com Maxwell. (Quando
Lili morreu, eu achava absurda a vida sem Lili. Lembro-me de que, depois
do enterro, eu mudava de calçada para não passar pela sua porta.) Comecei
a sofrer no recreio. Já disse que levava para a escola, como merenda, uma
imutável banana. No primeiro dia, bateu a sineta do recreio e lá fui eu. O
pátio se inundou de meninos e meninas. Apanhei a banana e, sem pressa,
comecei a descascá-la. Fazia isso meio solene, como se descascar banana
exigisse uma técnica, uma arte, não sei que virtuosismo.
Descascada a banana, eu não a mastigava imediatamente. Não. Com
delicada paciência, punha-me a chupá-la, como hoje se faz com o Chicabon.
E, ao mesmo tempo, olhava para os outros meninos. Não sei por que, o fato é

que, no primeiro e segundo dias de escola, tive orgulho, vaidade da banana.
Olhava para os garotos, como se dissesse: “Eu tenho uma banana. Estou
comendo uma banana”. Mas já o primeiro dia deu-me para perceber que
havia toda uma fauna de merendas prodigiosas.
Lembro-me de que uma das minhas invejas mortais foi um garoto, já
taludo. (Eu era miúdo e tinha vergonha da minha cabeça grande.) Trouxe a
merenda embrulhada em papel de pão e amarrada com barbante. Desfez o
nó do barbante e abriu o papel: — então, eu a vi. Era um sanduíche de pão
com ovo. Pão com ovo. O menino pôs-se a comer. A gema escorria-lhe da
boca como uma baba amarela. E outros garotos e garotas levavam sanduíches de goiabada, de queijo, de bife; havia uma menina que levava
biscoitos numa latinha.
No terceiro dia, comecei a ter vergonha da banana. Fosse prata, ou
maçã, mas era banana. Nasceu em mim, então, a utopia do sanduíche de
ovo. Se eu levasse um, havia de comê-lo no meio do recreio, com todos
olhando; e deixaria a gema escorrer pelo queixo. Ao mesmo tempo que me
envergonhava da banana, tinha-lhe pena. Pena da banana. De vez em
quando, faltava dinheiro em casa. Banana custava um vintém. E eu ia para a
escola sem merenda. Na hora do recreio, rodava pelo pátio, errante e
perdido de fome.
Já contei o episódio das orelhas sujas. Mas não foi só. De vez em
quando a professora me apontava como um exemplo: — “Não quero
menino sujo na minha classe. Já basta o Nelson”. As meninas me olhavam e
eu tinha de novo o sentimento de nudez pública. Até que, um dia, estava eu
no meu banco, que era o último (eu me sentava embaixo de uma janela). E,
de repente, ouço a voz da professora: — “Menino, não coça a cabeça!”. Eu
devia estar entretido no meu sonho. A professora bate com a régua na mesa:
— “Nelson! Não está me ouvindo? Levante-se! De castigo, já! Ali, fica ali!
Aí!”.
Saí eu, lá do fundo, assombrado, e vim atravessando toda a classe.
Dizia, chorando: — “Eu não ouvi a senhora me chamar!”. E ela: — “Menino
insubordinado!”. Estou de frente para o quadro-negro, de costas para a
classe. E ela: — “Vira, vira! Fica de frente!”. Estou cara a cara com os outros.
Ela ainda continua: “Parece que tem o bicho carpinteiro, esse menino!”. E,
súbito, muda de tom. Pergunta: — “Por que é que você coça tanto a cabeça?

Vem cá. Chega aqui. Pode vir”. Eu me chego. Ela está dizendo, quase doce:
— “Está com medo? Eu não vou te fazer nada, Nelson. Vem, meu filho!”. E
completa, rápida, cortante: — “Quero só examinar tua cabeça”. Paro: —
“Não, não!”. Mas ela vem me buscar; sou arrastado: — “Fica quieto, fica
quieto!”. Imobiliza a minha cabeça. Sinto seus dedos enfiados nos meus
cabelos. E, de repente, o berro: — “Não disse?”. Vira-se para a classe: — “Eu
sabia! Eu sabia! Tem piolhos, lêndeas!”. Levou-me para a sala da diretora: —
“Esse menino não pode ficar com os outros! Pega piolho nos outros!”. A
diretora, de óculos e papada, fez uma boquinha de nojo. Depois da aula,
levei para casa um bilhete da professora. E mudei de calçada para não
passar pela porta de Lili.
[15/12/1967]
  

04/03/2018

Mariana, Machado de Assis



CAPÍTULO PRIMEIRO

     "Que será feito de Mariana?" perguntou Evaristo a si mesmo, no largo da Carioca,
ao despedir-se de um velho amigo, que lhe fez lembrar aquela velha amiga.

    Era em 1890. Evaristo voltara da Europa, dias antes, após dezoito anos de
ausência. Tinha saído do Rio de Janeiro em 1872, e contava demorar-se até 1874
ou 1875, depois de ver algumas cidades célebres ou curiosas; mas o viajante põe
e Paris dispõe.
 Uma vez entrando naquele mundo, em 1873, Evaristo deixou-se ir
ficando, além do prazo determinado; adiou a viagem um ano, outro ano, e afinal
não pensou mais na volta. Desinteressara-se das nossas coisas; ultimamente nem
lia os jornais daqui; era um estudante pobre da Bahia, que os ia buscar
emprestados, e lhe referia depois uma ou outra notícia de vulto. Senão quando,
em novembro de 1889, entra-lhe em casa um
repórter parisiense, que lhe fala de
revolução no Rio de Janeiro, pede informações políticas, sociais, biográficas.
Evaristo refletiu.

— Meu caro senhor, disse ao repórter, acho melhor ir eu mesmo buscá-las.

    Não tendo partido, nem opiniões, nem parentes próximos, nem interesses (todos
os seus haveres estavam na Europa), mal se explica a resolução súbita de
Evaristo pela simples curiosidade, e contudo não houve outro motivo. Quis ver o
novo aspecto das coisas. Indagou da data de uma primeira representação no
Odéon, comédia de um amigo, calculou que, saindo no primeiro paquete e
voltando três paquetes depois, chegaria a tempo de comprar bilhete e entrar no
teatro; fez as malas, correu a Bordéus, e embarcou.

    "Que será feito de Mariana?

 repetia agora, descendo a Rua da Assembléia. Talvez
morta... Se ainda viver, deve estar outra; há de andar pelos seus quarenta e
cinco... Upa! quarenta e oito; era mais moça que eu uns cinco anos. Quarenta e
oito... Bela mulher; grande mulher! belos e grandes amores!"

    Teve desejo de vê-la. Indagou discretamente, soube que vivia e morava na
mesma casa em que a deixou, Rua do Engenho Velho; mas não aparecia desde
alguns meses, por causa do marido, que estava mal, parece que à morte.

— Ela também deve estar escangalhada, disse Evaristo ao conhecido que lhe dava
aquelas informações.

— Homem, não. A última vez que a vi, achei-a frescalhona. Não se lhe dá mais de

quarenta anos. Você quer saber uma coisa? Há por aí roseiras magníficas, mas os
nossos cedros de 1860 a 1865 parece que não nascem mais.

— Nascem; você não os vê, porque já não sobe ao Líbano, retorquiu Evaristo.

Crescera-lhe o desejo de ver Mariana. Que olhos teriam um para o outro? Que
visões antigas viriam transformar a realidade presente? A viagem de Evaristo,
cumpre sabê-lo, não foi de recreio, senão de cura. Agora que a lei do tempo fizera
sua obra, que efeito produziria neles, quando se encontrassem, o espectro de
1872, aquele triste ano da separação que quase o pôs doido, e quase a deixou
morta?

CAPÍTULO II

    Dias depois apeava-se ele de um tílburi à porta de Mariana, e dava um cartão ao
criado, que lhe abriu a sala.

     Enquanto esperava circulou os olhos e ficou impressionado. Os móveis eram os
mesmos de dezoito anos antes. A memória, incapaz de os recompor na ausência,
reconheceu-os a todos, assim como a disposição deles, que não mudara. Tinham o
aspecto vetusto. As próprias flores artificiais de uma grande jarra, que estava
sobre um aparador, haviam desbotado com o tempo. Tudo ossos dispersos, que a
imaginação podia enfaixar para restaurar uma figura, a que só faltasse a alma.
Mas não faltava a alma. Pendente da parede, por cima do canapé, estava o retrato
de Mariana. 
  
   Tinha sido pintado quando ela contava vinte e cinco anos; a moldura,
dourada uma só vez, descascando em alguns lugares, contrastava com a figura
ridente e fresca. O tempo não descolara a formosura. Mariana estava ali, trajada à
moda de 1865, com os seus lindos olhos redondos e namorados. Era o único
alento vivo da sala; mas só ele bastava a dar à decrepitude ambiente a fugidia
mocidade. Grande foi a comoção de Evaristo. Havia uma cadeira defronte do
retrato, ele sentou-se nela, e ficou a mirar a moça de outro tempo. Os olhos
pintados fitavam também os naturais, porventura admirados do encontro e da
mudança, porque os naturais não tinham o calor e a graça da pintura. Mas pouco
durou a diferença; a vida anterior do homem restituiu-lhe a verdura exterior, e os
olhos embeberam-se uns nos outros, e todos nos seus velhos pecados.

   Depois, vagarosamente, Mariana desceu da tela e da moldura, e veio sentar-se
defronte de Evaristo, inclinou-se, estendeu os braços sobre os joelhos e abriu as
mãos. Evaristo entregou-lhes as suas, e as quatro apertaram-se cordialmente.
Nenhum perguntou nada que se referisse ao passado, porque ainda não havia
passado; ambos estavam no presente, as horas tinham parado, tão instantâneas e
tão fixas, que pareciam haver sido ensaiadas na véspera para esta representação
única e interminável. Todos os relógios da cidade e do mundo quebraram
discretamente as cordas, e todos os relojoeiros trocaram de ofício. Adeus, velho
lago de Lamartine! Evaristo e Mariana tinham ancorado no oceano dos tempos. E
aí vieram as palavras mais doces que jamais disseram lábios de homem nem de
mulher, e as mais ardentes também, e as mudas, e as tresloucadas, e as
expirantes, e as de ciúme, e as de perdão.

— Estás bom?

— Bom; e tu?

— Morria por ti. Há uma hora que te espero, ansiosa, quase chorando; mas bem
vês que estou risonha e alegre, tudo porque o melhor dos homens entrou nesta
sala. Por que te demoraste tanto?

— Tive duas interrupções em caminho; e a segunda muito maior que a primeira.

— Se tu me amasses deveras, gastarias dois minutos com as duas, e estarias aqui
há três quartos de hora. Que riso é esse?

— A segunda interrupção foi teu marido.

Mariana estremeceu.

— Foi aqui perto, continuou Evaristo; falamos de ti, ele primeiro, a propósito não
sei de quê, e falou com bondade, quase que com ternura. Cheguei a crer que era
um laço, um modo de captar a minha confiança. Afinal despedimo-nos; mas eu
ainda fiquei espiando, a ver se ele voltava; não vi ninguém. Aí está a causa da
minha demora; aí tens também a causa dos meus tormentos.

— Não venhas outra vez com essa eterna desconfiança, atalhou Mariana sorrindo,
como na tela, há pouco. Que quer você que eu faça? Xavier é meu marido; não
hei de mandá-lo embora, nem castigá-lo, nem matá-lo, só porque eu e você nos
amamos.

— Não digo que o mates; mas tu o amas, Mariana.

— Amo-te e a ninguém mais, respondeu ela, evitando assim a resposta negativa,
que lhe pareceu demasiado crua.

    Foi o que pensou Evaristo; mas não aceitou a delicadeza da forma indireta. Só a
negativa rude e simples poderia contentá-lo.

— Tu o amas, insistiu ele.

Mariana refletiu um instante.

— Para que hás de revolver a minha alma e o meu passado? disse ela. Para nós, o
mundo começou há quatro meses, e não acabará mais — ou acabará quando você
se aborrecer de mim, porque eu não mudarei nunca...

    Evaristo ajoelhou-se, puxou-lhe os braços, beijou-lhe as mãos, e fechou nelas o
rosto; finalmente, deixou cair a cabeça nos joelhos de Mariana. Ficaram assim
alguns instantes, até que ela sentiu os dedos úmidos, ergueu-lhe a cabeça e viulhe os olhos rasos de água. Que era?

— Nada, disse ele; adeus.

— Mas que foi?!

— Tu o amas, tornou Evaristo, e esta idéia apavora-me, ao mesmo tempo que me
aflige, porque eu sou capaz de matá-lo, se tiver certeza de que ainda o amas.

— Você é um homem singular, retorquiu Mariana, depois de enxugar os olhos de
Evaristo com os cabelos, que despenteara às pressas, para servi-lo com o melhor
lenço do mundo. Que o amo? Não, já não o amo, aí tens a resposta. Mas já agora
hás de consentir que te diga tudo, porque a minha índole não admite meias
confidências.

    Desta vez foi Evaristo que estremeceu; mas a curiosidade mordia-lhe a ele o
coração, em tal maneira, que não houve mais temer, senão aguardar e escutar.
Apoiado nos joelhos dela, ouviu a narração, que foi curta. Mariana referiu o
casamento, a resistência do pai, a dor da mãe, e a perseverança dela e de Xavier.
Esperaram dez meses, firmes, ela já menos paciente que ele, porque a paixão que
a tomou tinha toda a força necessária para as decisões violentas. Que de lágrimas

verteu por ele! 

   Que de maldições lhe saíram do coração contra os pais, e foram
sufocadas por ela, que temia a Deus, e não quisera que essas palavras, como
armas de parricídio, a condenassem, pior que ao inferno, à eterna separação do
homem a quem amava. Venceu a constância, o tempo desarmou os velhos, e o
casamento se fez, lá se iam sete anos. A paixão dos noivos prolongou-se na vida
conjugal. Quando o tempo trouxe o sossego, trouxe também a estima. Os
corações eram harmônicos, as recordações da luta pungentes e doces. A felicidade
serena veio sentar-se à porta deles, como uma sentinela. Mas bem depressa se foi
a sentinela; não deixou a desgraça, nem ainda o tédio, mas a apatia, uma figura
pálida, sem movimento, que mal sorria e não lembrava nada. Foi por esse tempo
que Evaristo apareceu aos seus olhos e a arrebatou. Não a arrebatou ao amor de
ninguém; mas por isso mesmo nada tinha que ver com o passado, que era um
mistério, e podia trazer remorsos...

— Remorsos? interrompeu ele.

— Podias supor que eu os tinha; mas não os tenho, nem os terei jamais.

— Obrigado! disse Evaristo após alguns momentos; agradeço-te a confissão. Não
falarei mais de tal assunto. Não o amas, é o essencial. Que linda és tu quando
juras assim, e me falas do nosso futuro! Sim, acabou; agora aqui estou, ama-me!

— Só a ti, querido.

— Só a mim? Ainda uma vez, jura!

— Por estes olhos, respondeu ela, beijando-lhe os olhos; por estes lábios,
continuou, impondo-lhe um beijo nos lábios. Pela minha vida e pela tua!

Evaristo repetiu as mesmas fórmulas, com iguais cerimônias. Depois, sentou-se
defronte de Mariana como estava a princípio. Ela ergueu-se então, por sua vez, e
foi ajoelhar-se-lhe aos pés, com os braços nos joelhos dele. Os cabelos caídos
enquadravam tão bem o rosto, que ele sentiu não ser um gênio para copiá-la e
legá-la ao mundo.

 Disse-lhe isso, mas a moça não respondeu palavra; tinha os
olhos fitos nele, suplicantes. Evaristo inclinou-se, cravando nela os seus, e assim
ficaram, rosto a rosto, uma, duas, três horas, até que alguém veio acordá-los:
— Faz favor de entrar.

CAPÍTULO III

   Evaristo teve um sobressalto. Deu com um homem, o mesmo criado que recebera
o seu cartão de visita. Levantou-se depressa; Mariana recolheu-se à tela, que
pendia da parede, onde ele a viu outra vez, trajada à moda de 1865, penteada e
tranqüila. Como nos sonhos, os pensamentos, gestos e atos mediram-se por outro
tempo, que não o tempo; fez-se tudo em cinco ou seis minutos, que tantos foram
os que o criado despendeu em levar o cartão e trazer o convite. Entretanto, é
certo que Evaristo sentia ainda a impressão das carícias da moça, vivera
realmente entre 1869 e 1872, porque as três horas da visão foram ainda uma
concessão ao tempo. Toda a história ressurgira com os ciúmes que ele tinha de
Xavier, os seus perdões e as ternuras recíprocas.

 Só faltou a crise final, quando a
mãe de Mariana, sabendo de tudo, corajosamente se interpôs e os separou.
Mariana resolveu morrer, chegou a ingerir veneno, e foi preciso o desespero da
mãe para restituí-la à vida.

 Xavier que então estava na província do Rio, nada
soube daquela tragédia, senão que a mulher escapara da morte, por causa de
uma troca de medicamentos. Evaristo quis ainda vê-la antes de embarcar, mas foi
impossível.

— Vamos, disse ele agora ao criado que o esperava.

    Xavier estava no gabinete próximo, estirado em um canapé, com a mulher ao lado
e algumas visitas. Evaristo penetrou ali cheio de comoção. A luz era pouca, o
silêncio grande; Mariana tinha presa uma das mãos do enfermo, a observá-lo, a
temer a morte ou uma crise. Mal pôde levantar os olhos para Evaristo e estenderlhe a mão; voltou a fitar o marido, em cujo rosto havia a marca do longo
padecimento, e cujo respirar parecia o prelúdio da grande ópera infinita. Evaristo,
que apenas vira o rosto de Mariana, retirou-se a um canto, sem ousar mirar-lhe a
figura, nem acompanhar-lhe os movimentos. 
  
   Chegou o médico, examinou o
enfermo, recomendou as prescrições dadas, e retirou-se para voltar de noite.
Mariana foi com ele até à porta, interrogando baixo e procurando ler no rosto a
verdade que a boca não queria dizer. Foi então que Evaristo a viu bem; a dor
parecia alquebrá-la mais que os anos. Conheceu-lhe o jeito particular do corpo.
Não descia da tela, como a outra, mas do tempo. Antes que ela tornasse ao leito
do marido, Evaristo entendeu retirar-se também, e foi até a porta.

— Peço-lhe licença... Sinto não poder falar agora a seu marido.

— Agora não pode ser; o médico recomenda repouso e silêncio. Será noutra
ocasião...

— Não vim há mais tempo vê-lo porque só há pouco é que soube... E não cheguei
há muito.

— Obrigada.

   Evaristo estendeu-lhe a mão e saiu a passo abafado, enquanto ela voltava a
sentar-se ao pé do doente. Nem os olhos nem a mão de Mariana revelaram em
relação a ele uma impressão qualquer, e a despedida fez-se como entre pessoas
indiferentes. Certo, o amor acabara, a data era remota, o coração envelhecera
com o tempo, e o marido estava a expirar; mas, refletia ele, como explicar que,
ao cabo de dezoito anos de separação, Mariana visse diante de si um homem que
tanta parte tivera em sua vida, sem o menor abalo, espanto, constrangimento que
fosse? Eis aí um mistério. Chamava-lhe mistério. Ainda agora, à despedida,
sentira ele um aperto, uma coisa, que lhe fez a palavra trôpega, que lhe tirou as
idéias e até as simples fórmulas banais de pesar e de esperança. Ela, entretanto,
não recebeu dele a menor comoção. E lembrando-se do retrato da sala, Evaristo
concluiu que a arte era superior à natureza; a tela guardara o corpo e a alma...
Tudo isso borrifado de um despeitozinho acre.

     Xavier durou ainda uma semana. Indo fazer-lhe segunda visita, Evaristo assistiu à
morte do enfermo, e não pôde furtar-se à comoção natural do momento, do lugar
e das circunstâncias. Mariana, desgrenhada ao pé do leito, tinha os olhos mortos
de vigília e de lágrimas. Quando Xavier, depois de longa agonia, expirou, mal se
ouviu o choro de alguns parentes e amigos; um grito agudíssimo de Mariana
chamou a atenção de todos; depois o desmaio e a queda da viúva. Durou alguns
minutos a perda dos sentidos; tornada a si, Mariana correu ao cadáver, abraçouse a ele, soluçando desesperadamente, dizendo-lhe os nomes mais queridos e
ternos.

  Tinham esquecido de fechar os olhos ao cadáver; daí um lance pavoroso e
melancólico, porque ela, depois de os beijar muito, foi tomada de alucinação e
bradou que ele ainda vivia, que estava salvo; e, por mais que quisessem arrancá-
la dali, não cedia, empurrava a todos, clamava que queriam tirar-lhe o marido.

Nova crise a prostrou; foi levada às carreiras para outro quarto.
Quando o enterro saiu no dia seguinte, Mariana não estava presente, por mais que
insistisse em despedir-se; já não tinha forças para acudir à vontade. Evaristo
acompanhou o enterro. Seguindo o carro fúnebre, mal chegava a crer onde estava
e o que fazia. No cemitério, falou a um dos parentes de Xavier, confiando-lhe a
pena que tivera de Mariana.

— Vê-se que se amavam muito, concluiu.

— Ah! muito, disse o parente. Casaram-se por paixão; não assisti ao casamento,
porque só cheguei ao Rio de Janeiro muitos anos depois, em 1874; achei-os,
porém, tão unidos como se fossem noivos, e assisti até agora à vida de ambos.
Viviam um para o outro; não sei se ela ficará muito tempo neste mundo.
"1874", pensou Evaristo; "dois anos depois".

Mariana não assistiu à missa do sétimo dia; um parente, — o mesmo do cemitério,
— representava-a naquela triste ocasião. Evaristo soube por ele que o estado da
viúva não lhe permitia arriscar-se à comemoração da catástrofe. Deixou passar
alguns dias, e foi fazer a sua visita de pêsames; mas, tendo dado o cartão, ouviu
que ela não recebia ninguém. Foi então a São Paulo, voltou cinco ou seis semanas
depois, preparou-se para embarcar; antes de partir, pensou ainda em visitar
Mariana, — não tanto por simples cortesia, como para levar consigo a imagem, —
deteriorada embora, — daquela paixão de quatro anos.

   Não a encontrou em casa. Voltava zangado, mal consigo, achava-se impertinente
e de mau gosto. A pouca distância viu sair da igreja do Espírito Santo uma
senhora de luto, que lhe pareceu Mariana. Era Mariana; vinha a pé; ao passar pela
carruagem olhou para ele, fez que o não conhecia, e foi andando, de modo que o
cumprimento de Evaristo ficou sem resposta. Este ainda quis mandar parar o carro
e despedir-se dela, ali mesmo, na rua, um minuto, três palavras; como, porém,
hesitasse na resolução, só parou quando já havia passado a igreja, e Mariana ia
um grande pedaço adiante. Apeou-se, não obstante, e desandou o caminho; mas,
fosse respeito ou despeito, trocou de resolução, meteu-se no carro e partiu.

 — Três vezes sincera, concluiu, passados alguns minutos de reflexão.

    Antes de um mês estava em Paris. Não esquecera a comédia do amigo, a cuja
primeira representação no
Odéon ficara de assistir. Correu a saber dela; tinha
caído redondamente.

— Coisas de teatro, disse Evaristo ao autor, para consolá-lo. Há peças que caem.
Há outras que ficam no repertório
  



Mariana, Machado de Assis

Morte acidental

          Enquanto ele falava, eu arrumava a churrasqueira até que todos viessem. Era uma típica festa de firma, onde as pessoas vão par...