29/01/2018

Histórias sem data - Machado de Assis


Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente pela Editora Garnier
, Rio de Janeiro, 1884.
ÍNDICE

ADVERTÊNCIA DA 1ª EDIÇÃO
A IGREJA DO DIABO
O LAPSO
ÚLTIMO CAPÍTULO
CANTIGA DE ESPONSAIS
SINGULAR OCORRÊNCIA
GALERIA PÓSTUMA
CAPÍTULO DOS CHAPÉUS
CONTO ALEXANDRINO
PRIMAS DE SAPUCAIA!
UMA SENHORA
ANEDOTA PECUNIÁRIA
FULANO
A SEGUNDA VIDA
NOITE DE ALMIRANTE
MANUSCRITO DE UM SACRISTÃO
EX CATHEDRA
A SENHORA DO GALVÃO
AS ACADEMIAS DE SIÃO

ADVERTÊNCIA DA 1a EDIÇÃODe todos os contos que aqui se acham há dois que efetivamente não levam data
expressa; os outros a têm, de maneira que este título
Histórias sem Data parecerá
a alguns ininteligível, ou vago. Supondo, porém, que o meu fim é definir estas
páginas como tratando, em substância, de coisas que não são especialmente do
dia, ou de um certo dia, penso que o título está explicado. E é o pior que lhe pode
acontecer, pois o melhor dos títulos é ainda aquele que não precisa de explicação.
M. de A.

A IGREJA DO DIABO
ÍNDICE
CAPÍTULO PRIMEIRO
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO PRIMEIRODE UMA IDÉIA MIRÍFICAConta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de
fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se
humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem
regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos
remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada
regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz
de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
— Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra
breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas,
bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo
universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto
as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não
acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há
só um de negar tudo.
Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto
magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-

lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e
disse consigo: — Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo
que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito
azul.
CAPÍTULO IIENTRE DEUS E O DIABODeus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que
engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à
entrada com os olhos no Senhor.
— Que me queres tu? perguntou este.
— Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os
Faustos do século e dos séculos.
— Explica-te.
— Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse
bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes
o recebam com os mais divinos coros...
— Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.
— Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito
que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou
edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou
cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo
de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para
que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?
— Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.
— Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos
mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma
tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.
— Vai.
— Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
— Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto
da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?
O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no
espírito, algum reparo picante no alforje de memória, qualquer coisa que, nesse
breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o
riso, e disse:
— Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as
virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto
de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por
essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda
pura...
— Velho retórico! murmurou o Senhor.

— Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo,
trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os
lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e
devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, — a indiferença,
ao menos, — com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que
liberalmente espalha, — ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer
dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em
coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de
irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma
comenda... Vou a negócios mais altos...
Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel
fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.
— Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie,
replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos
moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade
para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as
minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse
mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
— Já vos disse que não.
— Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um
naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida,
que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na
eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de
algodão?
— Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
— Negas esta morte?
— Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos
outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
— Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas
as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os
serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O
Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio,
caiu na terra.
CAPÍTULO IIIA BOA NOVA AOS HOMENSUma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a
cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina
nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele
prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os
deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para
retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu
respeito contavam as velhas beatas.
— Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos
soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da
natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-

me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome,
inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei
tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os
indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo
que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na
boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da
forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.
Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram
as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e
assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia,
com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a
melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a
Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula,
que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do
Hissope;
virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas
ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas
razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela
virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons
manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela
sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica,
pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus
com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente
que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa,
que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes
golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas,
fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude.
Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía:
muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem
canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava
a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e
profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era
um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um
direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu
sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que,
em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu
voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua
própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no
contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem
vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o
sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à
porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se
demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois,
mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de
um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a
hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.
E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o
perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu
formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou
pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma
expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum
salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito
foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e

pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção
foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito
em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a
solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à
nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de
parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão
indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração
de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de
Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do
antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em
que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas
alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra
coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos
achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das
turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: — Cem pessoas tomam ações de um
banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão
nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no
livro da sabedoria.
CAPÍTULO IVFRANJAS E FRANJASA previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava
em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e
vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo
abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia
uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma
raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.
Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às
escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem
integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões
recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em
dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal
povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os
fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o
mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.
A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e
viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um
droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o
produto das drogas, socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito
ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à
entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia
ali roubar o camelo de um
drogman; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi
dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino
cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou
completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão
de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa
na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa;
chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse
homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados.
Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com
ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas
ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo
mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e
concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo
ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular
fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o
repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e
disse:
— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de
seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna
contradição humana.
O LAPSOE vieram todos os oficiais... e o resto do povo,
desde o pequeno até ao grande.
E disseram ao profeta Jeremias: Seja aceita
a nossa súplica na tua presença
JEREM. XLII, 1, 2.
Não me perguntem pela família do Dr. Jeremias Halma, nem o que é que ele veio
fazer ao Rio de Janeiro, naquele ano de 1768, governando o conde de Azambuja,
que a princípio se disse o mandara buscar; esta versão durou pouco. Veio, ficou e
morreu com o século. Posso afirmar que era médico e holandês. Viajara muito,
sabia toda a química do tempo, e mais alguma; falava correntemente cinco ou seis
línguas vivas e duas mortas. Era tão universal e inventivo, que dotou a poesia
malaia com um novo metro, e engendrou uma teoria da formação dos diamantes.
Não conto os melhoramentos terapêuticos e outras muitas coisas, que o
recomendam à nossa admiração. Tudo isso, sem ser casmurro, nem orgulhoso. Ao
contrário, a vida e a pessoa dele eram como a casa que um patrício lhe arranjou
na Rua do Piolho, casa singelíssima, onde ele morreu pelo natal de 1799. Sim, o
Dr. Jeremias era simples, lhano, modesto, tão modesto que... Mas isto seria
transtornar a ordem do conto. Vamos ao princípio.
No fim da Rua do Ouvidor, que ainda não era a via dolorosa dos maridos pobres,
perto da antiga Rua dos Latoeiros, morava por esse tempo um tal Tomé
Gonçalves, homem abastado, e, segundo algumas induções, vereador da Câmara.
Vereador ou não, este Tomé Gonçalves não tinha só dinheiro, tinha também
dívidas, não poucas, nem todas recentes. O descuido podia explicar os seus
atrasos, a velhacaria também; mas quem opinasse por uma ou outra dessas
interpretações, mostraria que não sabe ler uma narração grave. Realmente, não
valia a pena dar-se ninguém à tarefa de escrever algumas laudas de papel para
dizer que houve, nos fins do século passado, um homem que, por velhacaria ou
desleixo, deixava de pagar aos credores. A tradição afirma que este nosso
concidadão era exato em todas as coisas, pontual nas obrigações mais vulgares,
severo e até meticuloso. A verdade é que as ordens terceiras e irmandades que
tinham a fortuna de o possuir (era irmão-remido de muitas, desde o tempo em
que usava pagar), não lhe regateavam provas de afeição e apreço; e, se é certo
que foi vereador, como tudo faz crer, pode-se jurar que o foi a contento da cidade.
Mas então?... Lá vou; nem é outra a matéria do escrito, senão esse curioso
fenômeno, cuja causa, se a conhecemos, foi porque a descobriu o Dr. Jeremias.
Em uma tarde de procissão, Tomé Gonçalves, trajado com o hábito de uma ordem
terceira, ia segurando uma das varas do pálio, e caminhando com a placidez de
um homem que não faz mal a ninguém. Nas janelas e ruas estavam muitos dos
seus credores; dois, entretanto, na esquina do Beco das Cancelas (a procissão
descia a Rua do Hospício), depois de ajoelhados, rezados, persignados e

levantados, perguntaram um ao outro, se não era tempo de recorrer à justiça.
— Que é que me pode acontecer? dizia um deles. Se brigar comigo, melhor; não
me levará mais nada de graça. Não brigando, não lhe posso negar o que me pedir,
e na esperança de receber os atrasados, vou fiando... Não, senhor; não pode
continuar assim.
— Pela minha parte, acudiu o outro, se ainda não fiz nada, é por causa da minha
dona, que é medrosa, e entende que não devo brigar com pessoa tão
importante... Mas eu como ou bebo da importância dos outros? E as minhas
cabeleiras?
Este era um cabeleireiro da rua da Vala, defronte da Sé, que vendera ao Tomé
Gonçalves dez cabeleiras, em cinco anos, sem lhe haver nunca um real. O outro
era alfaiate, e ainda maior credor que o primeiro. A procissão passara
inteiramente; eles ficaram na esquina, ajustando o plano de mandar os meirinhos
ao Tomé Gonçalves. O cabeleireiro advertiu que outros muitos credores só
esperavam um sinal para cair em cima do devedor remisso; e o alfaiate lembrou a
conveniência de meter na conjuração o Mata-sapateiro, que vivia desesperado. Só
a ele devia o Tomé Gonçalves mais de oitenta mil-réis. Nisso estavam, quando por
trás deles ouviram uma voz, com sotaque estrangeiro, perguntando por que
motivo conspiravam contra um homem doente. Voltaram-se, e, dando com o Dr.
Jeremias, desbarretaram-se os dois credores, tomados de profunda veneração;
em seguida disseram que tanto não era doente o devedor, que lá ia andando na
procissão, muito teso, pegando uma das varas do pálio.
— Que tem isso? interrompeu o médico; ninguém lhes diz que está doente dos
braços nem das pernas...
— Do coração? do estômago?
— Nem coração, nem estômago, respondeu o Dr. Jeremias. E continuou, com
muita doçura, que se tratava de negócios altamente especulativos, que não podia
dizer ali, na rua, nem sabia mesmo se eles chegariam a entendê-lo. Se eu tiver de
pentear uma cabeleira ou talhar um calção — acrescentou para os não afligir, — é
provável que não alcance as regras dos seus ofícios tão úteis, tão necessários ao
Estado... Eh! eh! eh!
Rindo assim, amigavelmente, cortejou-os e foi andando. Os dois credores ficaram
embasbacados. O cabeleireiro foi o primeiro que falou, dizendo que a notícia do
Dr. Jeremias não era tal que os devesse afrouxar no propósito de cobrar as
dívidas. Se até os mortos pagam, ou alguém por eles, reflexionou o cabeleireiro,
não é muito exigir aos doentes igual obrigação. O alfaiate, invejoso da pilhéria, fê-
la sua cosendo-lhe este babado: — Pague e cure-se.
Não foi dessa opinião o Mata-sapateiro, que entendeu haver alguma razão secreta
nas palavras do Doutor Jeremias, e propôs que primeiro se examinasse bem o que
era, e depois se resolvesse o mais idôneo. Convidaram então outros credores a
um conciliábulo, no domingo próximo, em casa de uma D. Aninha, para as bandas
do Rocio, a pretexto de um batizado. A precaução era discreta, não fazer supor ao
intendente da polícia que se tratava de alguma tenebrosa maquinação contra o
Estado. Mal anoiteceu, começaram a entrar os credores, embuçados em capotes,
e, como a iluminação pública só veio a principiar com o vice-reinado do Conde de
Resende, levava cada qual uma lanterna na mão, ao uso do tempo, dando assim
ao conciliábulo um rasgo pinturesco e teatral. Eram trinta e tantos, perto de
quarenta — e não eram todos.
A teoria de Ch. Lamb acerca da divisão do gênero humano em duas grandes raças,
é posterior ao conciliábulo do Rocio; mas nenhum outro exemplo a demonstraria
melhor. Com efeito, o ar abatido ou aflito daqueles homens, o desespero de

alguns, a preocupação de todos, estavam de antemão provando que a teoria do
fino ensaísta é verdadeira, e que das duas grandes raças humanas, — a dos
homens que emprestam, e a dos que pedem emprestado, — a primeira contrasta
pela tristeza do gesto com as maneiras rasgadas e francas da segunda,
the open,
trusting, generous manners of the other
. Assim que, naquela mesma hora, o Tomé
Gonçalves, tendo voltado da procissão, regalava alguns amigos com os vinhos e
galinhas que comprara fiado; ao passo que os credores estudavam às escondidas,
com um ar desenganado e amarelo, algum meio de reaver o dinheiro perdido.
Longo foi o debate; nenhuma opinião chegava a concertar os espíritos. Uns
inclinavam-se à demanda, outros à espera, não poucos aceitavam o alvitre de
consultar o Dr. Jeremias. Cinco ou seis partidários deste parecer não o defendiam
senão com a intenção secreta e disfarçada de não fazer coisa nenhuma; eram os
servos do medo e da esperança. O cabeleireiro opunha-se-lhe, e perguntava que
moléstia haveria que impedisse um homem de pagar o que deve. Mas o Matasapateiro: — "Sr. compadre, nós não entendemos desses negócios; lembre-se que
o doutor é estrangeiro, e que nas terras estrangeiras sabem coisas que nunca
lembraram ao diabo. Em todo caso, só perdemos algum tempo e nada mais."
Venceu este parecer; deputaram o sapateiro, o alfaiate e o cabeleireiro para
entenderem-se com o Dr. Jeremias, em nome de todos, e o conciliábulo dissolveuse na patuscada. Terpsícore bracejou e perneou diante deles as suas graças
jucundas, e tanto bastou para que alguns esquecessem a úlcera secreta que os
roía.
Eheu! fugaces... Nem mesmo a dor é constante.
No dia seguinte o Dr. Jeremias recebeu os três credores, entre sete e oito horas da
manhã. "Entrem, entrem..." E com o seu largo carão holandês, e o riso derramado
pela boca fora, como um vinho generoso de pipa que se rompeu, o grande médico
veio em pessoa abrir-lhes a porta. Estudava nesse momento uma cobra, morta de
véspera, no morro de Santo Antônio; mas a humanidade, costumava ele dizer, é
anterior à ciência. Convidou os três a sentarem-se nas três únicas cadeiras
devolutas; a quarta era a dele; as outras, umas cinco ou seis, estavam atulhadas
de objetos de toda a casta.
Foi o Mata-sapateiro quem expôs a questão; era dos três o que reunia maior cópia
de talentos diplomáticos. Começou dizendo que o engenho do "Sr. doutor" ia
salvar da miséria uma porção de famílias, e não seria a primeira nem a última
grande obra de um médico que, não desfazendo nos da terra, era o mais sábio de
quantos cá havia desde o governo de Gomes Freire. Os credores de Tomé
Gonçalves não tinham outra esperança. Sabendo que o "Sr. doutor" atribuía os
atrasos daquele cidadão a uma doença, tinham assentado que primeiro se
tentasse a cura, antes de qualquer recurso à justiça. A justiça ficaria para o caso
de desespero. Era isto o que vinham dizer-lhe, em nome de dezenas de credores;
desejavam saber se era verdade que, além de outros achaques humanos, havia o
de não pagar as dívidas, se era mal incurável, e, não o sendo, se as lágrimas de
tantas famílias...
— Há uma doença especial, interrompeu o Dr. Jeremias, visivelmente comovido,
um lapso da memória; o Tomé Gonçalves perdeu inteiramente a noção de pagar.
Não é por descuido, nem de propósito que ele deixa de saldar as contas; é porque
esta idéia de pagar, de entregar o preço de uma coisa, varreu-se lhe da cabeça.
Conheci isto há dois meses, estando em casa dele, quando ali foi o prior do
Carmo, dizendo que ia "pagar-lhe a fineza de uma visita". Tomé Gonçalves,
apenas o prior se despediu, perguntou-me o que era pagar; acrescentou que,
alguns dias antes, um boticário lhe dissera a mesma palavra, sem nenhum outro
esclarecimento, parecendo-lhe até que já a ouvira a outras pessoas; por ouvi-la da
boca do prior, supunha ser latim. Compreendi tudo; tinha estudado a moléstia em
várias partes do mundo, e compreendi que ele estava atacado do lapso. Foi por
isso que disse outro dia a estes dois senhores que não demandassem um homem
doente.

— Mas então, aventurou o Mata, pálido, o nosso dinheiro está completamente
perdido...
— A moléstia não é incurável, disse o médico.
— Ah!
— Não é; conheço e possuo a droga curativa, e já a empreguei em dois grandes
casos: — um barbeiro, que perdera a noção do espaço, e, à noite estendia a mão
para arrancar as estrelas do céu, e uma senhora da Catalunha, que perdera a
noção do marido. O barbeiro arriscou muitas vezes a vida, querendo sair pelas
janelas mais altas das casas, como se estivesse ao rés do chão...
— Santo Deus! exclamaram os três credores.
— É o que lhes digo, continuou placidamente o médico. Quanto à dama catalã, a
princípio confundia o marido com um licenciado Matias, alto e fino, quando o
marido era grosso e baixo; depois com um capitão, D. Hermógenes, e, no tempo
em que comecei a tratá-la com um clérigo. Em três meses ficou boa. Chamava-se
D. Agostinha.
Realmente, era uma droga miraculosa. Os três credores estavam radiantes de
esperança; tudo fazia crer que o Tomé Gonçalves padecia do lapso, e, uma vez
que a droga existia, e o médico a tinha em casa... Ah! mas aqui pegou o carro. O
Dr. Jeremias não era familiar da casa do enfermo, embora entretivesse relações
com ele; não podia ir oferecer-lhe os seus préstimos. Tomé Gonçalves não tinha
parentes que tomassem a responsabilidade de convidar o médico, nem os
credores podiam tomá-la a si. Mudos, perplexos, consultaram-se com os olhos. Os
do alfaiate, como os do cabeleireiro, exprimiram este alvitre desesperado:
cotizarem-se os credores, e, mediante uma quantia grossa e apetitosa,
convidarem o Dr. Jeremias à cura; talvez o interesse... Mas o ilustre Mata viu o
perigo de um tal propósito, porque o doente podia não ficar bom, e a perda seria
dobrada. Grande era a angústia; tudo parecia perdido. O médico rolava entre os
dedos a boceta de rapé, esperando que eles se fossem embora, não impaciente,
mas risonho. Foi então que o Mata, como um capitão dos grandes dias, viu o
ponto fraco do inimigo; advertiu que as suas primeiras palavras tinham comovido
o médico, e tornou às lágrimas das famílias, aos filhos sem pão, porque eles não
eram senão uns tristes oficiais de ofício ou mercadores de pouca fazenda, ao
passo que o Tomé Gonçalves era rico. Sapatos, calções, capotes, xaropes,
cabeleiras, tudo o que lhes custava dinheiro, tempo e saúde... Saúde, sim,
senhor; os calos de suas mãos mostravam bem que o ofício era duro; e o alfaiate,
seu amigo, que ali estava presente, e que entisicava, às noites, à luz de uma
candeia, zás-que-darás, puxando a agulha...
Magnânimo Jeremias! Não o deixou acabar; tinha os olhos úmidos de lágrimas. O
acanho de suas maneiras era compensado pelas expansões de um coração pio e
humano. Pois, sim; ia tentar o curativo, ia pôr a ciência ao serviço de uma causa
justa. Demais, a vantagem era também e principalmente do próprio Tomé
Gonçalves, cuja fama andava abocanhada, por um motivo em que ele tinha tanta
culpa como o doido que pratica uma iniqüidade. Naturalmente, a alegria dos
deputados traduziu-se em rapapés infindos e grandes louvores aos insignes
merecimentos do médico. Este cortou-lhes modestamente o discurso, convidandoos a almoçar, obséquio que eles não aceitaram, mas agradeceram com palavras
cordialíssimas. E, na rua, quando ele já os não podia ouvir, não se fartavam de
elogiar-lhe a ciência, a bondade, a generosidade, a delicadeza, os modos tão
simples! tão naturais!
Desde esse dia começou Tomé Gonçalves a notar a assiduidade do médico, e, não
desejando outra coisa, porque lhe seria muito, fez tudo o que lhe lembrou por atá-
lo de vez aos seus penates. O lapso do infeliz era completo; tanto a idéia de

pagar, como as idéias correlatas de credor, dívida, saldo, e outras tinham-se-lhe
apagado da memória, constituindo-lhe assim um largo furo no espírito. Temo que
se me argua de comparações extraordinárias, mas o abismo de Pascal é o que
mais prontamente vem ao bico da pena. Tomé Gonçalves tinha o abismo de
Pascal, não ao lado, mas dentro de si mesmo, e tão profundo que cabiam nele
mais de sessenta credores que se debatiam lá embaixo com o ranger de dentes da
Escritura. Urgia extrair todos esses infelizes e entulhar o buraco.
Jeremias fez crer ao doente que andava abatido, e, para retemperá-lo, começou a
aplicar-lhe a droga. Não bastava a droga; era mister um tratamento subsidiário,
porque a cura operava-se de dois modos: — o modo geral e abstrato, restauração
da idéia de pagar, com todas as noções correlatas — era a parte confiada à droga;
e o modo particular e concreto, insinuação ou designação de uma certa dívida e de
um certo credor — era a parte do médico. Suponhamos que o credor escolhido era
o sapateiro. O médico levava o doente às lojas de sapatos, para assistir à compra
e venda da mercadoria, e ver uma e muitas vezes a ação de pagar; falava de
fabricação e venda dos sapatos no resto do mundo, cotejava os preços do calçado
naquele ano de 1768 com o que tinha trinta ou quarenta anos antes; fazia com
que o sapateiro fosse dez, vinte vezes à casa de Tomé Gonçalves levar a conta e
pedir o dinheiro, e cem outros estratagemas. Assim com o alfaiate, o cabeleireiro,
o segeiro, o boticário, um a um, levando mais tempo os primeiros, pela razão
natural de estar a doença mais arraigada, e lucrando os últimos com o trabalho
anterior, donde lhes vinha a compensação da demora.
Tudo foi pago. Não se descreve a alegria dos credores, não se transcrevem as
bênçãos com que eles encheram o nome do Dr. Jeremias. Sim, senhor, é um
grande homem, bradavam em toda a parte. Parece coisa de feitiçaria,
aventuravam as mulheres. Quanto ao Tomé Gonçalves, pasmado de tantas dívidas
velhas, não se fartava de elogiar a longanimidade dos credores, censurando-os ao
mesmo tempo pela acumulação.
— Agora, dizia-lhes, não quero contas de mais de oito dias.
— Nós é que lhe marcaremos o tempo, respondiam generosamente os credores.
Restava, entretanto, um credor. Esse era o mais recente, o próprio Dr. Jeremias,
pelos honorários naquele serviço relevante. Mas, ai dele! a modéstia atou-lhe a
língua. Tão expansivo era de coração, como acanhado de maneiras; e planeou
três, cinco investidas, sem chegar a executar nada. E aliás era fácil; bastava
insinuar-lhe a dívida pelo método usado em relação à dos outros; mas seria
bonito? perguntava a si mesmo; seria decente? etc., etc. E esperava, ia
esperando. Para não parecer que se lhe metia à cara, entrou a rarear as visitas;
mas o Tomé Gonçalves ia ao casebre da Rua do Piolho, e trazia-o a jantar, a cear,
a falar de coisas estrangeiras, em que era muito curioso. Nada de pagar. Jeremias
chegou a imaginar que os credores... Mas os credores, ainda quando pudesse
passar-lhes pela cabeça a idéia de lembrar a dívida, não chegariam a fazê-lo,
porque a supunham paga antes de todas. Era o que diziam uns aos outros, entre
muitas fórmulas da sabedoria popular: — Mateus, primeiro os teus — A boa justiça
começa por casa — Quem é tolo pede a Deus que o mate, etc. Tudo falso; a
verdade é que o Tomé Gonçalves, no dia em que falecera, tinha um só credor no
mundo: — o Dr. Jeremias.
Este, nos fins do século, chegara à canonização. — "Adeus, grande homem!" dizialhe o Mata, ex-sapateiro, em 1798, de dentro da sege, que o levava à missa dos
carmelitas. E o outro, curvo de velhice, melancolicamente, olhando para os bicos
dos pés: — Grande homem, mas pobre diabo.
ÚLTIMO CAPÍTULO
Há entre os suicidas um excelente costume, que é não deixar a vida sem dizer o
motivo e as circunstâncias que os armam contra ela. Os que se vão calados,
raramente é por orgulho; na maior parte dos casos ou não têm tempo, ou não
sabem escrever. Costume excelente: em primeiro lugar, é um ato de cortesia, não
sendo este mundo um baile, de onde um homem possa esgueirar-se antes do
cotilhão; em segundo lugar, a imprensa recolhe e divulga os bilhetes póstumos, e
o morto vive ainda um dia ou dois, às vezes uma semana mais.
Pois apesar da excelência do costume, era meu propósito sair calado. A razão é
que, tendo sido caipora em minha vida toda, temia que qualquer palavra última
pudesse levar-me alguma complicação à eternidade. Mas um incidente de há
pouco trocou-me o plano, e retiro-me deixando, não só um escrito, mas dois. O
primeiro é o meu testamento, que acabo de compor e fechar, e está aqui em cima
da mesa, ao pé da pistola carregada. O segundo é este resumo de autobiografia. E
note-se que não dou o segundo escrito senão porque é preciso esclarecer o
primeiro, que pareceria absurdo ou ininteligível, sem algum comentário. Disponho
ali que, vendidos os meus poucos livros, roupa de uso e um casebre que possuo
em Catumbi, alugado a um carpinteiro, seja o produto empregado em sapatos e
botas novas, que se distribuirão por um modo indicado, e confesso que
extraordinário. Não explicada a razão de um tal legado, arrisco a validade do
testamento. Ora, a razão do legado brotou do incidente de há pouco, e o incidente
liga-se à minha vida inteira.
Chamo-me Matias Deodato de Castro e Melo, filho do sargento-mor Salvador
Deodato de Castro e Melo e de D. Maria da Soledade Pereira, ambos falecidos. Sou
natural de Corumbá, Mato Grosso; nasci em 3 de março de 1820; tenho, portanto,
cinqüenta e um anos, hoje, 3 de março de 1871.
Repito, sou um grande caipora, o mais caipora de todos os homens. Há uma
locução proverbial, que eu literalmente realizei. Era em Corumbá; tinha sete para
oito anos, embalava-me na rede, à hora da sesta, em um quartinho de telha-vã; a
rede, ou por estar frouxa a argola, ou por impulso demasiado violento da minha
parte, desprendeu-se de uma das paredes, e deu comigo no chão. Caí de costas;
mas, assim mesmo de costas, quebrei o nariz, porque um pedaço de telha, mal
seguro, que só esperava ocasião de vir abaixo, aproveitou a comoção e caiu
também. O ferimento não foi grave nem longo; tanto que meu pai caçoou muito
comigo. O Cônego Brito, de tarde, ao ir tomar guaraná conosco, soube do episódio
e citou o rifão, dizendo que era eu o primeiro que cumpria exatamente este
absurdo de cair de costas e quebrar o nariz. Nem um nem outro imaginava que o
caso era um simples início de coisas futuras.
Não me demoro em outros reveses da infância e da juventude. Quero morrer ao
meio-dia, e passa de onze horas. Além disso, mandei fora o rapaz que me serve, e
ele pode vir mais cedo, e interromper-me a execução do projeto mortal. Tivesse
eu tempo, e contaria pelo miúdo alguns episódios doloridos, entre eles, o de umas
cacetadas que apanhei por engano. Tratava-se do rival de um amigo meu, rival de
amores e naturalmente rival derrubado. O meu amigo e a dama indignaram-se
com as pancadas quando souberam da aleivosia do outro; mas aplaudiram
secretamente a ilusão. Também não falo de alguns achaques que padeci. Corro ao
ponto em que meu pai, tendo sido pobre toda a vida, morreu pobríssimo, e minha
mãe não lhe sobreviveu dois meses. O Cônego Brito, que acabava de sair eleito
deputado, propôs então trazer-me ao Rio de Janeiro, e veio comigo, com a idéia
de fazer-me padre; mas cinco dias depois de chegar morreu. Vão vendo a ação
constante do caiporismo.
Fiquei só, sem amigos, nem recursos, com dezesseis anos de idade. Um cônego da
Capela Imperial lembrou-se de fazer-me entrar ali de sacristão; mas, posto que
tivesse ajudado muita missa em Mato Grosso, e possuísse algumas letras latinas,
não fui admitido, por falta de vaga. Outras pessoas induziram-me então a estudar

direito, e confesso que aceitei com resolução. Tive até alguns auxílios, a princípio;
faltando-me eles depois, lutei por mim mesmo; enfim alcancei a carta de bacharel.
Não me digam que isto foi uma exceção na minha vida caipora, porque o diploma
acadêmico levou-me justamente a coisas mui graves; mas, como o destino tinha
de flagelar-me, qualquer que fosse a minha profissão, não atribuo nenhum influxo
especial ao grau jurídico. Obtive-o com muito prazer, isso é verdade; a idade
moça, e uma certa superstição de melhora, faziam-me do pergaminho uma chave
de diamante que iria abrir todas as portas da fortuna.
E, para principiar, a carta de bacharel não me encheu sozinha as algibeiras. Não,
senhor; tinha ao lado dela umas outras, dez ou quinze, fruto de um namoro
travado no Rio de Janeiro, pela semana santa de 1842, com uma viúva mais velha
do que eu sete ou oito anos, mas ardente, lépida e abastada. Morava com um
irmão cego, na Rua do Conde; não posso dar outras indicações. Nenhum dos meus
amigos ignorava este namoro; dois deles até liam as cartas, que eu lhes
mostrava, com o pretexto de admirar o estilo elegante da viúva, mas realmente
para que vissem as finas coisas que ela me dizia. Na opinião de todos, o nosso
casamento era certo, mais que certo; a viúva não esperava senão que eu
concluísse os estudos. Um desses amigos, quando eu voltei graduado, deu-me os
parabéns, acentuando a sua convicção com esta frase definitiva:
— O teu casamento é um dogma.
E, rindo, perguntou-me se, por conta do dogma, poderia arranjar-lhe cinqüenta
mil-réis; era para uma urgente precisão. Não tinha comigo os cinqüenta mil-réis;
mas o
dogma repercutia ainda tão docemente no meu coração, que não descansei
em todo esse dia, até arranjar-lhos; fui levá-los eu mesmo, entusiasmado; ele
recebeu-os, cheio de gratidão. Seis meses depois foi ele quem casou com a viúva.
Não digo tudo o que então padeci; digo só que o meu primeiro impulso foi dar um
tiro em ambos; e, mentalmente, cheguei a fazê-lo; cheguei a vê-los, moribundos,
arquejantes, pedirem-me perdão. Vingança hipotética; na realidade, não fiz nada.
Eles casaram-se, e foram ver do alto da Tijuca a ascensão da lua-de-mel. Eu fiquei
relendo as cartas da viúva. "Deus, que me ouve (dizia uma delas), sabe que o
meu amor é eterno, e que eu sou tua, eternamente tua..." E, no meu
atordoamento, blasfemava comigo: — Deus é um grande invejoso; não quer outra
eternidade ao pé dele, e por isso desmentiu a viúva: — nem outro dogma além do
católico, e por isso desmentiu o meu amigo. Era assim que eu explicava a perda
da namorada e dos cinqüenta mil-réis.
Deixei a capital, e fui advogar na roça, mas por pouco tempo. O caiporismo foi
comigo, na garupa do burro, e onde eu me apeei, apeou-se ele também. Vi-lhe o
dedo em tudo, nas demandas que não vinham, nas que vinham e valiam pouco ou
nada, e nas que, valendo alguma coisa, eram invariavelmente perdidas. Além de
que os constituintes vencedores são em geral mais gratos que os outros, a
sucessão de derrotas foi arredando de mim os demandistas. No fim de algum
tempo, ano e meio, voltei à Corte, e estabeleci-me com um antigo companheiro de
ano: o Gonçalves.
Este Gonçalves era o espírito menos jurídico, menos apto para entestar com as
questões de direito. Verdadeiramente era um pulha. Comparemos a vida mental a
uma casa elegante; o Gonçalves não aturava dez minutos a conversa do salão,
esgueirava-se, descia à copa e ia palestrar com os criados. Mas compensava essa
qualidade inferior com certa lucidez, com a presteza de compreensão, nos
assuntos menos árduos ou menos complexos, com a facilidade de expor, e, o que
não era pouco para um pobre-diabo batido da fortuna, com uma alegria quase
sem intermitências. Nos primeiros tempos, como as demandas não vinham,
matávamos as horas com excelente palestra, animada e viva, em que a melhor
parte era dele, ou falássemos de política, ou de mulheres, assunto que lhe era
muito particular.

Mas as demandas vieram vindo; entre elas uma questão de hipoteca. Tratava-se
da casa de um empregado da alfândega, Temístocles de Sá Botelho, que não tinha
outros bens, e queria salvar a propriedade. Tomei conta do negócio. O Temístocles
ficou encantado comigo: e, duas semanas depois, como eu lhe dissesse que não
era casado, declarou-me rindo que não queria nada com solteirões. Disse-me
outras coisas e convidou-me a jantar no domingo próximo. Fui; namorei-me da
filha dele, D. Rufina, moça de dezenove anos, bem bonita, embora um pouco
acanhada e meia morta. Talvez seja a educação, pensei eu. Casamo-nos poucos
meses depois. Não convidei o caiporismo, é claro; mas na igreja, entre as barbas
rapadas e as suíças lustrosas, pareceu-me ver o carão sardônico e o olhar oblíquo
do meu cruel adversário. Foi por isso que, no ato mesmo de proferir a fórmula
sagrada e definitiva do casamento, estremeci, hesitei, e, enfim, balbuciei a medo o
que o padre me ditava...
Estava casado. Rufina não dispunha, é verdade, de certas qualidades brilhantes e
elegantes; não seria, por exemplo, e desde logo, uma dona de salão. Tinha,
porém, as qualidades caseiras, e eu não queria outras. A vida obscura bastavame; e, contanto que ela ma enchesse, tudo iria bem. Mas esse era justamente o
agro da empresa. Rufina (permitam-me esta figuração cromática) não tinha a
alma negra de
lady Macbeth, nem a vermelha de Cleópatra, nem a azul de Julieta,
nem a alva de Beatriz, mas cinzenta e apagada como a multidão dos seres
humanos. Era boa por apatia, fiel sem virtude, amiga sem ternura nem eleição.
Um anjo a levaria ao céu, um diabo ao inferno, sem esforço em ambos os casos, e
sem que, no primeiro lhe coubesse a ela nenhuma glória, nem o menor desdouro
no segundo. Era a passividade do sonâmbulo. Não tinha vaidades. O pai armoume o casamento para ter um genro doutor; ela, não; aceitou-me como aceitaria
um sacristão, um magistrado, um general, um empregado público, um alferes, e
não por impaciência de casar, mas por obediência à família, e, até certo ponto,
para fazer como as outras. Usavam-se maridos; ela queria usar também o seu.
Nada mais antipático à minha própria natureza; mas estava casado.
Felizmente — ah! um felizmente neste último capítulo de um caipora, é, na
verdade, uma anomalia; mas vão lendo, e verão que o advérbio pertence ao
estilo, não à vida; é um modo de transição e nada mais. O que vou dizer não
altera o que está dito. Vou dizer que as qualidades domésticas de Rufina davamlhe muito mérito. Era modesta; não amava bailes, nem passeios, nem janelas.
Vivia consigo. Não mourejava em casa, nem era preciso; para dar-lhe tudo,
trabalhava eu, e os vestidos e chapéus, tudo vinha "das francesas", como então se
dizia, em vez de modistas. Rufina, no intervalo das ordens que dava, sentava-se
horas e horas, bocejando o espírito, matando o tempo, uma hidra de cem cabeças,
que não morria nunca; mas, repito, com todas essas lacunas, era boa dona de
casa. Pela minha parte, estava no papel das rãs que queriam um rei; a diferença é
que, mandando-me Júpiter um cepo, não lhe pedi outro, porque viria a cobra e
engolia-me. Viva o cepo! disse comigo. Nem conto estas coisas, senão para
mostrar a lógica e a constância do meu destino.
Outro
felizmente; e este não é só uma transição de frase. No fim de ano e meio,
abotoou no horizonte uma esperança, e, a calcular pela comoção que me deu a
notícia, uma esperança suprema e única. Era o desejado que chegava. Que
desejado? Um filho. A minha vida mudou logo. Tudo me sorria como um dia de
noivado. Preparei-lhe um recebimento régio; comprei-lhe um rico berço, que me
custou bastante; era de ébano e marfim, obra acabada; depois, pouco a pouco, fui
comprando o enxoval; mandei-lhe coser as mais finas cambraias, as mais quentes
flanelas, uma linda touca de renda, comprei-lhe um carrinho, e esperei, esperei,
pronto a bailar diante dele, como Davi diante da arca... Ai, caipora! a arca entrou
vazia em Jerusalém; o pequeno nasceu morto.
Quem me consolou no malogro foi o Gonçalves, que devia ser padrinho do
pequeno, e era amigo, comensal e confidente nosso. Tem paciência, disse-me;

serei padrinho do que vier. E confortava-me, falava-me de outras coisas, com
ternura de amigo. O tempo fez o resto. O próprio Gonçalves advertiu-me depois
que, se o pequeno tinha de ser caipora, como eu dizia que era, melhor foi que
nascesse morto.
— E pensas que não? redargüi.
Gonçalves sorriu; ele não acreditava no meu caiporismo. Verdade é que não tinha
tempo de acreditar em nada; todo era pouco para ser alegre. Afinal, começara a
converter-se à advocacia, já arrazoava autos, já minutava petições, já ia às
audiências, tudo porque era preciso viver, dizia ele. E alegre sempre. Minha
mulher achava-lhe muita graça, ria longamente dos ditos dele, e das anedotas,
que às vezes eram picantes demais. Eu, a princípio, repreendia-o em particular,
mas acostumei-me a elas. E depois, quem é que não perdoa as facilidades de um
amigo, e de um amigo jovial? Devo dizer que ele mesmo se foi refreando, e dali a
algum tempo, comecei a achar-lhe muita seriedade. Estás namorado, disse-lhe um
dia; e ele, empalidecendo, respondeu que sim, e acrescentou sorrindo, embora
frouxamente, que era indispensável casar também. Eu, à mesa, falei do assunto.
— Rufina, você sabe que o Gonçalves vai casar?
— É caçoada dele, interrompeu vivamente o Gonçalves.
Dei ao diabo a minha indiscrição, e não falei mais nisso; nem ele. Cinco meses
depois... A transição é rápida; mas não há meio de a fazer longa. Cinco meses
depois, adoeceu Rufina, gravemente, e não resistiu oito dias; morreu de uma
febre perniciosa.
Coisa singular: em vida, a nossa divergência moral trazia a frouxidão dos vínculos,
que se sustinham principalmente da necessidade e do costume. A morte, com o
seu grande poder espiritual, mudou tudo; Rufina apareceu-me como a esposa que
desce do Líbano, e a divergência foi substituída pela total fusão dos seres. Peguei
da imagem, que enchia a minha alma, e enchi com ela a vida, onde outrora
ocupara tão pouco espaço e por tão pouco tempo. Era um desafio à má estrela;
era levantar o edifício da fortuna em pura rocha indestrutível. Compreendam-me
bem; tudo o que até então dependia do mundo exterior, era naturalmente
precário: as telhas caíam com o abalo das redes, as sobrepelizes recusavam-se
aos sacristães, os juramentos das viúvas fugiam com os dogmas dos amigos, as
demandas vinham trôpegas ou iam-se de mergulho; enfim, as crianças nasciam
mortas. Mas a imagem de uma defunta era imortal. Com ela podia desafiar o olhar
oblíquo do mau destino. A felicidade estava nas minhas mãos, presa, vibrando no
ar as grandes asas de condor, ao passo que o caiporismo, semelhante a uma
coruja, batia as suas na direção da noite e do silêncio...
Um dia, porém, convalescendo de uma febre, deu-me na cabeça inventariar uns
objetos da finada e comecei por uma caixinha, que não fora aberta, desde que ela
morreu, cinco meses antes. Achei uma multidão de coisas minúsculas, agulhas,
linhas, entremeios, um dedal, uma tesoura, uma oração de S. Cipriano, um rol de
roupa, outras quinquilharias, e um maço de cartas, atado por uma fita azul.
Deslacei a fita e abri as cartas: eram do Gonçalves... Meio-dia! Urge acabar; o
moleque pode vir, e adeus. Ninguém imagina como o tempo corre nas
circunstâncias em que estou; os minutos voam como se fossem impérios, e, o que
é importante nesta ocasião, as folhas de papel vão com eles.
Não conto os bilhetes brancos, os negócios abortados, as relações interrompidas;
menos ainda outros acintes ínfimos da fortuna. Cansado e aborrecido, entendi que
não podia achar a felicidade em parte nenhuma; fui além: acreditei que ela não
existia na terra, e preparei-me desde ontem para o grande mergulho na
eternidade. Hoje, almocei, fumei um charuto, e debrucei-me à janela. No fim de
dez minutos, vi passar um homem bem trajado, fitando a miúdo os pés. Conhecia-

o de vista; era uma vítima de grandes reveses, mas ia risonho, e contemplava os
pés, digo mal, os sapatos. Estes eram novos, de verniz, muito bem talhados, e
provavelmente cosidos a primor. Ele levantava os olhos para as janelas, para as
pessoas, mas tornava-os aos sapatos, como por uma lei de atração, anterior e
superior à vontade. Ia alegre; via-se-lhe no rosto a expressão da bemaventurança. Evidentemente era feliz; e, talvez, não tivesse almoçado; talvez
mesmo não levasse um vintém no bolso. Mas ia feliz, e contemplava as botas.
A felicidade será um par de botas? Esse homem, tão esbofeteado pela vida, achou
finalmente um riso da fortuna. Nada vale nada. Nenhuma preocupação deste
século, nenhum problema social ou moral, nem as alegrias da geração que
começa, nem as tristezas da que termina, miséria ou guerra de classes; crises da
arte e da política, nada vale, para ele, um par de botas. Ele fita-as, ele respira-as,
ele reluz com elas, ele calca com elas o chão de um globo que lhe pertence. Daí o
orgulho das atitudes, a rigidez dos passos, e um certo ar de tranqüilidade
olímpica... Sim, a felicidade é um par de botas.
Não é outra a explicação do meu testamento. Os superficiais dirão que estou
doido, que o delírio do suicida define a cláusula do testador; mas eu falo para os
sapientes e para os malfadados. Nem colhe a objeção de que era melhor gastar
comigo as botas, que lego aos outros; não, porque seria único. Distribuindo-as,
faço um certo número de venturosos. Eia, caiporas! que a minha última vontade
seja cumprida. Boa noite, e calçai-vos!
CANTIGA DE ESPONSAISImagine a leitora que está em 1813, na Igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas
boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem
o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada
daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães,
nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos
nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as
cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra,
que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse
velho que rege a orquestra, com alma e devoção.
Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou
por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele.
Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma coisa em
tal matéria e naquele tempo. "Quem rege a missa é mestre Romão", — equivalia a
esta outra forma de anúncio, anos depois: "Entra em cena o ator João Caetano";
— ou então: "O ator Martinho cantará uma de suas melhores árias". Era o tempero
certo, o chamariz delicado e popular. Mestre Romão rege a festa! Quem não
conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e
passo demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida
derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o
riso iluminava-se: era outro. Não que a missa fosse dele; esta, por exemplo, que
ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor
que empregaria, se a missa fosse sua.
Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas
alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala; vai à
sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar. Tudo isso
indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a Rua da Mãe dos Homens, onde
reside, com um preto velho, pai José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste
momento conversa com uma vizinha.
— Mestre Romão lá vem, pai José, disse a vizinha.

— Eh! eh! adeus, sinhá, até logo.
Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco
entrava com o mesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem
alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos
que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jucundas. Casa sombria e nua. O
mais alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes,
estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele...
Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas
sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizamse; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e
a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas. Tinha
a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um
mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no
papel. Esta era a causa única de tristeza de mestre Romão. Naturalmente o vulgo
não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro,
algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: — a causa da melancolia de mestre
Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia. Não é
que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo, durante horas; mas
tudo lhe saía informe, sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até
vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada.
E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto
esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha
então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem
pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela. Três dias
depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com
inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração
não pôde sair. Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as
paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração
do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada.
Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel,
não mais. Teimou no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo
de casado. Quando a mulher morreu, ele releu essas primeiras notas conjugais, e
ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar no papel a sensação de felicidade
extinta.
— Pai José, disse ele ao entrar, sinto-me hoje adoentado.
— Sinhô comeu alguma coisa que fez mal...
— Não; já de manhã não estava bom. Vai à botica...
O boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à noite; no dia seguinte mestre
Romão não se sentia melhor. É preciso dizer que ele padecia do coração: —
moléstia grave e crônica. Pai José ficou aterrado, quando viu que o incômodo não
cedera ao remédio, nem ao repouso, e quis chamar o médico.
— Para quê? disse o mestre. Isto passa.
O dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não assim o preto, que mal
pôde dormir duas horas. A vizinhança, apenas soube do incômodo, não quis outro
motivo de palestra; os que entretinham relações com o mestre foram visitá-lo. E
diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do tempo; um acrescentava
graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o boticário lhe dava no
gamão, — outro que eram amores. Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo
dizia que era o final.

— "Está acabado", pensava ele.
Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi
isso o que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras:
— Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas...
Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento.
Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o
canto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo, e não
concluídas. E então teve uma idéia singular: — rematar a obra agora, fosse como
fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra.
— Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão...
O princípio do canto rematava em um certo
; este , que lhe caía bem no lugar,
era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o
cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela
viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados,
com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu
com tristeza.
— Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles
poderão tocar...
Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao
....
Lá... lá... lá...Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente.
Lá, dó... lá, mi... lá, si, dó, ré... ré... ré...Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original,
mas enfim alguma coisa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento
começado. Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da
sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos. Para completar a
ilusão, deitava os olhos pela janela para o lado dos casadinhos. Estes continuavam
ali, com as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro; a
diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo. Mestre Romão,
ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo; mas a vista do casal não
lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não soavam.
Lá... lá... lá...Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento,
a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa,
inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um
certo
trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão
procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou
a cabeça, e à noite expirou.
SINGULAR OCORRÊNCIAHá ocorrências bem singulares. Está vendo aquela dama que vai entrando na
Igreja da Cruz? Parou agora no adro para dar uma esmola.
— De preto?

— Justamente; lá vai entrando; entrou.
— Não ponha mais na carta. Esse olhar está dizendo que a dama é uma sua
recordação de outro tempo, e não há de ser de muito tempo, a julgar pelo corpo:
é moça de truz.
— Deve ter quarenta e seis anos.
— Ah! conservada. Vamos lá; deixe de olhar para o chão, e conte-me tudo. Está
viúva, naturalmente?
— Não.
— Bem; o marido ainda vive. É velho?
— Não é casada.
— Solteira?
— Assim, assim. Deve chamar-se hoje D. Maria de tal. Em 1860 florescia com o
nome familiar de Marocas. Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de
meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará. Morava na Rua do Sacramento.
Já então era esbelta, e, seguramente, mais linda do que hoje; modos sérios,
linguagem limpa. Na rua, com o vestido afogado, escorrido, sem espavento,
arrastava a muitos, ainda assim.
— Por exemplo, ao senhor.
— Não, mas ao Andrade, um amigo meu, de vinte e seis anos, meio advogado,
meio político, nascido nas Alagoas, e casado na Bahia, donde viera em 1859. Era
bonita a mulher dele, afetuosa, meiga e resignada; quando os conheci, tinham
uma filhinha de dois anos.
— Apesar disso, a Marocas...?
— É verdade, dominou-o. Olhe, se não tem pressa, conto-lhe uma coisa
interessante.
— Diga.
A primeira vez que ele a encontrou, foi à porta da loja Paula Brito, no Rocio.
Estava ali, viu a distância uma mulher bonita, e esperou, já alvoroçado, porque ele
tinha em alto grau a paixão das mulheres. Marocas vinha andando, parando e
olhando como quem procura alguma casa. Defronte da loja deteve-se um
instante; depois, envergonhada e a medo, estendeu um pedacinho de papel ao
Andrade, e perguntou-lhe onde ficava o número ali escrito. Andrade disse-lhe que
do outro lado do Rocio, e ensinou-lhe a altura provável da casa. Ela cortejou com
muita graça; ele ficou sem saber o que pensasse da pergunta.
— Como eu estou.
— Nada mais simples: Marocas não sabia ler. Ele não chegou a suspeitá-lo. Viu-a
atravessar o Rocio, que ainda não tinha estátua nem jardim, e ir à casa que
buscava, ainda assim perguntando em outras. De noite foi ao Ginásio; dava-se a
Dama das Camélias; Marocas estava lá, e, no último ato, chorou como uma
criança. Não lhe digo nada; no fim de quinze dias amavam-se loucamente.
Marocas despediu todos os seus namorados, e creio que não perdeu pouco; tinha
alguns capitalistas bem bons. Ficou só, sozinha, vivendo para o Andrade, não
querendo outra afeição, não cogitando de nenhum outro interesse.

— Como a Dama das Camélias.
— Justo. Andrade ensinou-lhe a ler. Estou mestre-escola, disse-me ele um dia; e
foi então que me contou a anedota do Rocio. Marocas aprendeu depressa.
Compreende-se; o vexame de não saber, o desejo de conhecer os romances em
que ele lhe falava, e finalmente o gosto de obedecer a um desejo dele, de lhe ser
agradável... Não me encobriu nada; contou-me tudo com um riso de gratidão nos
olhos, que o senhor não imagina. Eu tinha a confiança de ambos. Jantávamos às
vezes os três juntos; e... não sei por que negá-lo, — algumas vezes os quatro.
Não cuide que eram jantares de gente pândega; alegres, mas honestos. Marocas
gostava da linguagem afogada, como os vestidos. Pouco a pouco estabeleceu-se
intimidade entre nós; ela interrogava-me acerca da vida do Andrade, da mulher,
da filha, dos hábitos dele, se gostava deveras dela, ou se era um capricho, se
tivera outros, se era capaz de a esquecer, uma chuva de perguntas, e um receio
de o perder, que mostravam a força e a sinceridade da afeição... Um dia, uma
festa de S. João, o Andrade acompanhou a família à Gávea, onde ia assistir a um
jantar e um baile; dois dias de ausência. Eu fui com eles. Marocas, ao despedir-se,
recordou a comédia que ouvira algumas semanas antes no Ginásio —
Janto com
minha mãe
— e disse-me que, não tendo família para passar a festa de S. João, ia
fazer como a Sofia Arnoult da comédia, ia jantar com um retrato; mas não seria o
da mãe, porque não tinha, e sim do Andrade. Este dito ia-lhe rendendo um beijo;
o Andrade chegou a inclinar-se; ela, porém, vendo que eu estava ali, afastou-o
delicadamente com a mão.
— Gosto desse gesto.
— Ele não gostou menos. Pegou-lhe na cabeça com ambas as mãos, e,
paternalmente, pingou-lhe o beijo na testa. Seguimos para a Gávea. De caminho
disse-me a respeito da Marocas as maiores finezas, contou-me as últimas frioleiras
de ambos, falou-me do projeto que tinha de comprar-lhe uma casa em algum
arrabalde, logo que pudesse dispor de dinheiro; e, de passagem, elogiou a
modéstia da moça, que não queria receber dele mais do que o estritamente
necessário. Há mais do que isso, disse-lhe eu, e contei-lhe uma coisa que sabia,
isto é, que cerca de três semanas antes, a Marocas empenhara algumas jóias para
pagar uma conta da costureira. Esta notícia abalou-o muito; não juro, mas creio
que ficou com os olhos molhados. Em todo caso, depois de cogitar algum tempo,
disse-me que definitivamente ia arranjar-lhe uma casa e pô-la ao abrigo da
miséria. Na Gávea ainda falamos da Marocas, até que as festas acabaram, e nós
voltamos. O Andrade deixou a família em casa, na Lapa, e foi ao escritório aviar
alguns papéis urgentes. Pouco depois do meio-dia apareceu-lhe um tal Leandro,
ex-agente de certo advogado a pedir-lhe, como de costume, dois ou três mil-réis.
Era um sujeito reles e vadio. Vivia a explorar os amigos do antigo patrão. Andrade
deu-lhe três mil-réis, e, como o visse excepcionalmente risonho, perguntou-lhe se
tinha visto passarinho verde. O Leandro piscou os olhos e lambeu os beiços: o
Andrade, que dava o cavaco por anedotas eróticas, perguntou-lhe se eram
amores. Ele mastigou um pouco, e confessou que sim.
— Olhe; lá vem ela saindo; não é ela?
— Ela mesma: afastemo-nos da esquina.
— Realmente, deve ter sido muito bonita. Tem um ar de duquesa.
— Não olhou para cá; não olha nunca para os lados. Vai subir pela Rua do
Ouvidor...
— Sim, senhor. Compreendo o Andrade.
— Vamos ao caso. O Leandro confessou que tivera na véspera uma fortuna rara,

ou antes única, uma coisa que ele nunca esperara achar, nem merecia mesmo,
porque se conhecia e não passava de um pobre-diabo. Mas, enfim, os pobres
também são filhos de Deus. Foi o caso que, na véspera, perto das dez horas da
noite, encontrara no Rocio uma dama vestida com simplicidade, vistosa de corpo,
e muito embrulhada num xale grande. A dama vinha atrás dele, e mais depressa;
ao passar rentezinha com ele, fitou-lhe muito os olhos, e foi andando devagar,
como quem espera. O pobre-diabo imaginou que era engano de pessoa; confessou
ao Andrade que, apesar da roupa simples, viu logo que não era coisa para os seus
beiços. Foi andando; a mulher, parada, fitou-o outra vez, mas com tal instância,
que ele chegou atrever-se um pouco; ela atreveu-se o resto... Ah! um anjo! E que
casa, que sala rica! Coisa papa-fina. E depois o desinteresse... "Olhe, acrescentou
ele, para V. S
a é que era um bom arranjo". Andrade abanou a cabeça; não lhe
cheirava o comborço. Mas o Leandro teimou; era na Rua do Sacramento, número
tantos...
— Não me diga isso!
— Imagine como não ficou o Andrade. Ele mesmo não soube o que fez nem o que
disse durante os primeiros minutos, nem o que pensou nem o que sentiu. Afinal
teve força para perguntar se era verdade o que estava contando; mas o outro
advertiu que não tinha nenhuma necessidade de inventar semelhante coisa;
vendo, porém, o alvoroço do Andrade, pediu-lhe segredo, dizendo que ele, pela
sua parte, era discreto. Parece que ia sair; Andrade deteve-o, e propôs-lhe um
negócio; propôs-lhe ganhar vinte mil-réis. —"Pronto!" — "Dou-lhe vinte mil-réis,
se você for comigo à casa dessa moça e disser em presença dela que é ela
mesma".
— Oh!
— Não defendo o Andrade; a coisa não era bonita; mas a paixão, nesse caso, cega
os melhores homens. Andrade era digno, generoso, sincero; mas o golpe fora tão
profundo, e ele amava-a tanto, que não recuou diante de uma tal vingança.
— O outro aceitou?
— Hesitou um pouco, estou que por medo, não por dignidade, mas vinte mil-réis...
Pôs uma condição: não metê-lo em barulhos... Marocas estava na sala, quando o
Andrade entrou. Caminhou para a porta, na intenção de o abraçar; mas o Andrade
advertiu-a, com o gesto, que trazia alguém. Depois, fitando-a muito, fez entrar o
Leandro; Marocas empalideceu. — "É esta senhora?" perguntou ele. — "Sim,
senhor", murmurou o Leandro com voz sumida, porque há ações ainda mais
ignóbeis do que o próprio homem que as comete. Andrade abriu a carteira com
grande afetação, tirou uma nota de vinte mil-réis e deu-lha; e, com a mesma
afetação, ordenou-lhe que se retirasse. O Leandro saiu. A cena que se seguiu, foi
breve, mas dramática. Não a soube inteiramente, porque o próprio Andrade é que
me contou tudo, e, naturalmente, estava tão atordoado, que muita coisa lhe
escapou. Ela não confessou nada; mas estava fora de si, e, quando ele, depois de
lhe dizer as coisas mais duras do mundo, atirou-se para a porta, ela rojou-se-lhe
aos pés, agarrou-lhe as mãos, lacrimosa, desesperada, ameaçando matar-se; e
ficou atirada ao chão, no patamar da escada; ele desceu vertiginosamente e saiu.
— Na verdade, um sujeito reles, apanhado na rua; provavelmente eram hábitos
dela?
— Não.
— Não?
Ouça o resto. De noite seriam oito horas, o Andrade veio à minha casa, e
esperou por mim. Já me tinha procurado três vezes. Fiquei estupefato, mas como

duvidar, se ele tivera a precaução de levar a prova até à evidência? Não lhe conto
o que ouvi, os planos de vingança, as exclamações, os nomes que lhe chamou,
todo o estilo e todo o repertório dessas crises. Meu conselho foi que a deixasse;
que, afinal, vivesse para a mulher e a filha, a mulher tão boa, tão meiga... Ele
concordava, mas tornava ao furor. Do furor passou à dúvida; chegou a imaginar
que a Marocas, com o fim de o experimentar, inventara o artifício e pagara ao
Leandro para vir dizer-lhe aquilo; e a prova é que o Leandro, não querendo ele
saber quem era, teimou e lhe disse a casa e o número. E agarrado a esta
inverossimilhança, tentava fugir à realidade; mas a realidade vinha, — a palidez
de Marocas, a alegria sincera do Leandro, tudo o que lhe dizia que a aventura era
certa. Creio até que ele arrependia-se de ter ido tão longe. Quanto a mim,
cogitava na aventura, sem atinar com a explicação. Tão modesta! maneiras tão
acanhadas!
— Há uma frase de teatro que pode explicar a aventura, uma frase de Augier,
creio eu: "a nostalgia da lama".
— Acho que não; mas vá ouvindo. Às dez horas apareceu-nos em casa uma criada
de Marocas, uma preta forra, muito amiga da ama. Andava aflita em procura do
Andrade, porque a Marocas, depois de chorar muito, trancada no quarto, saiu de
casa sem jantar, e não voltara mais. Contive o Andrade, cujo primeiro gesto foi
para sair logo. A preta pedia-nos por tudo, que fôssemos descobrir a ama. "Não é
costume dela sair?" perguntou o Andrade com sarcasmo. Mas a preta disse que
não era costume. "Está ouvindo?" bradou ele para mim. Era a esperança que de
novo empolgara o coração do pobre-diabo. "E ontem?..." disse eu. A preta
respondeu que na véspera sim; mas não lhe perguntei mais nada, tive compaixão
do Andrade, cuja aflição crescia, e cujo pundonor ia cedendo diante do perigo.
Saímos em busca da Marocas; fomos a todas as casas em que era possível
encontrá-la; fomos à polícia; mas a noite passou-se sem outro resultado. De
manhã voltamos à polícia. O chefe ou um dos delegados, não me lembra, era
amigo do Andrade, que lhe contou da aventura a parte conveniente; aliás a
ligação do Andrade e da Marocas era conhecida de todos os seus amigos.
Pesquisou-se tudo; nenhum desastre se dera durante a noite; as barcas da Praia
Grande não viram cair ao mar nenhum passageiro; as casas de armas não
venderam nenhuma; as boticas nenhum veneno. A polícia pôs em campo todos os
seus recursos, e nada. Não lhe digo o estado de aflição em que o pobre Andrade
viveu durante essas longas horas, porque todo o dia se passou em pesquisas
inúteis. Não era só a dor de a perder; era também o remorso, a dúvida, ao menos,
da consciência, em presença de um possível desastre, que parecia justificar a
moça. Ele perguntava-me, a cada passo se não era natural fazer o que fez, no
delírio da indignação, se eu não faria a mesma coisa. Mas depois tornava a afirmar
a aventura, e provava-me que era verdadeira, com o mesmo ardor com que na
véspera tentara provar que era falsa; o que ele queria era acomodar a realidade
ao sentimento da ocasião.
— Mas, enfim, descobriram a Marocas?
— Estávamos comendo alguma coisa, em um hotel, eram perto de oito horas,
quando recebemos notícia de um vestígio: — um cocheiro que levara na véspera
uma senhora para o Jardim Botânico, onde ela entrou em uma hospedaria, e ficou.
Nem acabamos o jantar; fomos no mesmo carro ao Jardim Botânico. O dono da
hospedaria confirmou a versão; acrescentando que a pessoa se recolhera a um
quarto, não comera nada desde que chegou na véspera; apenas pediu uma xícara
de café; parecia profundamente abatida. Encaminhamo-nos para o quarto, o dono
da hospedaria bateu à porta; ela respondeu com voz fraca, e abriu. O Andrade
nem me deu tempo de preparar nada; empurrou-me, e caíram nos braços um do
outro. Marocas chorou muito e perdeu os sentidos.
— Tudo se explicou?

— Coisa nenhuma. Nenhum deles tornou ao assunto; livres de um naufrágio, não
quiseram saber nada da tempestade que os meteu a pique. A reconciliação fez-se
depressa. O Andrade comprou-lhe, meses depois, uma casinha em Catumbi; a
Marocas deu-lhe um filho, que morreu de dois anos. Quando ele seguiu para o
Norte, em comissão do governo, a afeição era ainda a mesma, posto que os
primeiros ardores não tivessem já a mesma intensidade. Não obstante, ela quis ir
também; fui eu que a obriguei a ficar. O Andrade contava tornar ao fim de pouco
tempo, mas, como lhe disse, morreu na província. A Marocas sentiu
profundamente a morte, pôs luto, e considerou-se viúva; sei que nos três
primeiros anos, ouvia sempre uma missa no dia aniversário. Há dez anos perdi-a
de vista. Que lhe parece tudo isto?
— Realmente, há ocorrências bem singulares, se o senhor não abusou da minha
ingenuidade de rapaz para imaginar um romance...
— Não inventei nada; é a realidade pura.
— Pois, senhor, é curioso. No meio de uma paixão tão ardente, tão sincera... Eu
ainda estou na minha; acho que foi a nostalgia da lama.
— Não: nunca a Marocas desceu até os Leandros.
— Então por que desceria naquela noite?
— Era um homem que ela supunha separado, por um abismo, de todas as suas
relações pessoais; daí a confiança. Mas o acaso, que é um deus e um diabo ao
mesmo tempo. . . Enfim, coisas!
GALERIA PÓSTUMA
ÍNDICE
CAPÍTULO PRIMEIRO
CAPÍTULO II
CAPÍTULO PRIMEIRONão, não se descreve a consternação que produziu em todo o Engenho Velho, e
particularmente no coração dos amigos, a morte de Joaquim Fidélis. Nada mais
inesperado. Era robusto, tinha saúde de ferro, e ainda na véspera fora a um baile,
onde todos o viram conversador e alegre. Chegou a dançar, a pedido de uma
senhora sexagenária, viúva de um amigo dele, que lhe tomou do braço, e lhe
disse:

— Venha cá, venha cá, vamos mostrar a estes criançolas como é que os velhos
são capazes de desbancar tudo.
Joaquim Fidélis protestou sorrindo; mas obedeceu e dançou. Eram duas horas
quando saiu, embrulhando os seus sessenta anos numa capa grossa, — estávamos
em junho de 1879 — metendo a calva na carapuça, acendendo um charuto e
entrando lepidamente no carro.
No carro é possível que cochilasse; mas, em casa, malgrado a hora e o grande
peso das pálpebras, ainda foi à secretária, abriu uma gaveta, tirou um de muitos
folhetos manuscritos, — e escreveu durante três ou quatro minutos umas dez ou
onze linhas. As últimas palavras eram estas: "Em suma, baile chinfrim; uma velha
gaiteira obrigou-me a dançar uma quadrilha; à porta um crioulo pediu-me as
festas. Chinfrim!" Guardou o folheto, despiu-se meteu-se na cama, dormiu e
morreu.
Sim, a notícia consternou a todo o bairro. Tão amado que ele era, com os modos
bonitos que tinha, sabendo conversar com toda a gente, instruído com os
instruídos, ignorante com os ignorantes, rapaz com os rapazes, e até moça com as
moças. E depois, muito serviçal, pronto a escrever cartas, a falar a amigos, a
concertar brigas, a emprestar dinheiro. Em casa dele reuniam-se à noite alguns
íntimos da vizinhança, e às vezes de outros bairros; jogavam o voltarete ou o
whist, falavam de política. Joaquim Fidélis tinha sido deputado até à dissolução da
Câmara pelo Marquês de Olinda, em 1863. Não conseguindo ser reeleito,
abandonou a vida pública. Era conservador, nome que a muito custo admitiu, por
lhe parecer galicismo político. SAQUAREMA é o que ele gostava de ser chamado.
Mas abriu mão de tudo; parece até que nos últimos tempos desligou-se do próprio
partido, e afinal da mesma opinião. Há razões para crer que, de certa data em
diante, foi um profundo cético e nada mais.
Era rico e letrado. Formara-se em direito no ano de 1842. Agora não fazia nada e
lia muito. Não tinha mulheres em casa. Viúvo desde a primeira invasão da febre
amarela, recusou contrair segundas núpcias, com grande mágoa de três ou quatro
damas, que nutriram essa esperança durante algum tempo. Uma delas chegou a
prorrogar perfidamente os seus belos cachos de 1845 até meados do segundo
neto; outra, mais moça e também viúva, pensou retê-lo com algumas concessões,
tão generosas quão irreparáveis. "Minha querida Leocádia, dizia ele nas ocasiões
em que ela insinuava a solução conjugal, por que não continuaremos assim
mesmo? O mistério é o encanto da vida". Morava com um sobrinho, o Benjamim,
filho de uma irmã, órfão desde tenra idade. Joaquim Fidélis deu-lhe educação e fê-
lo estudar, até obter diploma de bacharel em ciências jurídicas, no ano de 1877.
Benjamim ficou atordoado. Não podia acabar de crer na morte do tio. Correu ao
quarto, achou o cadáver na cama, frio, olhos abertos, e um leve arregaço irônico
ao canto esquerdo da boca. Chorou muito e muito. Não perdia um simples
parente, mas um pai, um pai terno, dedicado, um coração único. Benjamim
enxugou, enfim, as lágrimas; e, porque lhe fizesse mal ver os olhos abertos do
morto, e principalmente o lábio arregaçado, consertou-lhe ambas as coisas. A
morte recebeu assim a expressão trágica, mas a originalidade da máscara perdeuse.
— Não me digam isto! bradava daí a pouco um dos vizinhos, Diogo Vilares, ao
receber notícia do caso.
Diogo Vilares era um dos cinco principais familiares de Joaquim Fidélis. Devia-lhe o
emprego que exercia desde 1857. Veio ele; vieram os outros quatro, logo depois,
um a um, estupefatos, incrédulos. Primeiro chegou o Elias Xavier, que alcançara
por intermédio do finado, segundo se dizia, uma comenda; depois entrou o João
Brás, deputado que foi, no regímen das suplências, eleito com o influxo do
Joaquim Fidélis. Vieram, enfim, o Fragoso e o Galdino, que lhe não deviam

diplomas, comendas nem empregos, mas outros favores. Ao Galdino adiantou ele
alguns poucos capitais, e ao Fragoso arranjou-lhe um bom casamento... E morto!
morto para todo sempre! De redor da cama, fitavam o rosto sereno e recordavam
a última festa, a do outro domingo, tão íntima, tão expansiva! E, mais perto ainda,
a noite da antevéspera, em que o voltarete do costume foi até às onze horas.
— Amanhã não venham, disse-lhes o Joaquim Fidélis; vou ao baile do Carvalhinho.
— E depois?...
— Depois de amanhã, cá estou.
E, à saída, deu-lhes ainda um maço de excelentes charutos, segundo fazia às
vezes, com um acréscimo de doces secos para os pequenos, e duas ou três
pilhérias finas... Tudo esvaído! tudo disperso! tudo acabado!
Ao enterro acudiram muitas pessoas gradas, dois senadores, um ex-ministro,
titulares, capitalistas, advogados, comerciantes, médicos; mas as argolas do
caixão foram seguras pelos cinco familiares e o Benjamim. Nenhum deles quis
ceder a ninguém esse último obséquio, considerando que era um dever cordial e
intransferível. O adeus do cemitério foi proferido pelo João Brás, um adeus
tocante, com algum excesso de estilo para um caso tão urgente, mas, enfim,
desculpável. Deitada a pá de terra, cada um se foi arredando da cova, menos os
seis, que assistiram ao trabalho posterior e indiferente dos coveiros. Não
arredaram pé antes de ver cheia a cova até acima, e depositadas sobre ela as
coroas fúnebres.
CAPÍTULO IIA missa do sétimo dia reuniu-os na igreja. Acabada a missa, os cinco amigos
acompanharam à casa o sobrinho do morto. Benjamim convidou-os a almoçar.
— Espero que os amigos do tio Joaquim serão também meus amigos, disse ele.
Entraram, almoçaram. Ao almoço falaram do morto; cada um contou uma
anedota, um dito; eram unânimes no louvor e nas saudades. No fim do almoço,
como tivessem pedido uma lembrança do finado, passaram ao gabinete, e
escolheram à vontade, este uma caneta velha, aquele uma caixa de óculos, um
folheto, um retalho qualquer íntimo. Benjamim sentia-se consolado. Comunicoulhes que pretendia conservar o gabinete tal qual estava. Nem a secretária abrira
ainda. Abriu-a então, e, com eles, inventariou o conteúdo de algumas gavetas.
Cartas, papéis soltos, programas de concertos,
menus de grandes jantares, tudo
ali estava de mistura e confusão. Entre outras coisas acharam alguns cadernos
manuscritos, numerados e datados.
— Um diário! disse Benjamim.
Com efeito, era um diário das impressões do finado, espécie de memórias
secretas, confidências do homem a si mesmo. Grande foi a comoção dos amigos;
lê-lo era ainda conversá-lo. Tão reto caráter! tão discreto espírito! Benjamim
começou a leitura; mas a voz embargou-se-lhe depressa, e João Brás continuou-a.
O interesse do escrito adormeceu a dor do óbito. Era um livro digno do prelo.
Muita observação política e social, muita reflexão filosófica, anedotas de homens
públicos, do Feijó, do Vasconcelos, outras puramente galantes, nomes de
senhoras, o da Leocádia, entre outros; um repertório de fatos e comentários. Cada
um admirava o talento do finado, as graças do estilo, o interesse da matéria. Uns
opinavam pela impressão tipográfica; Benjamim dizia que sim, com a condição de

excluir alguma coisa, ou inconveniente ou demasiado particular. E continuavam a
ler, saltando pedaços e páginas, até que bateu meio-dia. Levantaram-se todos;
Diogo Vilares ia já chegar à repartição fora de horas; João Brás e Elias tinham
onde estar juntos. Galdino seguia para a loja. O Fragoso precisava mudar a roupa
preta, e acompanhar a mulher à Rua do Ouvidor. Concordaram em nova reunião
para prosseguir na leitura. Certas particularidades tinham-lhes dado uma
comichão de escândalo, e as comichões coçam-se: é o que eles queriam fazer,
lendo.
— Até amanhã, disseram.
— Até amanhã.
Uma vez só, Benjamim continuou a ler o manuscrito. Entre outras coisas, admirou
o retrato da viúva Leocádia, obra-prima de paciência e semelhança, embora a data
coincidisse com a dos amores. Era prova de uma rara isenção de espírito. De
resto, o finado era exímio nos retratos. Desde 1873 ou 1874, os cadernos vinham
cheios deles, uns de vivos, outros de mortos, alguns de homens públicos, Paula
Sousa, Aureliano, Olinda, etc. Eram curtos e substanciais, às vezes três ou quatro
rasgos firmes, com tal fidelidade e perfeição, que a figura parecia fotografada.
Benjamim ia lendo; de repente deu com o Diogo Vilares. E leu estas poucas linhas:
DIOGO VILARES. — Tenho-me referido muitas vezes a este amigo, e
fá-lo-ei algumas outras mais, se ele me não matar de tédio, coisa em
que o reputo profissional. Pediu-me há anos que lhe arranjasse um
emprego, arranjei-lho. Não me avisou da moeda em que me pagaria.
Que singular gratidão! Chegou ao excesso de compor um soneto e
publicá-lo. Falava-me do obséquio a cada passo, dava-me grandes
nomes; enfim, acabou. Mais tarde relacionamo-nos intimamente.
Conheci-o então ainda melhor.
C'est le genre ennuyeux. Não é mau
parceiro de voltarete. Dizem-me que não deve nada a ninguém. Bom
pai de família. Estúpido e crédulo. Com intervalo de quatro dias, já lhe
ouvi dizer de um ministério que era excelente e detestável: —
diferença dos interlocutores. Ri muito e mal. Toda a gente, quando o
vê pela primeira vez, começa por supô-lo um varão grave; no
segundo dia dá-lhe piparotes. A razão é a figura, ou, mais
particularmente, as bochechas, que lhe emprestam um certo ar
superior.
A primeira sensação do Benjamim foi a do perigo evitado. Se o Diogo Vilares
estivesse ali? Releu o retrato e mal podia crer; mas não havia negá-lo, era o
próprio nome do Diogo Vilares, era a mesma letra do tio. E não era o único dos
familiares; folheou o manuscrito e deu com o Elias:
ELIAS XAVIER. — Este Elias é um espírito subalterno, destinado a
servir alguém, e a servir com desvanecimento, como os cocheiros de
casa elegante. Vulgarmente trata as minhas visitas íntimas com
alguma arrogância e desdém: política de lacaio ambicioso. Desde as
primeiras semanas, compreendi que ele queria fazer-se meu privado;
e não menos compreendi que, no dia que realmente o fosse, punha os
outros no meio da rua. Há ocasiões em que me chama a um vão da
janela para falar-me secretamente do sol e da chuva. O fim claro é
incutir nos outros a suspeita de que há entre nós coisas particulares, e
alcança isso mesmo, porque todos lhe rasgam muitas cortesias. É
inteligente, risonho e fino. Conversa muito bem. Não conheço
compreensão mais rápida. Não é poltrão nem maldizente. Só fala mal
de alguém, por interesse; faltando-lhe interesse, cala-se; e a
maledicência legítima é gratuita. Dedicado e insinuante. Não tem
idéias, é verdade; mas há esta grande diferença entre ele e o Diogo
Vilares: — o Diogo repete pronta e boçalmente as que ouve, ao passo

que o Elias sabe fazê-las suas e plantá-las oportunamente na
conversação. Um caso de 1865 caracteriza bem a astúcia deste
homem. Tendo dado alguns libertos para a guerra do Paraguai, ia
receber uma comenda. Não precisava de mim; mas veio pedir a
minha intercessão, duas ou três vezes, com um ar consternado e
súplice. Falei ao ministro, que me disse: — "O Elias já sabe que o
decreto está lavrado; falta só a assinatura do imperador". Compreendi
então que era um estratagema para poder confessar-me essa
obrigação. Bom parceiro de voltarete; um pouco brigão, mas
entendido.
— Ora o tio Joaquim! exclamou Benjamim levantando-se. E depois de alguns
instantes, reflexionou consigo: — “estou lendo um coração, livro inédito. Conhecia
a edição pública, revista a expurgada. Este é o texto primitivo e interior, a lição
exata e autêntica. Mas quem imaginaria nunca... Ora o tio Joaquim!
E, tornando a sentar-se, releu também o retrato do Elias, com vagar, meditando
as feições. Posto lhe faltasse observação, para avaliar a verdade do escrito, achou
que em muitas partes, ao menos, o retrato era semelhante. Cotejava essas notas
iconográficas, tão cruas, tão secas, com as maneiras cordiais e graciosas do tio, e
sentia-se tomado de um certo terror e mal-estar. Ele, por exemplo, que teria dito
dele o finado? Com esta idéia, folheou ainda o manuscrito, passou por alto
algumas damas, alguns homens públicos, deu com o Fragoso, — um esboço curto
e curtíssimo, — logo depois o Galdino, e quatro páginas adiante o João Brás.
Justamente o primeiro levara dele uma caneta, pouco antes, talvez a mesma com
que o finado o retratara. Curto era o esboço, e dizia assim:
FRAGOSO. — Honesto, maneiras açucaradas e bonito. Não me custou
casá-lo; vive muito bem com a mulher. Sei que me tem uma
extraordinária adoração, — quase tanta como a si mesmo.
Conversação vulgar, polida e chocha.
GALDINO MADEIRA. — O melhor coração do mundo e um caráter sem
mácula; mas as qualidades do espírito destroem as outras. Empresteilhe algum dinheiro, por motivo da família, e porque me não fazia
falta. Há no cérebro dele um certo furo, por onde o espírito escorrega
e cai no vácuo. Não reflete três minutos seguidos. Vive principalmente
de imagens, de frases translatas. Os "dentes da calúnia" e outras
expressões, surradas como colchões de hospedaria, são os seus
encantos. Mortifica-se facilmente no jogo, e, uma vez mortificado, faz
timbre em perder, e em mostrar que é de propósito. Não despede os
maus caixeiros. Se não tivesse guarda-livros, é duvidoso que somasse
os quebrados. Um subdelegado, meu amigo, que lhe deveu algum
dinheiro, durante dois anos, dizia-me com muita graça, que o Galdino
quando o via na rua, em vez de lhe pedir a dívida, pedia-lhe notícias
do ministério.
JOÃO BRÁS. — Nem tolo nem bronco. Muito atencioso, embora sem
maneiras. Não pode ver passar um carro de ministro; fica pálido e
vira os olhos. Creio que é ambicioso; mas na idade em que está, sem
carreira, a ambição vai-se-lhe convertendo em inveja. Durante os dois
anos em que serviu de deputado, desempenhou honradamente o
cargo: trabalhou muito, e fez alguns discursos bons, não brilhantes,
mas sólidos, cheios de fatos e refletidos. A prova de que lhe ficou um
resíduo de ambição, é o ardor com que anda à cata de alguns cargos
honoríficos ou preeminentes; há alguns meses consentiu em ser juiz
de uma irmandade de São José, e segundo me dizem, desempenha o
cargo com um zelo exemplar. Creio que é ateu, mas não afirmo. Ri
pouco e discretamente. A vida é pura e severa, mas o caráter tem
uma ou duas cordas fraudulentas, a que só faltou a mão do artista;

nas coisas mínimas, mente com facilidade.
Benjamim, estupefato, deu enfim consigo mesmo.
Este meu sobrinho, dizia o manuscrito, tem vinte e quatro anos de
idade, um projeto de reforma judiciária, muito cabelo, e ama-me. Eu
não o amo menos. Discreto, leal e bom, — bom até à credulidade. Tão
firme nas afeições como versátil nos pareceres. Superficial, amigo de
novidades, amando no direito o vocabulário e as fórmulas.
Quis reler, e não pôde; essas poucas linhas davam-lhe a sensação de um espelho.
Levantou-se, foi à janela, mirou a chácara e tornou dentro para contemplar outra
vez as suas feições. Contemplou-as; eram poucas, falhas, mas não pareciam
caluniosas. Se ali estivesse um público, é provável que a mortificação do rapaz
fosse menor, porque a necessidade de dissipar a impressão moral dos outros darlhe-ia a força necessária para reagir contra o escrito; mas, a sós, consigo, teve de
suportá-lo sem contraste. Então considerou se o tio não teria composto essas
páginas nas horas de mau humor; comparou-as a outras em que a frase era
menos áspera, mas não cogitou se ali a brandura vinha ou não de molde.
Para confirmar a conjetura, recordou as maneiras usuais do finado, as horas de
intimidade e riso, a sós com ele, ou de palestra com os demais familiares. Evocou
a figura do tio, com o olhar espirituoso e meigo, e a pilhéria grave; em lugar
dessa, tão cândida e simpática, a que lhe apareceu foi a do tio morto, estendido
na cama, com os olhos abertos, o lábio arregaçado. Sacudiu-a do espírito, mas a
imagem ficou. Não podendo rejeitá-la, Benjamim tentou mentalmente fechar-lhe
os olhos e consertar-lhe a boca; mas não depressa o fazia, como a pálpebra
tornava a levantar-se, a ironia arregaçava o beiço. Já não era o homem, era o
autor do manuscrito.
Benjamim jantou mal e dormiu mal. No dia seguinte, à tarde, apresentaram-se os
cinco familiares para ouvir a leitura. Chegaram sôfregos, ansiosos; fizeram-lhe
muitas perguntas; pediram-lhe com instância para ver o manuscrito. Mas
Benjamim tergiversava, dizia isto e aquilo, inventava pretextos; por mal de
pecados, apareceu-lhe na sala, por trás deles, a eterna boca do defunto, e esta
circunstância fê-lo ainda mais acanhado. Chegou a mostrar-se frio, para ficar só, e
ver se com eles desaparecia a visão. Assim se passaram trinta a quarenta
minutos. Os cinco olharam enfim uns para os outros, e deliberaram sair;
despediram-se cerimoniosamente, e foram conversando, para suas casas:
— Que diferença do tio! que abismo! a herança enfunou-o! deixá-lo! Ah! Joaquim
Fidélis! Ah! Joaquim Fidélis!
CAPÍTULO DOS CHAPÉUSGÉRONTE
Dans quel chapitre, s'il vous plaît?
SGANARELLE
Dans le chapitre des chapeaux.
MOLIÈRE.
Musa, canta o despeito de Mariana, esposa do bacharel Conrado Seabra, naquela
manhã de abril de 1879. Qual a causa de tamanho alvoroço? Um simples chapéu,
leve, não deselegante, um chapéu baixo. Conrado, advogado, com escritório na
Rua da Quitanda, trazia-o todos os dias à cidade, ia com ele às audiências; só não
o levava às recepções, teatro lírico, enterros e visitas de cerimônia. No mais era
constante, e isto desde cinco ou seis anos, que tantos eram os do casamento. Ora,
naquela singular manhã de abril, acabado o almoço, Conrado começou a enrolar

um cigarro, e Mariana anunciou sorrindo que ia pedir-lhe uma coisa.
— Que é, meu anjo?
— Você é capaz de fazer-me um sacrifício?
— Dez, vinte...
— Pois então não vá mais à cidade com aquele chapéu.
— Por quê? é feio?
— Não digo que seja feio; mas é cá para fora, para andar na vizinhança, à tarde
ou à noite, mas na cidade, um advogado, não me parece que...
— Que tolice, iaiá!
— Pois sim, mas faz-me este favor, faz?
Conrado riscou um fósforo, acendeu o cigarro, e fez-lhe um gesto de gracejo, para
desconversar; mas a mulher teimou. A teima, a princípio frouxa e súplice, tornouse logo imperiosa e áspera. Conrado ficou espantado. Conhecia a mulher; era, de
ordinário, uma criatura passiva, meiga, de uma plasticidade de encomenda, capaz
de usar com a mesma divina indiferença tanto um diadema régio como uma touca.
A prova é que, tendo tido uma vida de andarilha nos últimos dois anos de solteira,
tão depressa casou como se afez aos hábitos quietos. Saía às vezes, e a maior
parte delas por instâncias do próprio consorte; mas só estava comodamente em
casa. Móveis, cortinas, ornatos supriam-lhe os filhos; tinha-lhes um amor de mãe;
e tal era a concordância da pessoa com o meio, que ela saboreava os trastes na
posição ocupada, as cortinas com as dobras do costume, e assim o resto. Uma das
três janelas, por exemplo, que davam para a rua vivia sempre meia aberta; nunca
era outra. Nem o gabinete do marido escapava às exigências monótonas da
mulher, que mantinha sem alteração a desordem dos livros, e até chegava a
restaurá-la. Os hábitos mentais seguiam a mesma uniformidade. Mariana dispunha
de mui poucas noções, e nunca lera senão os mesmos livros: — a
Moreninha de
Macedo, sete vezes;
Ivanhoé e o Pirata de Walter Scott, dez vezes; o Mot de
l'Énigme
, de Madame Craven, onze vezes.
Isto posto, como explicar o caso do chapéu? Na véspera, à noite, enquanto o
marido fora a uma sessão do Instituto da Ordem dos Advogados, o pai de Mariana
veio à casa deles. Era um bom velho, magro, pausado, ex-funcionário público,
ralado de saudades do tempo em que os empregados iam de casaca para as suas
repartições. Casaca era o que ele, ainda agora, levava aos enterros, não pela
razão que o leitor suspeita, a solenidade da morte ou a gravidade da despedida
última, mas por esta menos filosófica, por ser um costume antigo. Não dava outra,
nem da casaca nos enterros, nem do jantar às duas horas, nem de vinte usos
mais. E tão aferrado aos hábitos, que no aniversário do casamento da filha, ia
para lá às seis horas da tarde, jantado e digerido, via comer, e no fim aceitava um
pouco de doce, um cálice de vinho e café. Tal era o sogro de Conrado; como supor
que ele aprovasse o chapéu baixo do genro? Suportava-o calado, em atenção às
qualidades da pessoa; nada mais. Acontecera-lhe, porém, naquele dia, vê-lo de
relance na rua, de palestra com outros chapéus altos de homens públicos, e nunca
lhe pareceu tão torpe. De noite, encontrando a filha sozinha, abriu-lhe o coração;
pintou-lhe o chapéu baixo como a abominação das abominações, e instou com ela
para que o fizesse desterrar.
Conrado ignorava essa circunstância, origem do pedido. Conhecendo a docilidade
da mulher, não entendeu a resistência; e, porque era autoritário, e voluntarioso, a
teima veio irritá-lo profundamente. Conteve-se ainda assim; preferiu mofar do
caso; falou-lhe com tal ironia e desdém, que a pobre dama sentiu-se humilhada.

Mariana quis levantar-se duas vezes; ele obrigou-a a ficar, a primeira pegando-lhe
levemente no pulso, a segunda subjugando-a com o olhar. E dizia sorrindo:
— Olhe, iaiá, tenho uma razão filosófica para não fazer o que você me pede.
Nunca lhe disse isto; mas já agora confio-lhe tudo.
Mariana mordia o lábio, sem dizer mais nada; pegou de uma faca, e entrou a bater
com ela devagarinho para fazer alguma coisa; mas, nem isso mesmo consentiu o
marido, que lhe tirou a faca delicadamente, e continuou:
— A escolha do chapéu não é uma ação indiferente, como você pode supor; é
regida por um princípio metafísico. Não cuide que quem compra um chapéu exerce
uma ação voluntária e livre; a verdade é que obedece a um determinismo
obscuro. A ilusão da liberdade existe arraigada nos compradores, e é mantida
pelos chapeleiros que, ao verem um freguês ensaiar trinta ou quarenta chapéus, e
sair sem comprar nenhum, imaginam que ele está procurando livremente uma
combinação elegante. O princípio metafísico é este: — o chapéu é a integração do
homem, um prolongamento da cabeça, um complemento decretado
ab eternoninguém o pode trocar sem mutilação. É uma questão profunda que ainda não
ocorreu a ninguém. Os sábios têm estudado tudo desde o astro até o verme, ou,
para exemplificar bibliograficamente, desde Laplace... Você nunca leu Laplace?
desde Laplace e a
Mecânica Celeste até Darwin e o seu curioso livro das Minhocas,
e, entretanto, não se lembraram ainda de parar diante do chapéu e estudá-lo por
todos os lados. Ninguém advertiu que há uma metafísica do chapéu. Talvez eu
escreva uma memória a este respeito. São nove horas e três quartos; não tenho
tempo de dizer mais nada; mas você reflita consigo, e verá... Quem sabe? pode
ser até que nem mesmo o chapéu seja complemento do homem, mas o homem do
chapéu...
Mariana venceu-se afinal, e deixou a mesa. Não entendera nada daquela
nomenclatura áspera nem da singular teoria; mas sentiu que era um sarcasmo, e,
dentro de si, chorava de vergonha. O marido subiu para vestir-se; desceu daí a
alguns minutos, e parou diante dela com o famoso chapéu na cabeça. Mariana
achou-lho, na verdade, torpe, ordinário, vulgar, nada sério. Conrado despediu-se
cerimoniosamente e saiu.
A irritação da dama tinha afrouxado muito; mas, o sentimento de humilhação
subsistia. Mariana não chorou, não clamou, como supunha que ia fazer; mas,
consigo mesma, recordou a simplicidade do pedido, os sarcasmos de Conrado, e,
posto reconhecesse que fora um pouco exigente, não achava justificação para tais
excessos. Ia de um lado para outro, sem poder parar; foi à sala de visitas, chegou
à janela meia aberta, viu ainda o marido, na rua, à espera do
bond, de costas para
casa, com o eterno e torpíssimo chapéu na cabeça. Mariana sentiu-se tomada de
ódio contra essa peça ridícula; não compreendia como pudera suportá-la por
tantos anos. E relembrava os anos, pensava na docilidade dos seus modos, na
aquiescência a todas as vontades e caprichos do marido, e perguntava a si mesma
se não seria essa justamente a causa do excesso daquela manhã. Chamava-se
tola, moleirona; se tivesse feito como tantas outras, a Clara e a Sofia, por
exemplo, que tratavam os maridos como eles deviam ser tratados, não lhe
aconteceria nem metade, nem uma sombra do que lhe aconteceu. De reflexão em
reflexão, chegou à idéia de sair. Vestiu-se, e foi à casa da Sofia, uma antiga
companheira de colégio, com o fim de espairecer, não de lhe contar nada.
Sofia tinha trinta anos, mais dois que Mariana. Era alta, forte, muito senhora de si.
Recebeu a amiga com as festas do costume; e, posto que esta lhe não dissesse
nada, adivinhou que trazia um desgosto e grande. Adeus, planos de Mariana! Daí
a vinte minutos contava-lhe tudo. Sofia riu dela, sacudiu os ombros; disse-lhe que
a culpa não era do marido.
— Bem sei, é minha, concordava Mariana.

— Não seja tola, iaiá! Você tem sido muito mole com ele. Mas seja forte uma vez;
não faça caso; não lhe fale tão cedo; e se ele vier fazer as pazes, diga-lhe que
mude primeiro de chapéu.
— Veja você, uma coisa de nada...
— No fim de contas, ele tem muita razão; tanta como outros. Olhe a pamonha da
Beatriz; não foi agora para a roça, só porque o marido implicou com um inglês que
costumava passar a cavalo de tarde? Coitado do inglês! Naturalmente nem deu
pela falta. A gente pode viver bem com seu marido, respeitando-se, não indo
contra os desejos um do outro, sem pirraças, nem despotismo. Olhe; eu cá vivo
muito bem com o meu Ricardo; temos muita harmonia. Não lhe peço uma coisa
que ele me não faça logo; mesmo quando não tem vontade nenhuma, basta que
eu feche a cara, obedece logo. Não era ele que teimaria assim por causa de um
chapéu! Tinha que ver! Pois não! Onde iria ele parar! Mudava de chapéu, quer
quisesse, quer não.
Mariana ouvia com inveja essa bela definição do sossego conjugal. A rebelião de
Eva embocava nela os seus clarins; e o contato da amiga dava-lhe um prurido de
independência e vontade. Para completar a situação, esta Sofia não era só muito
senhora de si, mas também dos outros; tinha olhos para todos os ingleses, a
cavalo ou a pé. Honesta, mas namoradeira; o termo é cru, e não há tempo de
compor outro mais brando. Namorava a torto e a direito, por uma necessidade
natural, um costume de solteira. Era o troco miúdo do amor, que ela distribuía a
todos os pobres que lhe batiam à porta: — um níquel a um, outro a outro; nunca
uma nota de cinco mil-réis, menos ainda uma apólice. Ora este sentimento
caritativo induziu-a a propor à amiga que fossem passear, ver as lojas, contemplar
a vista de outros chapéus bonitos e graves. Mariana aceitou; um certo demônio
soprava nela as fúrias da vingança. Demais, a amiga tinha o dom de fascinar,
virtude de Bonaparte, e não lhe deu tempo de refletir. Pois sim, iria, estava
cansada de viver cativa. Também queria gozar um pouco, etc., etc.
Enquanto Sofia foi vestir-se, Mariana deixou-se estar na sala, irrequieta e contente
consigo mesma. Planeou a vida de toda aquela semana, marcando os dias e horas
de cada coisa, como numa viagem oficial. Levantava-se, sentava-se, ia à janela, à
espera da amiga.
— Sofia parece que morreu, dizia de quando em quando.
De uma das vezes que foi à janela, viu passar um rapaz a cavalo. Não era inglês,
mas lembrou-lhe a outra, que o marido levou para a roça, desconfiado de um
inglês, e sentiu crescer-lhe o ódio contra a raça masculina — com exceção, talvez,
dos rapazes a cavalo. Na verdade, aquele era afetado demais; esticava a perna no
estribo com evidente vaidade das botas, dobrava a mão na cintura, com um ar de
figurino. Mariana notou-lhe esses dois defeitos; mas achou que o chapéu
resgatava-os; não que fosse um chapéu alto; era baixo, mas próprio do aparelho
eqüestre. Não cobria a cabeça de um advogado indo gravemente para o escritório,
mas a de um homem que espairecia ou matava o tempo.
Os tacões de Sofia desceram a escada, compassadamente. Pronta! disse ela daí a
pouco, ao entrar na sala. Realmente, estava bonita. Já sabemos que era alta. O
chapéu aumentava-lhe o ar senhoril; e um diabo de vestido de seda preta,
arredondando-lhe as formas do busto, fazia-a ainda mais vistosa. Ao pé dela, a
figura de Mariana desaparecia um pouco. Era preciso atentar primeiro nesta para
ver que possuía feições mui graciosas, uns olhos lindos, muita e natural elegância.
O pior é que a outra dominava desde logo; e onde houvesse pouco tempo de as
ver, tomava-o Sofia para si. Este reparo seria incompleto, se eu não acrescentasse
que Sofia tinha consciência da superioridade, e que apreciava por isso mesmo as
belezas do gênero Mariana, menos derramadas e aparentes. Se é um defeito, não

me compete emendá-lo.
— Onde vamos nós? perguntou Mariana.
— Que tolice! vamos passear à cidade... Agora me lembro, vou tirar o retrato;
depois vou ao dentista. Não; primeiro vamos ao dentista. Você não precisa de ir
ao dentista?
— Não.
— Nem tirar o retrato?
— Já tenho muitos. E para quê? para dá-lo "àquele senhor"?
Sofia compreendeu que o ressentimento da amiga persistia, e, durante o caminho,
tratou de lhe pôr um ou dois bagos mais de pimenta. Disse-lhe que, embora fosse
difícil, ainda era tempo de libertar-se. E ensinava-lhe um método para subtrair-se
à tirania. Não convinha ir logo de um salto, mas devagar, com segurança, de
maneira que ele desse por si quando ela lhe pusesse o pé no pescoço. Obra de
algumas semanas, três a quatro, não mais. Ela, Sofia, estava pronta a ajudá-la. E
repetia-lhe que não fosse mole, que não era escrava de ninguém, etc. Mariana ia
cantando dentro do coração a marselhesa do matrimônio.
Chegaram à Rua do Ouvidor. Era pouco mais do meio-dia. Muita gente, andando
ou parada, o movimento do costume. Mariana sentiu-se um pouco atordoada,
como sempre lhe acontecia. A uniformidade e a placidez, que eram o fundo do seu
caráter e de sua vida, receberam daquela agitação os repelões do costume. Ela
mal podia andar por entre os grupos, menos ainda sabia onde fixasse os olhos, tal
era a confusão das gentes, tal era a variedade das lojas. Conchegava-se muito à
amiga, e, sem reparar que tinham passado a casa do dentista, ia ansiosa de lá
entrar. Era um repouso; era alguma coisa melhor do que o tumulto.
— Esta Rua do Ouvidor! ia dizendo.
— Sim? respondia Sofia, voltando a cabeça para ela e os olhos para um rapaz que
estava na outra calçada.
Sofia, prática daqueles mares, transpunha, rasgava ou contornava as gentes com
muita perícia e tranqüilidade. A figura impunha; os que a conheciam gostavam de
vê-la outra vez; os que não a conheciam paravam ou voltavam-se para admirarlhe o garbo. E a boa senhora, cheia de caridade, derramava os olhos à direita e à
esquerda, sem grande escândalo, porque Mariana servia a coonestar os
movimentos. Nada dizia seguidamente; parece até que mal ouvia as respostas da
outra: mas falava de tudo, de outras damas, que iam ou vinham, de uma loja, de
um chapéu... Justamente os chapéus, — de senhora ou de homem, — abundavam
naquela primeira hora da Rua do Ouvidor.
— Olha este, dizia-lhe Sofia.
E Mariana acudia a vê-los, femininos ou masculinos, sem saber onde ficar, porque
os demônios dos chapéus sucediam-se como num caleidoscópio. Onde era o
dentista? perguntava ela à amiga. Sofia só à segunda vez lhe respondeu que
tinham passado a casa; mas já agora iriam até ao fim da rua; voltariam depois.
Voltaram finalmente.
— Uf! respirou Mariana entrando no corredor.
— Que é, meu Deus? Ora você! Parece da roça...
A sala do dentista tinha já algumas freguesas. Mariana não achou entre elas uma

só cara conhecida, e para fugir ao exame das pessoas estranhas, foi para a janela.
Da janela podia gozar a rua, sem atropelo. Recostou-se; Sofia veio ter com ela.
Alguns chapéus masculinos, parados, começaram a fitá-las; outros, passando,
faziam a mesma coisa. Mariana aborreceu-se da insistência; mas, notando que
fitavam principalmente a amiga, dissolveu-se-lhe o tédio numa espécie de inveja.
Sofia, entretanto, contava-lhe a história de alguns chapéus, — ou, mais
corretamente, as aventuras. Um deles merecia os pensamentos de Fulana; outro
andava derretido por Sicrana, e ela por ele, tanto que eram certos na Rua do
Ouvidor às quartas e sábados, entre duas e três horas. Mariana ouvia aturdida. Na
verdade, o chapéu era bonito, trazia uma linda gravata, e possuía um ar entre
elegante e pelintra, mas...
— Não juro, ouviu? replicava a outra, mas é o que se diz.
Mariana fitou pensativa o chapéu denunciado. Havia agora mais três, de igual
porte e graça, e provavelmente os quatro falavam delas, e falavam bem. Mariana
enrubesceu muito, voltou a cabeça para o outro lado, tornou logo à primeira
atitude, e afinal entrou. Entrando, viu na sala duas senhoras recém-chegadas, e
com elas um rapaz que se levantou prontamente e veio cumprimentá-la com
muita cerimônia. Era o seu primeiro namorado.
Este primeiro namorado devia ter agora trinta e três anos. Andara por fora, na
roça, na Europa, e afinal na presidência de uma província do sul. Era mediano de
estatura, pálido, barba inteira e rara, e muito apertado na roupa. Tinha na mão
um chapéu novo, alto, preto, grave, presidencial, administrativo, um chapéu
adequado à pessoa e às ambições. Mariana, entretanto, mal pôde vê-lo. Tão
confusa ficou, tão desorientada com a presença de um homem que conhecera em
especiais circunstâncias, e a quem não vira desde 1877, que não pôde reparar em
nada. Estendeu-lhe os dedos, parece mesmo que murmurou uma resposta
qualquer, e ia tornar à janela, quando a amiga saiu dali.
Sofia conhecia também o recém-chegado. Trocaram algumas palavras. Mariana,
impaciente, perguntou-lhe ao ouvido se não era melhor adiar os dentes para outro
dia; mas a amiga disse-lhe que não; negócio de meia hora a três quartos. Mariana
sentia-se opressa: a presença de um tal homem atava-lhe os sentidos, lançava-a
na luta e na confusão. Tudo culpa do marido. Se ele não teimasse e não caçoasse
com ela, ainda em cima, não aconteceria nada. E Mariana, pensando assim, jurava
tirar uma desforra. De memória contemplava a casa, tão sossegada, tão bonitinha,
onde podia estar agora, como de costume, sem os safanões da rua, sem a
dependência da amiga...
— Mariana, disse-lhe esta, o Dr. Viçoso teima que está muito magro. Você não
acha que está mais gordo do que no ano passado... Não se lembra dele no ano
passado?
Dr. Viçoso era o próprio namorado antigo, que palestrava com Sofia, olhando
muitas vezes para Mariana. Esta respondeu negativamente. Ele aproveitou a fresta
para puxá-la à conversação; disse que, na verdade, não a vira desde alguns anos.
E sublinhava o dito com um certo olhar triste e profundo. Depois abriu o estojo
dos assuntos, sacou para fora o teatro lírico. Que tal achavam a companhia? Na
opinião dele era excelente, menos o barítono; o barítono parecia-lhe cansado.
Sofia protestou contra o cansaço do barítono, mas ele insistiu, acrescentando que,
em Londres, onde o ouvira pela primeira vez, já lhe parecera a mesma coisa. As
damas, sim, senhora; tanto a soprano como a contralto eram de primeira ordem.
E falou das óperas, citava os trechos, elogiou a orquestra, principalmente nos
Huguenotes... Tinha visto Mariana na última noite, no quarto ou quinto camarote
da esquerda, não era verdade?
— Fomos, murmurou ela, acentuando bem o plural.

— No Cassino é que a não tenho visto, continuou ele.
— Está ficando um bicho do mato, acudiu Sofia rindo.
Viçoso gostara muito do último baile, e desfiou as suas recordações; Sofia fez o
mesmo às dela. As melhores
toilettes foram descritas por ambos com muita
particularidade; depois vieram as pessoas, os caracteres, dois ou três picos de
malícia; mas tão anódina, que não fez mal a ninguém. Mariana ouvia-os sem
interesse; duas ou três vezes chegou a levantar-se e ir à janela; mas os chapéus
eram tantos e tão curiosos, que ela voltava a sentar-se. Interiormente, disse
alguns nomes feios à amiga; não os ponho aqui por não serem necessários, e,
aliás, seria de mau gosto desvendar o que esta moça pôde pensar da outra
durante alguns minutos de irritação.
— E as corridas do Jockey Club? perguntou o ex-presidente.
Mariana continuava a abanar a cabeça. Não tinha ido às corridas naquele ano. Pois
perdera muito, a penúltima, principalmente; esteve animadíssima, e os cavalos
eram de primeira ordem. As de Epsom, que ele vira, quando esteve em Inglaterra,
não eram melhores do que a penúltima do Prado Fluminense. E Sofia dizia que
sim, que realmente a penúltima corrida honrava o Jockey Club. Confessou que
gostava muito; dava emoções fortes. A conversação descambou em dois concertos
daquela semana; depois tomou a barca, subiu a serra e foi a Petrópolis, onde dois
diplomatas lhe fizeram as despesas da estada. Como falassem da esposa de um
ministro, Sofia lembrou-se de ser agradável ao ex-presidente, declarando-lhe que
era preciso casar também porque em breve estaria no ministério. Viçoso teve um
estremeção de prazer, e sorriu, e protestou que não; depois, com os olhos em
Mariana, disse que provavelmente não casaria nunca... Mariana enrubesceu muito
e levantou-se.
— Você está com muita pressa, disse-lhe Sofia. Quantas são? continuou voltandose para Viçoso.
— Perto de três! exclamou ele.
Era tarde; tinha de ir à Câmara dos Deputados. Foi falar às duas senhoras, que
acompanhara, e que eram primas suas, e despediu-se; vinha despedir-se das
outras, mas Sofia declarou que sairia também. Já agora não esperava mais. A
verdade é que a idéia de ir à Câmara dos Deputados começara a faiscar-lhe na
cabeça.
— Vamos à Câmara? propôs ela à outra.
— Não, não, disse Mariana; não posso, estou muito cansada.
— Vamos, um bocadinho só; eu também estou muito cansada...
Mariana teimou ainda um pouco; mas teimar contra Sofia, — a pomba discutindo
com o gavião, — era realmente insensatez. Não teve remédio, foi. A rua estava
agora mais agitada, as gentes iam e vinham por ambas as calçadas, e
complicavam-se no cruzamento das ruas. De mais a mais, o obsequioso expresidente flanqueava as duas damas, tendo-se oferecido para arranjar-lhes uma
tribuna.
A alma de Mariana sentia-se cada vez mais dilacerada de toda essa confusão de
coisas. Perdera o interesse da primeira hora; e o despeito, que lhe dera forças
para um vôo audaz e fugidio, começava a afrouxar as asas, ou afrouxara-as
inteiramente. E outra vez recordava a casa, tão quieta, com todas as coisas nos
seus lugares, metódicas, respeitosas umas com as outras, fazendo-se tudo sem
atropelo, e, principalmente, sem mudança imprevista. E a alma batia o pé,

raivosa... Não ouvia nada do que o Viçoso ia dizendo, conquanto ele falasse alto, e
muitas coisas fossem ditas para ela. Não ouvia, não queria ouvir nada. Só pedia a
Deus que as horas andassem depressa. Chegaram à Câmara e foram para uma
tribuna. O rumor das saias chamou a atenção de uns vinte deputados, que
restavam, escutando um discurso de orçamento. Tão depressa o Viçoso pediu
licença e saiu, Mariana disse rapidamente à amiga que não lhe fizesse outra.
— Que outra? perguntou Sofia.
— Não me pregue outra peça como esta de andar de um lugar para outro feito
maluca. Que tenho eu com a Câmara? que me importam discursos que não
entendo?
Sofia sorriu, agitou o leque e recebeu em cheio o olhar de um dos secretários.
Muitos eram os olhos que a fitavam quando ela ia à Câmara, mas os do tal
secretário tinham uma expressão mais especial, cálida e súplice. Entende-se, pois,
que ela não o recebeu de supetão; pode mesmo entender-se que o procurou
curiosa. Enquanto acolhia esse olhar legislativo ia respondendo à amiga, com
brandura, que a culpa era dela, e que a sua intenção era boa, era restituir-lhe a
posse de si mesma.
— Mas, se você acha que a aborreço não venha mais comigo, concluiu Sofia.
E, inclinando-se um pouco:
— Olha o Ministro da Justiça.
Mariana não teve remédio senão ver o Ministro da Justiça. Este agüentava o
discurso do orador, um governista, que provava a conveniência dos tribunais
correcionais, e, incidentemente, compendiava a antiga legislação colonial. Nenhum
aparte; um silêncio resignado, polido, discreto e cauteloso. Mariana passeava os
olhos de um lado para outro, sem interesse; Sofia dizia-lhe muitas coisas, para
dar saída a uma porção de gestos graciosos. No fim de quinze minutos agitou-se a
Câmara, graças a uma expressão do orador e uma réplica da oposição. Trocaramse apartes, os segundos mais bravos que os primeiros, e seguiu-se um tumulto,
que durou perto de um quarto de hora.
Esta diversão não o foi para Mariana, cujo espírito plácido e uniforme, ficou
atarantado no meio de tanta e tão inesperada agitação. Ela chegou a levantar-se
para sair; mas, sentou-se outra vez. Já agora estava disposta a ir ao fim,
arrependida e resoluta a chorar só consigo as suas mágoas conjugais. A dúvida
começou mesmo a entrar nela. Tinha razão no pedido ao marido; mas era caso de
doer-se tanto? era razoável o espalhafato? Certamente que as ironias dele foram
cruéis; mas, em suma, era a primeira vez que ela lhe batera o pé, e,
naturalmente, a novidade irritou-o. De qualquer modo porém, fora um erro ir
revelar tudo à amiga. Sofia iria talvez contá-lo a outras... Esta idéia trouxe um
calafrio a Mariana; a indiscrição da amiga era certa; tinha-lhe ouvido uma porção
de histórias de chapéus masculinos e femininos, coisa mais grave do que uma
simples briga de casados. Mariana sentiu necessidade de lisonjeá-la, e cobriu a
sua impaciência e zanga com uma máscara de docilidade hipócrita. Começou a
sorrir também, a fazer algumas observações, a respeito de um ou outro deputado,
e assim chegaram ao fim do discurso e da sessão.
Eram quatro horas dadas. Toca a recolher, disse Sofia; e Mariana concordou que
sim, mas sem impaciência, e ambas tornaram a subir a Rua do Ouvidor. A rua, a
entrada no
bond completaram a fadiga do espírito de Mariana, que afinal respirou
quando viu que ia caminho de casa. Pouco antes de apear-se a outra, pediu-lhe
que guardasse segredo sobre o que lhe contara; Sofia prometeu que sim.
Mariana respirou. A rola estava livre do gavião. Levava a alma doente dos

encontrões, vertiginosa da diversidade de coisas e pessoas. Tinha necessidade de
equilíbrio e saúde. A casa estava perto; à medida que ia vendo as outras casas e
chácaras próximas, Mariana sentia-se restituída a si mesma. Chegou finalmente;
entrou no jardim, respirou. Era aquele o seu mundo; menos um vaso, que o
jardineiro trocara de lugar.
— João, bota este vaso onde estava antes, disse ela.
Tudo o mais estava em ordem, a sala de entrada, a de visitas, a de jantar, os seus
quartos, tudo. Mariana sentou-se primeiro, em diferentes lugares, olhando bem
para todas as coisas, tão quietas e ordenadas. Depois de uma manhã inteira de
perturbação e variedade, a monotonia trazia-lhe um grande bem, e nunca lhe
pareceu tão deliciosa. Na verdade, fizera mal... Quis recapitular os sucessos e não
pôde; a alma espreguiçava-se toda naquela uniformidade caseira. Quando muito,
pensou na figura do Viçoso, que achava agora ridícula, e era injustiça. Despiu-se
lentamente, com amor, indo certeira a cada objeto. Uma vez despida, pensou
outra vez na briga com o marido. Achou que, bem pesadas as coisas, a principal
culpa era dela. Que diabo de teima por causa de um chapéu, que o marido usara
há tantos anos? Também o pai era exigente demais...
"Vou ver a cara com que ele vem", pensou ela.
Eram cinco e meia; não tardaria muito. Mariana foi à sala da frente, espiou pela
vidraça, prestou o ouvido ao
bond, e nada. Sentou-se ali mesmo com o Ivanhoénas palmas, querendo ler e não lendo nada. Os olhos iam até o fim da página, e
tornavam ao princípio, em primeiro lugar, porque não apanhavam o sentido, em
segundo lugar, porque uma ou outra vez desviavam-se para saborear a correção
das cortinas ou qualquer outra feição particular da sala. Santa monotonia, tu a
acalentavas no teu regaço eterno.
Enfim, parou um
bond; apeou-se o marido; rangeu a porta de ferro do jardim.
Mariana foi à vidraça, e espiou. Conrado entrava lentamente, olhando para a
direita e a esquerda, com o chapéu na cabeça, não o famoso chapéu do costume,
porém outro, o que a mulher lhe tinha pedido de manhã. O espírito de Mariana
recebeu um choque violento, igual ao que lhe dera o vaso do jardim trocado, — ou
ao que lhe daria uma lauda de Voltaire entre as folhas da
Moreninha ou deIvanhoe... Era a nota desigual no meio da harmoniosa sonata da vida. Não, não
podia ser esse chapéu. Realmente, que mania a dela exigir que ele deixasse o
outro que lhe ficava tão bem? E que não fosse o mais próprio, era o de longos
anos; era o que quadrava à fisionomia do marido... Conrado entrou por uma porta
lateral. Mariana recebeu-o nos braços.
— Então, passou? perguntou ele, enfim, cingindo-lhe a cintura.
— Escuta uma coisa, respondeu ela com uma carícia divina, bota fora esse; antes
o outro.
CONTO ALEXANDRINO
ÍNDICE
CAPÍTULO PRIMEIRO
CAPÍTULO II

CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO PRIMEIRONO MAR— O que, meu caro Stroibus! Não, impossível. Nunca jamais ninguém acreditará
que o sangue de rato, dado a beber a um homem, possa fazer do homem um
ratoneiro.
— Em primeiro lugar, Pítias, tu omites uma condição: — é que o rato deve expirar
debaixo do escalpelo, para que o sangue traga o seu princípio. Essa condição é
essencial. Em segundo lugar, uma vez que me apontas o exemplo do rato, fica
sabendo que já fiz com ele uma experiência, e cheguei a produzir um ladrão...
— Ladrão autêntico?
— Levou-me o manto, ao cabo de trinta dias, mas deixou-me a maior alegria do
mundo: a realidade da minha doutrina. Que perdi eu? um pouco de tecido grosso;
e que lucrou o universo? a verdade imortal. Sim, meu caro Pítias; esta é a eterna
verdade. Os elementos constitutivos do ratoneiro estão no sangue do rato, os do
paciente no boi, os do arrojado na águia...
— Os do sábio na coruja, interrompeu Pítias sorrindo.
— Não; a coruja é apenas um emblema; mas a aranha, se pudéssemos transferila a um homem, daria a esse homem os rudimentos da geometria e o sentimento
musical. Com um bando de cegonhas, andorinhas ou grous, faço-te de um caseiro
um viajeiro. O princípio da fidelidade conjugal está no sangue da rola, o da
enfatuação no dos pavões... Em suma, os deuses puseram nos bichos da terra, da
água e do ar a essência de todos os sentimentos e capacidades humanas. Os
animais são as letras soltas do alfabeto; o homem é a sintaxe. Esta é a minha
filosofia recente; esta é a que vou divulgar na corte do grande Ptolomeu.
Pítias sacudiu a cabeça, e fixou os olhos no mar. O navio singrava, em direitura a
Alexandria, com essa carga preciosa de dois filósofos, que iam levar àquele regaço
do saber os frutos da razão esclarecida. Eram amigos, viúvos e qüinquagenários.
Cultivavam especialmente a metafísica, mas conheciam a física, a química, a
medicina e a música; um deles, Stroibus, chegara a ser excelente anatomista,
tendo lido muitas vezes os tratados do mestre Herófilo. Chipre era a pátria de
ambos; mas, tão certo é que ninguém é profeta em sua terra, Chipre não dava o
merecido respeito aos dois filósofos. Ao contrário, desdenhava-os; os garotos
tocavam ao extremo de rir deles. Não foi esse, entretanto, o motivo que os levou
a deixar a pátria. Um dia, Pítias, voltando de uma viagem, propôs ao amigo irem
para Alexandria, onde as artes e as ciências eram grandemente honradas.
Stroibus aderiu, e embarcaram. Só agora, depois de embarcados, é que o inventor
da nova doutrina expô-la ao amigo, com todas as suas recentes cogitações e
experiências.

— Está feito, disse Pítias, levantando a cabeça, não afirmo nem nego nada. Vou
estudar a doutrina, e se a achar verdadeira, proponho-me a desenvolvê-la e
divulgá-la.
— Viva Hélios! exclamou Stroibus. Posso contar que és meu discípulo.
CAPÍTULO IIEXPERIÊNCIAOs garotos alexandrinos não trataram os dois sábios com o escárnio dos garotos
cipriotas. A terra era grave como a íbis pousada numa só pata, pensativa como a
esfinge, circunspecta como as múmias, dura como as pirâmides; não tinha tempo
nem maneira de rir. Cidade e corte, que desde muito tinham notícia dos nossos
dois amigos, fizeram-lhes um recebimento régio, mostraram conhecer os seus
escritos, discutiram as suas idéias, mandaram-lhes muitos presentes, papiros,
crocodilos, zebras, púrpuras. Eles, porém, recusaram tudo, com simplicidade,
dizendo que a filosofia bastava ao filósofo, e que o supérfluo era um dissolvente.
Tão nobre resposta encheu de admiração tanto aos sábios como aos principais e à
mesma plebe. E aliás, diziam os mais sagazes, que outra coisa se podia esperar de
dois homens tão sublimes, que em seus magníficos tratados...
— Temos coisa melhor do que esses tratados, interrompia Stroibus. Trago uma
doutrina, que, em pouco, vai dominar o universo; cuido nada menos que em
reconstituir os homens e os Estados, distribuindo os talentos e as virtudes.
— Não é esse o ofício dos deuses? objetava um.
— Eu violei o segredo dos deuses, acudia Stroibus. O homem é a sintaxe da
natureza, eu descobri as leis da gramática divina...
— Explica-te.
— Mais tarde; deixa-me experimentar primeiro. Quando a minha doutrina estiver
completa, divulgá-la-ei como a maior riqueza que os homens jamais poderão
receber de um homem.
Imaginem a expectação pública e a curiosidade dos outros filósofos, embora
incrédulos de que a verdade recente viesse aposentar as que eles mesmos
possuíam. Entretanto, esperavam todos. Os dois hóspedes eram apontados na rua
até pelas crianças. Um filho meditava trocar a avareza do pai, um pai a
prodigalidade do filho, uma dama a frieza de um varão, um varão os desvarios de
uma dama, porque o Egito, desde os Faraós até aos Lágides, era a terra de
Putifar, da mulher de Putifar, da capa de José, e do resto. Stroibus tornou-se a
esperança da cidade e do mundo.
Pítias, tendo estudado a doutrina, foi ter com Stroibus, e disse-lhe:
— Metafisicamente, a tua doutrina é um despropósito; mas estou pronto a admitir
uma experiência, contando que seja decisiva. Para isto, meu caro Stroibus, há só
um meio. Tu e eu, tanto pelo cultivo de razão como pela rigidez do caráter, somos
o que há mais oposto ao vício do furto. Pois bem, se conseguires incutir-nos esse
vício, não será preciso mais; se não conseguires nada (e podes crê-lo, porque é
um absurdo) recuarás de semelhante doutrina, e tornarás às nossas velhas
meditações.
Stroibus aceitou a proposta.
— O meu sacrifício é o mais penoso, disse ele, pois estou certo do resultado; mas

que não merece a verdade? A verdade é imortal; o homem é um breve
momento...
Os ratos egípcios, se pudessem saber de um tal acordo, teriam imitado os
primitivos hebreus, aceitando a fuga para o deserto, antes do que a nova filosofia.
E podemos crer que seria um desastre. A ciência, como a guerra, tem
necessidades imperiosas; e desde que a ignorância dos ratos, a sua fraqueza, a
superioridade mental e física dos dois filósofos eram outras tantas vantagens na
experiência que ia começar, cumpria não perder tão boa ocasião de saber se
efetivamente o princípio das paixões e das virtudes humanas estava distribuído
pelas várias espécies de animais, e se era possível transmiti-lo.
Stroibus engaiolava os ratos; depois, um a um, ia-os sujeitando ao ferro. Primeiro,
atava uma tira de pano no focinho do paciente; em seguida, os pés, finalmente,
cingia com um cordel as pernas e o pescoço do animal à tábua da operação. Isto
feito, dava o primeiro talho no peito, com vagar, e com vagar ia enterrando o ferro
até tocar o coração, porque era opinião dele que a morte instantânea corrompia o
sangue e retirava-lhe o princípio. Hábil anatomista, operava com uma firmeza
digna do propósito científico. Outro, menos destro, interromperia muita vez a
tarefa, porque as contorções de dor e de agonia tornavam difícil o meneio do
escalpelo; mas essa era justamente a superioridade de Stroibus: tinha o pulso
magistral e prático.
Ao lado dele, Pítias aparava o sangue e ajudava a obra, já contendo os
movimentos convulsivos do paciente, já espiando-lhe nos olhos o progresso da
agonia. As observações que ambos faziam eram notadas em folhas de papiro; e
assim ganhava a ciência de duas maneiras. Às vezes, por divergência de
apreciação, eram obrigados a escalpelar maior número de ratos do que o
necessário; mas não perdiam com isso, porque o sangue dos excedentes era
conservado e ingerido depois. Um só desses casos mostrará a consciência com que
eles procediam. Pítias observara que a retina do rato agonizante mudava de cor
até chegar ao azul-claro, ao passo que a observação de Stroibus dava a cor de
canela como o tom final da morte. Estavam na última operação do dia; mas o
ponto valia a pena, e, não obstante o cansaço, fizeram sucessivamente dezenove
experiências sem resultado definitivo; Pítias insistia pela cor azul, e Stroibus pela
cor de canela. O vigésimo rato esteve prestes a pô-los de acordo, mas Stroibus
advertiu, com muita sagacidade, que a sua posição era agora diferente, retificou-a
e escalpelaram mais vinte e cinco. Destes, o primeiro ainda os deixou em dúvida;
mas os outros vinte e quatro provaram-lhes que a cor final não era canela nem
azul, mas um lírio roxo, tirando a claro.
A descrição exagerada das experimentações deu rebate à porção sentimental da
cidade, e excitou a loqüela de alguns sofistas; mas o grave Stroibus (com
brandura, para não agravar uma disposição própria da alma humana) respondeu
que a verdade valia todos os ratos do universo, e não só os ratos, como os
pavões, as cabras, os cães, os rouxinóis, etc.; que, em relação aos ratos, além de
ganhar a ciência, ganhava a cidade, vendo diminuída a praga de um animal tão
daninho; e, se a mesma consideração não se dava com outros animais, como, por
exemplo, as rolas e os cães, que eles iam escalpelar daí a tempos, nem por isso os
direitos da verdade eram menos imprescritíveis. A natureza não há de ser só a
mesa de jantar, concluía em forma de aforismo, mas também a mesa de ciência.
E continuavam a extrair o sangue e a bebê-lo. Não o bebiam puro, mas diluído em
um cozimento de cinamomo, suco de acácia e bálsamo, que lhe tirava todo o
sabor primitivo. As doses eram diárias e diminutas; tinham, portanto, de aguardar
um longo prazo antes de produzido o efeito. Pítias, impaciente e incrédulo, mofava
do amigo.
— Então? nada?

— Espera, dizia o outro, espera. Não se incute um vício como se cose um par de
sandálias.
CAPÍTULO IIIVITÓRIAEnfim, venceu Stroibus! A experiência provou a doutrina. E Pítias foi o primeiro
que deu mostras da realidade do efeito, atribuindo-se umas três idéias ouvidas ao
próprio Stroibus; este, em compensação, furtou-lhe quatro comparações e uma
teoria dos ventos. Nada mais científico do que essas estréias. As idéias alheias,
por isso mesmo que não foram compradas na esquina, trazem um certo ar
comum; e é muito natural começar por elas antes de passar aos livros
emprestados, às galinhas, aos papéis falsos, às províncias, etc. A própria
denominação de plágio é um indício de que os homens compreendem a dificuldade
de confundir esse embrião da ladroeira com a ladroeira formal.
Duro é dizê-lo; mas a verdade é que eles deitaram ao Nilo a bagagem metafísica,
e dentro de pouco estavam larápios acabados. Concertavam-se de véspera, e iam
aos mantos, aos bronzes, às ânforas de vinho, às mercadorias do porto, às boas
dracmas. Como furtassem sem estrépito, ninguém dava por eles; mas, ainda
mesmo que os suspeitassem, como fazê-lo crer aos outros? Já então Ptolomeu
coligira na biblioteca muitas riquezas e raridades; e, porque conviesse ordená-las,
designou para isso cinco gramáticos e cinco filósofos, entre estes os nossos dois
amigos. Estes últimos trabalharam com singular ardor, sendo os primeiros que
entravam e os últimos que saíam, e ficando ali muitas noites, ao clarão da
lâmpada, decifrando, coligindo, classificando. Ptolomeu, entusiasmado, meditava
para eles os mais altos destinos.
Ao cabo de algum tempo, começaram a notar-se faltas graves: — um exemplar de
Homero, três rolos de manuscritos persas, dois de samaritanos, uma soberba
coleção de cartas originais de Alexandre, cópias de leis atenienses, o 2º e o 3º
livro da
República de Platão, etc., etc. A autoridade pôs-se à espreita; mas a
esperteza do rato, transferida a um organismo superior, era naturalmente maior, e
os dois ilustres gatunos zombavam de espias e guardas. Chegaram ao ponto de
estabelecer este preceito filosófico de não sair dali com as mãos vazias; traziam
sempre alguma coisa, uma fábula, quando menos. Enfim, estando a sair um navio
para Chipre, pediram licença a Ptolomeu, com promessa de voltar, coseram os
livros dentro de couros de hipopótamo, puseram-lhe rótulos falsos, e trataram de
fugir. Mas a inveja de outros filósofos não dormia; deu rebate às suspeitas dos
magistrados, e descobriu-se o roubo. Stroibus e Pítias foram tidos por
aventureiros, mascarados com os nomes daqueles dois varões ilustres; Ptolomeu
entregou-os à justiça com ordem de os passar logo ao carrasco. Foi então que
interveio Herófilo, inventor da anatomia.
CAPÍTULO IVPLUS ULTRA!— Senhor, disse ele a Ptolomeu, tenho-me limitado até agora a escalpelar
cadáveres. Mas o cadáver dá-me a estrutura, não me dá a vida; dá-me os órgãos,
não me dá as funções. Eu preciso das funções e da vida.
— Que me dizes? redargüiu Ptolomeu. Queres estripar os ratos de Stroibus?
— Não, senhor; não quero estripar os ratos.
— Os cães? os gansos? as lebres?

— Nada; peço alguns homens vivos.
— Vivos? não é possível...
— Vou demonstrar que não só é possível, mas até legítimo e necessário. As
prisões egípcias estão cheias de criminosos, e os criminosos ocupam, na escala
humana, um grau muito inferior. Já não são cidadãos, nem mesmo se podem dizer
homens, porque a razão e a virtude, que são os dois principais característicos
humanos, eles os perderam, infringindo a lei e a moral. Além disso, uma vez que
têm de expiar com a morte os seus crimes, não é justo que prestem algum serviço
à verdade e à ciência? A verdade é imortal; ela vale não só todos os ratos, como
todos os delinqüentes do universo.
Ptolomeu achou o raciocínio exato, e ordenou que os criminosos fossem entregues
a Herófilo e seus discípulos. O grande anatomista agradeceu tão insigne obséquio,
e começou a escalpelar os réus. Grande foi o assombro do povo; mas, salvo
alguns pedidos verbais, não houve nenhuma manifestação contra a medida.
Herófilo repetia o que dissera a Ptolomeu, acrescentando que a sujeição dos réus à
experiência anatômica era até um modo indireto de servir à moral, visto que o
terror do escalpelo impediria a prática de muitos crimes.
Nenhum dos criminosos, ao deixar a prisão, suspeitava o destino científico que o
esperava. Saíam um por um; às vezes dois a dois, ou três a três. Muitos deles,
estendidos e atados à mesa da operação, não chegavam a desconfiar nada;
imaginavam que era um novo gênero de execução sumária. Só quando os
anatomistas definiam o objeto do estudo do dia, alçavam os ferros e davam os
primeiros talhos, é que os desgraçados adquiriam a consciência da situação. Os
que se lembravam de ter visto as experiências dos ratos, padeciam em dobro,
porque a imaginação juntava à dor presente o espetáculo passado.
Para conciliar os interesses da ciência com os impulsos da piedade, os réus não
eram escalpelados à vista uns dos outros, mas sucessivamente. Quando vinham
aos dois ou aos três, não ficavam em lugar donde os que esperavam pudessem
ouvir os gritos do paciente, embora os gritos fossem muitas vezes abafados por
meio de aparelhos; mas se eram abafados, não eram suprimidos, e em certos
casos, o próprio objeto da experiência exigia que a emissão da voz fosse franca.
Às vezes as operações eram simultâneas; mas então faziam-se em lugares
distanciados.
Tinham sido escalpelados cerca de cinqüenta réus, quando chegou a vez de
Stroibus e Pítias. Vieram buscá-los; eles supuseram que era para a morte
judiciária, e encomendaram-se aos deuses. De caminho, furtaram uns figos, e
explicaram o caso alegando que era um impulso da fome; adiante, porém,
subtraíram uma flauta, e essa outra ação não a puderam explicar
satisfatoriamente. Todavia, a astúcia do larápio é infinita, e Stroibus, para
justificar a ação, tentou extrair algumas notas do instrumento, enchendo de
compaixão as pessoas que os viam passar, e não ignoravam a sorte que iam ter. A
notícia desses dois novos delitos foi narrada por Herófilo, e abalou a todos os seus
discípulos.
— Realmente, disse o mestre, é um caso extraordinário, um caso lindíssimo. Antes
do principal, examinemos aqui o outro ponto...
O ponto era saber se o nervo do latrocínio residia na palma da mão ou na
extremidade dos dedos; problema esse sugerido por um dos discípulos. Stroibus
foi o primeiro sujeito à operação. Compreendeu tudo, desde que entrou na sala; e,
como a natureza humana tem uma parte ínfima, pediu-lhes humildemente que
poupassem a vida a um filósofo. Mas Herófilo, com um grande poder de dialética,
disse-lhe mais ou menos isto: — Ou és um aventureiro ou o verdadeiro Stroibus;

no primeiro caso, tens aqui o único meio para resgatar o crime de iludir a um
príncipe esclarecido, presta-te ao escalpelo; no segundo caso, não deves ignorar
que a obrigação do filósofo é servir à filosofia, e que o corpo é nada em
comparação com o entendimento.
Dito isto, começaram pela experiência das mãos, que produziu ótimos resultados,
coligidos em livros, que se perderam com a queda dos Ptolomeus. Também as
mãos de Pítias foram rasgadas e minuciosamente examinadas. Os infelizes
berravam, choravam, suplicavam; mas Herófilo dizia-lhes pacificamente que a
obrigação do filósofo era servir à filosofia, e que para os fins da ciência, eles
valiam ainda mais que os ratos, pois era melhor concluir do homem para o
homem, e não do rato para o homem. E continuou a rasgá-los fibra por fibra,
durante oito dias. No terceiro dia arrancaram-lhes os olhos, para desmentir
praticamente uma teoria sobre a conformação interior do órgão. Não falo da
extração do estômago de ambos, por se tratar de problemas relativamente
secundários, e em todo caso estudados e resolvidos em cinco ou seis indivíduos
escalpelados antes deles.
Diziam os alexandrinos que os ratos celebraram esse caso aflitivo e doloroso com
danças e festas, a que convidaram alguns cães, rolas, pavões e outros animais
ameaçados de igual destino, e outrossim, que nenhum dos convidados aceitou o
convite, por sugestão de um cachorro, que lhes disse melancolicamente: —
"Século virá em que a mesma coisa nos aconteça". Ao que retorquiu um rato:
"Mas até lá, riamos!"
PRIMAS DE SAPUCAIA!Há umas ocasiões oportunas e fugitivas, em que o acaso nos inflige duas ou três
primas de Sapucaia; outras vezes, ao contrário, as primas de Sapucaia são antes
um benefício do que um infortúnio.
Era à porta de uma igreja. Eu esperava que as minhas primas Claudina e Rosa
tomassem água benta, para conduzi-las à nossa casa, onde estavam hospedadas.
Tinham vindo de Sapucaia, pelo carnaval, e demoraram-se dois meses na corte.
Era eu que as acompanhava a toda a parte, missas, teatros, Rua do Ouvidor,
porque minha mãe, com o seu reumático, mal podia mover-se dentro de casa, e
elas não sabiam andar sós. Sapucaia era a nossa pátria comum. Embora todos os
parentes estivessem dispersos, ali nasceu o tronco da família. Meu tio José
Ribeiro, pai destas primas, foi o único, de cinco irmãos, que lá ficou lavrando a
terra e figurando na política do lugar. Eu vim cedo para a Corte, donde segui a
estudar e bacharelar-me em São Paulo. Voltei uma só vez a Sapucaia, para
pleitear uma eleição, que perdi.
Rigorosamente, todas estas notícias são desnecessárias para a compreensão da
minha aventura; mas é um modo de ir dizendo alguma coisa, antes de entrar em
matéria, para a qual não acho porta grande nem pequena; o melhor é afrouxar a
rédea à pena, e ela que vá andando, até achar entrada. Há de haver alguma; tudo
depende das circunstâncias, regra que tanto serve para o estilo como para a vida;
palavra puxa palavra, uma idéia traz outra, e assim se faz um livro, um governo,
ou uma revolução; alguns dizem mesmo que assim é que a natureza compôs as
suas espécies.
Portanto, água benta e porta de igreja. Era a igreja de São José. A missa acabara;
Claudina e Rosa fizeram uma cruz na testa, com o dedo polegar, molhado na água
benta e descalçado unicamente para esse gesto. Depois ajustaram os manteletes,
enquanto eu, ao portal, ia vendo as damas que saíam. De repente, estremeço,
inclino-me para fora, chego mesmo a dar dois passos na direção da rua.

— Que foi, primo?
— Nada, nada.
Era uma senhora, que passara rentezinha com a igreja, vagarosa, cabisbaixa,
apoiando-se no chapelinho de sol; ia pela Rua da Misericórdia acima. Para explicar
a minha comoção, é preciso dizer que era a segunda vez que a via. A primeira foi
no Prado Fluminense, dois meses antes, com um homem que, pelos modos, era
seu marido, mas tanto podia ser marido como pai. Estava então um pouco de
espavento, vestida de escarlate, com grandes enfeites vistosos, e umas argolas
demasiado grossas nas orelhas; mas os olhos e a boca resgatavam o resto.
Namoramos às bandeiras despregadas. Se disser que saí dali apaixonado, não
meto a minha alma no inferno, porque é a verdade pura. Saí tonto, mas saí
também desapontado, perdi-a de vista na multidão. Nunca mais pude dar com ela,
nem ninguém me soube dizer quem fosse.
Calcule-se o meu enfado, vendo que a fortuna vinha trazê-la outra vez ao meu
caminho, e que umas primas fortuitas não me deixavam lançar-lhe as mãos. Não
será difícil calculá-lo, porque estas primas de Sapucaia tomam todas as formas, e
o leitor, se não as teve de um modo, teve-as de outro. Umas vezes copiam o ar
confidencial de um cavalheiro informado da última crise do ministério, de todas as
causas aparentes ou secretas, dissensões novas ou antigas, interesses agravados,
conspiração, crise. Outras vezes, enfronham-se na figura daquele eterno cidadão
que afirma de um modo ponderoso e abotoado, que não há leis sem costumes,
nisi lege sine moribus. Outras, afivelam a máscara de um Dangeau de esquina,
que nos conta miudamente as fitas e rendas que esta, aquela, aqueloutra dama
levara ao baile ou ao teatro. E durante esse tempo, a Ocasião passa, vagarosa,
cabisbaixa, apoiando-se no chapelinho de sol: passa, dobra a esquina, e adeus...
O ministério esfacelava-se; malinas e bruxelas;
nisi lege sine moribus...Estive a pique de dizer às primas, que se fossem embora; morávamos na Rua do
Carmo, não era longe; mas abri mão da idéia. Já na rua pensei também em deixá-
las na igreja, à minha espera, e ir ver se agarrava a Ocasião pela calva. Creio
mesmo que cheguei a parar um momento, mas rejeitei igualmente esse alvitre e
fui andando.
Fui andando com elas para o lado oposto ao da minha incógnita. Olhei para trás
repetidas vezes, até perdê-la numa das curvas da rua, com os olhos no chão,
como quem reflete, devaneia ou espera uma hora marcada. Não minto dizendo
que esta última idéia trouxe-me a emoção do ciúme. Sou exclusivo e pessoal;
daria um triste amante de mulheres casadas. Não importa que entre mim e aquela
dama existisse apenas uma contemplação fugitiva de algumas horas; desde que a
minha personalidade ia para ela, a partilha tornava-se-me insuportável. Sou
também imaginoso; engenhei logo uma aventura e um aventureiro, dei-me ao
prazer mórbido de afligir-me sem motivo nem necessidade. As primas iam
adiante, e falavam-me de quando em quando; eu respondia mal, se respondia
alguma coisa. Cordialmente, execrava-as.
Ao chegar à porta de casa, consultei o relógio, como se tivesse alguma coisa que
fazer; depois disse às primas que subissem e fossem almoçando. Corri à Rua da
Misericórdia. Fui primeiro até à Escola de Medicina; depois voltei e vim até à
Câmara dos Deputados, então mais devagar, esperando vê-la ao chegar a cada
curva da rua; mas nem sombra. Era insensato, não era? Todavia, ainda subi outra
vez a rua, porque adverti que, a pé e devagar, mal teria tempo de ir em meio da
Praia de Santa Luzia, se acaso não parara antes; e aí fui, rua acima e praia fora,
até ao convento da Ajuda. Não encontrei nada, coisa nenhuma. Nem por isso perdi
as esperanças; arrepiei caminho e vim, a passo lento ou apressado, conforme se
me afigurava que era possível apanhá-la adiante, ou dar tempo a que saísse de
alguma parte. Desde que a minha imaginação reproduzia a dama, todo eu sentia
um abalo, como se realmente tivesse de vê-la daí a alguns minutos. Compreendi a

emoção dos doidos.
Entretanto, nada. Desci a rua sem achar o menor vestígio da minha incógnita.
Felizes os cães, que pelo faro dão com os amigos! Quem sabe se não estaria ali
bem perto, no interior de alguma casa, talvez a própria casa dela? Lembrou-me
indagar; mas de quem, e como? Um padeiro, encostado ao portal, espiava-me;
algumas mulheres faziam a mesma coisa enfiando os olhos pelos postigos.
Naturalmente desconfiavam do transeunte, do andar vagaroso ou apressado, do
olhar inquisidor, do gesto inquieto. Deixei-me ir até à Câmara dos Deputados, e
parei uns cinco minutos, sem saber que fizesse. Era perto de meio-dia. Esperei
mais dez minutos, depois mais cinco, parado, com a esperança de vê-la; afinal,
desesperei e fui almoçar.
Não almocei em casa. Não queria ver os demônios das primas, que me impediram
de seguir a dama incógnita. Fui a um hotel. Escolhi uma mesa no fim da sala, e
sentei-me de costas para as outras; não queria ser visto nem conversado.
Comecei a comer o que me deram. Pedi alguns jornais, mas confesso que não li
nada seguidamente, e apenas entendi três quartas partes do que ia lendo. No
meio de uma notícia ou de um artigo, escorregava-me o espírito e caía na Rua da
Misericórdia, à porta da igreja, vendo passar a incógnita, vagarosa, cabisbaixa,
apoiando-se no chapelinho de sol.
A última vez que me aconteceu essa separação da OUTRA e da BESTA, estava já
no café, e tinha diante de mim um discurso parlamentar. Achei-me ainda uma vez
à porta da igreja; imaginei então que as primas não estavam comigo, e que eu
seguia atrás da bela dama. Assim é que se consolam os preteridos da loteria;
assim é que se fartam as ambições malogradas.
Não me peçam minúcias nem preliminares do encontro. Os sonhos desdenham as
linhas finas e o acabado das paisagens; contentam-se de quatro ou cinco
brochadas grossas, mas representativas. Minha imaginação galgou as dificuldades
da primeira fala, e foi direita à Rua do Lavradio ou dos Inválidos, à própria casa de
Adriana. Chama-se Adriana. Não viera à Rua da Misericórdia por motivo de
amores, mas a ver alguém, uma parenta ou uma comadre, ou uma costureira.
Conheceu-me, e teve igual comoção. Escrevi-lhe; respondeu-me. Nossas pessoas
foram uma para a outra por cima de uma multidão de regras morais e de perigos.
Adriana é casada; o marido conta cinqüenta e dois anos, ela trinta imperfeitos.
Não amou nunca, não amou mesmo o marido, com quem casou por obedecer à
família. Eu ensinei-lhe ao mesmo tempo o amor e a traição; é o que ela me diz
nesta casinha que aluguei fora da cidade, de propósito para nós.
Ouço-a embriagado. Não me enganei; é a mulher ardente e amorosa, qual me
diziam os seus olhos, olhos de touro, como os de Juno, grandes e redondos. Vive
de mim e para mim. Escrevemo-nos todos os dias; e, apesar disso, quando nos
encontramos na casinha, é como se mediara um século. Creio até que o coração
dela ensinou-me alguma coisa, embora noviço, ou por isso mesmo. Nesta matéria
desaprende-se com o uso e o ignorante é que é douto. Adriana não dissimula a
alegria nem as lágrimas; escreve o que pensa, conta o que o sente; mostra-me
que não somos dois, mas um, tão-somente um ente universal, para quem Deus
criou o sol e as flores, o papel e a tinta, o correio e as carruagens fechadas.
Enquanto ideava isto, creio que acabei de beber o café; lembra-me que o criado
veio à mesa e retirou a xícara e o açucareiro. Não sei se lhe pedi fogo,
provavelmente viu-me com o charuto na mão e trouxe-me fósforos.
Não juro, mas penso que acendi o charuto, porque daí a um instante, através de
um véu de fumaça, vi a cabeça meiga e enérgica da minha bela Adriana,
encostada a um sofá. Eu estou de joelhos, ouvindo-lhe a narração da última rusga
do marido. Que ele já desconfia; ela sai muitas vezes, distrai-se, absorve-se,
aparece-lhe triste ou alegre, sem motivo, e o marido começa a ameaçá-la.

Ameaçá-la de quê? Digo-lhe que, antes de qualquer excesso, era melhor deixá-lo,
para viver comigo, publicamente, um para o outro. Adriana escuta-me pensativa,
cheia de Eva, namorada do demônio, que lhe sussurra de fora o que o coração lhe
diz de dentro. Os dedos afagam-me os cabelos.
— Pois sim! pois sim!
Veio no dia seguinte, consigo mesma, sem marido, sem sociedade, sem
escrúpulos, tão-somente consigo, e fomos dali viver juntos. Nem ostentação, nem
resguardo. Supusemo-nos estrangeiros, e realmente não éramos outra coisa;
falávamos uma língua, que nunca ninguém antes falara nem ouvira. Os outros
amores eram, desde séculos, verdadeiras contrafações; nós dávamos a edição
autêntica. Pela primeira vez, imprimia-se o manuscrito divino, um grosso volume
que nós dividíamos em tantos capítulos e parágrafos quantas eram as horas do dia
ou os dias da semana. O estilo era tecido de sol e música; a linguagem compunhase da fina flor dos outros vocabulários. Tudo o que neles existia, meigo ou
vibrante, foi extraído pelo autor para formar esse livro único — livro sem índice,
porque era infinito — sem margens, para que o fastio não viesse escrever nelas as
suas notas, — sem fita, porque já não tínhamos precisão de interromper a leitura
e marcar a página.
Uma voz chamou-me à realidade. Era um amigo que acordara tarde, e vinha
almoçar. Nem o sonho me deixava esta outra prima de Sapucaia! Cinco minutos
depois despedi-me e saí; eram duas horas passadas.
Vexa-me dizer que ainda fui à Rua da Misericórdia, mas é preciso narrar tudo: fui
e não achei nada. Voltei nos dias seguintes sem outro lucro, além do tempo
perdido. Resignei-me a abrir mão da aventura, ou esperar a solução do acaso. As
primas achavam-me aborrecido ou doente; não lhes disse que não. Daí a oito dias
foram-se embora, sem me deixar saudades; despedi-me delas como de uma febre
maligna.
A imagem da minha incógnita não me deixou durante muitas semanas. Na rua,
enganei-me várias vezes. Descobria ao longe uma figura, que era tal qual a outra;
picava os calcanhares até apanhá-la e desenganar-me. Comecei a achar-me
ridículo; mas lá vinha uma hora ou um minuto, uma sombra ao longe, e a
preocupação revivia. Afinal vieram outros cuidados, e não pensei mais nisso.
No princípio do ano seguinte, fui a Petrópolis; fiz a viagem com um antigo
companheiro de estudos, Oliveira, que foi promotor em Minas Gerais, mas
abandonara ultimamente a carreira por ter recebido uma herança. Estava alegre
como nos tempos da academia; mas de quando em quando calava-se, olhando
para fora da barca ou da caleça, com a atonia de quem regala a alma de uma
recordação, de uma esperança ou de um desejo. No alto da serra perguntei-lhe
para que hotel ia; respondeu que ia para uma casa particular, mas não me disse
aonde, e até desconversou. Cuidei que me visitaria no dia seguinte; mas nem me
visitou, nem o vi em parte alguma. Outro colega nosso ouvira dizer que ele tinha
uma casa para os lados da Renânia.
Nenhuma destas circunstâncias voltaria à memória, se não fosse a notícia que me
deram dias depois. Oliveira tirara uma mulher ao marido, e fora refugiar-se com
ela em Petrópolis. Deram-me o nome do marido e o dela. O dela era Adriana.
Confesso que, embora o nome da outra fosse pura invenção minha, estremeci ao
ouvi-lo; não seria a mesma mulher? Vi logo depois que era pedir muito ao acaso.
Já faz bastante esse pobre oficial das coisas humanas, concertando alguns fios
dispersos; exigir que os reate a todos, e com os mesmos títulos, é saltar da
realidade na novela. Assim falou o meu bom senso, e nunca disse tão gravemente
uma tolice, pois as duas mulheres eram nada menos que a mesmíssima.
Vi-a três semanas depois, indo visitar o Oliveira, que viera doente da Corte.

Subimos juntos na véspera; no meio da serra, começou ele a sentir-se
incomodado; no alto estava febril. Acompanhei-o no carro até a casa, e não entrei,
porque ele dispensou-me o incômodo. Mas no dia seguinte fui vê-lo, um pouco por
amizade, outro pouco por avidez de conhecer a incógnita. Vi-a; era ela, era a
minha, era a única Adriana.
Oliveira sarou depressa, e, apesar do meu zelo em visitá-lo, não me ofereceu a
casa; limitou-se a vir ver-me no hotel. Respeitei-lhe os motivos; mas eles mesmos
é que faziam reviver a antiga preocupação. Considerei que, além das razões de
decoro, havia da parte dele um sentimento de ciúme, filho de um sentimento de
amor, e que um e outro podiam ser a prova de um complexo de qualidades finas e
grandes naquela mulher. Isto bastava a transtornar-me; mas a idéia de que a
paixão dela não seria menor que a dele, o quadro desse casal que fazia uma só
alma e pessoa, excitou em mim todos os nervos da inveja. Baldei esforços para
ver se metia o pé na casa; cheguei a falar-lhe do boato que corria; ele sorria e
tratava de outra coisa.
Acabou a estação de Petrópolis, e ele ficou. Creio que desceu em julho ou agosto.
No fim do ano encontramo-nos casualmente; achei-o um pouco taciturno e
preocupado. Vi-o ainda outras vezes, e não me pareceu diferente, a não ser que,
além de taciturno, trazia na fisionomia uma longa prega de desgosto. Imaginei
que eram efeitos da aventura, e, como não estou aqui para empulhar ninguém,
acrescento que tive uma sensação de prazer. Durou pouco; era o demônio que
trago em mim, e costuma fazer desses esgares de saltimbanco. Mas castiguei-o
depressa, e pus no lugar dele o anjo, que também uso, e que se compadeceu do
pobre rapaz, qualquer que fosse o motivo da tristeza.
Um vizinho dele, amigo nosso, contou-me alguma coisa, que me confirmou a
suspeita de desgostos domésticos; mas foi ele mesmo quem me disse tudo, um
dia, perguntando-lhe eu, estouvadamente, o que é que tinha que o mudara tanto.
— Que hei de ter? Imagina tu que comprei um bilhete de loteria, e nem tive, ao
menos, o gosto de não tirar nada; tirei um escorpião.
E, como eu franzisse a testa interrogativamente:
— Ah! se soubesses metade só das coisas que me têm acontecido! Tens tempo?
Vamos aqui ao Passeio Público.
Entramos no jardim, e metemo-nos por uma das alamedas. Contou-me tudo.
Gastou duas horas em desfiar um rosário infinito de misérias. Vi através da
narração duas índoles incompatíveis, unidas pelo amor ou pelo pecado, fartas uma
da outra, mas condenadas à convivência e ao ódio. Ele nem podia deixá-la nem
suportá-la. Nenhuma estima, nenhum respeito, alegria rara e impura; uma vida
gorada.
— Gorada, repetia ele, gesticulando afirmativamente com a cabeça. Não tem que
ver; a minha vida gorou. Hás de lembrar-te dos nossos planos da academia,
quando nos propúnhamos, tu a ministro do império, eu da justiça. Podes guardar
as duas pastas; não serei nada, nada. O ovo, que devia dar uma águia, não chega
a dar um frango. Gorou completamente. Há ano e meio que ando nisso, e não
acho saída nenhuma; perdi a energia...
Seis meses depois, encontrei-o aflito e desvairado. Adriana deixara-o para ir
estudar geometria com um estudante da antiga Escola Central. Tanto melhor,
disse-lhe eu. Oliveira olhou para o chão envergonhado; despediu-se, e correu em
procura dela. Achou-a daí a algumas semanas, disseram as últimas um ao outro, e
no fim reconciliaram-se. Comecei então a visitá-los, com a idéia de os separar um
do outro. Ela estava ainda bonita e fascinante; as maneiras eram finas e meigas,
mas evidentemente de empréstimo, acompanhadas de umas atitudes e gestos,

cujo intuito latente era atrair-me e arrastar-me.
Tive medo e retraí-me. Não se mortificou; deitou fora a capa de renda, restituiu-se
ao natural. Vi então que era ferrenha, manhosa, injusta, muita vez grosseira; em
alguns lances notei-lhe uma nota de perversidade. Oliveira, nos primeiros tempos,
para fazer-me crer que mentira ou exagerara, suportava tudo rindo; era a
vergonha da própria fraqueza. Mas não pôde guardar a máscara; ela arrancou-lha
um dia, sem piedade, denunciando as humilhações em que ele caía, quando eu
não estava presente. Tive nojo da mulher e pena do pobre-diabo. Convidei-o
abertamente a deixá-la, ele hesitou, mas prometeu que sim.
— Realmente, não posso mais...
Combinamos tudo; mas no momento da separação, não pôde. Ela embebeu-lhe
novamente os seus grandes olhos de touro e de basilisco, e desta vez, — ó minhas
queridas primas de Sapucaia! — desta vez para só deixá-lo exausto e morto.
UMA SENHORANunca encontro esta senhora que me não lembre a profecia de uma lagartixa ao
poeta Heine, subindo os Apeninos: "Dia virá em que as pedras serão plantas, as
plantas animais, os animais homens e os homens deuses." E dá-me vontade de
dizer-lhe: — A senhora, D. Camila, amou tanto a mocidade e a beleza, que
atrasou o seu relógio, a fim de ver se podia fixar esses dois minutos de cristal.
Não se desconsole, D. Camila. No dia da lagartixa, a senhora será Hebe, deusa da
juventude; a senhora nos dará a beber o néctar da perenidade com as suas mãos
eternamente moças.
A primeira vez que a vi, tinha ela trinta e seis anos, posto só parecesse trinta e
dois, e não passasse da casa dos vinte e nove. Casa é um modo de dizer. Não há
castelo mais vasto do que a vivenda destes bons amigos, nem tratamento mais
obsequioso do que o que eles sabem dar às suas hóspedes. Cada vez que D.
Camila queria ir-se embora, eles pediam-lhe muito que ficasse, e ela ficava.
Vinham então novos folguedos, cavalhadas, música, dança, uma sucessão de
coisas belas, inventadas com o único fim de impedir que esta senhora seguisse o
seu caminho.
— Mamãe, mamãe, dizia-lhe a filha crescendo, vamos embora, não podemos ficar
aqui toda a vida.
D. Camila olhava para ela mortificada, depois sorria, dava-lhe um beijo e
mandava-a brincar com as outras crianças. Que outras crianças? Ernestina estava
então entre quatorze e quinze anos, era muito espigada, muito quieta, com uns
modos naturais de senhora. Provavelmente não se divertiria com as meninas de
oito e nove anos; não importa, uma vez que deixasse a mãe tranqüila, podia
alegrar-se ou enfadar-se. Mas, ai triste! há um limite para tudo, mesmo para os
vinte e nove anos.
D. Camila resolveu, enfim, despedir-se desses dignos anfitriões, e fê-lo ralada de
saudades. Eles ainda instaram por uns cinco ou seis meses de quebra; a bela
dama respondeu-lhes que era impossível e, trepando no alazão do tempo, foi
alojar-se na casa dos trinta.
Ela era, porém, daquela casta de mulheres que riem do sol e dos almanaques. Cor
de leite, fresca, inalterável, deixava às outras o trabalho de envelhecer. Só queria
o de existir. Cabelo negro, olhos castanhos e cálidos. Tinha as espáduas e o colo
feitos de encomenda para os vestidos decotados, e assim também os braços, que
eu não digo que eram os da Vênus de Milo, para evitar uma vulgaridade, mas

provavelmente não eram outros. D. Camila sabia disto; sabia que era bonita, não
só porque lho dizia o olhar sorrateiro das outras damas, como por um certo
instinto que a beleza possui, como o talento e o gênio. Resta dizer que era casada,
que o marido era ruivo, e que os dois amavam-se como noivos; finalmente, que
era honesta. Não o era, note-se bem, por temperamento, mas por princípio, por
amor ao marido, e creio que um pouco por orgulho.
Nenhum defeito, pois, exceto o de retardar os anos; mas é isso um defeito? Há,
não me lembra em que página da Escritura, naturalmente nos Profetas, uma
comparação dos dias com as águas de um rio que não voltam mais. D.Camila
queria fazer uma represa para seu uso. No tumulto desta marcha contínua entre o
nascimento e a morte, ela apegava-se à ilusão da estabilidade. Só se lhe podia
exigir que não fosse ridícula, e não o era. Dir-me-á o leitor que a beleza vive de si
mesma, e que a preocupação do calendário mostra que esta senhora vivia
principalmente com os olhos na opinião. É verdade; mas como quer que vivam as
mulheres do nosso tempo?
D. Camila entrou na casa dos trinta e não lhe custou passar adiante.
Evidentemente o terror era uma superstição. Duas ou três amigas íntimas,
nutridas de aritmética, continuavam a dizer que ela perdera a conta dos anos. Não
advertiam que a natureza era cúmplice no erro, e que aos quarenta anos
(verdadeiros), D. Camila trazia um ar de trinta e poucos. Restava um recurso:
espiar-lhe o primeiro cabelo branco, um fiozinho de nada, mas branco. Em vão
espiavam; o demônio do cabelo parecia cada vez mais negro.
Nisto enganavam-se. O fio branco estava ali; era a filha de D. Camila que entrava
nos dezenove anos, e, por mal de pecados, bonita. D. Camila prolongou, quanto
pôde, os vestidos adolescentes da filha, conservou-a no colégio até tarde, fez tudo
para proclamá-la criança. A natureza, porém, que não é só imoral, mas também
ilógica, enquanto sofreava os anos de uma, afrouxava a rédea aos da outra, e
Ernestina, moça feita, entrou radiante no primeiro baile. Foi uma revelação. D.
Camila adorava a filha; saboreou-lhe a glória a tragos demorados. No fundo do
copo achou a gota amarga e fez uma careta. Chegou a pensar na abdicação; mas
um grande pródigo de frases feitas disse-lhe que ela parecia a irmã mais velha da
filha, e o projeto desfez-se. Foi dessa noite em diante que D. Camila entrou a dizer
a todos que casara muito criança.
Um dia, poucos meses depois, apontou no horizonte o primeiro namorado. D.
Camila pensara vagamente nessa calamidade, sem encará-la, sem aparelhar-se
para a defesa. Quando menos esperava, achou um pretendente à porta.
Interrogou a filha; descobriu-lhe um alvoroço indefinível, a inclinação dos vinte
anos, e ficou prostrada. Casá-la era o menos; mas, se os seres são como as águas
da Escritura, que não voltam mais, é porque atrás deles vêm outros, como atrás
das águas outras águas; e, para definir essas ondas sucessivas é que os homens
inventaram este nome de netos. D. Camila viu iminente o primeiro neto, e
determinou adiá-lo. Está claro que não formulou a resolução, como não formulara
a idéia do perigo. A alma entende-se a si mesma; uma sensação vale um
raciocínio. As que ela teve foram rápidas, obscuras, no mais íntimo do seu ser,
donde não as extraiu para não ser obrigada a encará-las.
— Mas que é que você acha de mau no Ribeiro? perguntou-lhe o marido, uma
noite, à janela.
D. Camila levantou os ombros.
— Acho-lhe o nariz torto, disse.
— Mau! Você está nervosa; falemos de outra coisa, respondeu o marido. E, depois
de olhar uns dois minutos para a rua, cantarolando na garganta, tornou ao
Ribeiro, que achava um genro aceitável, e se lhe pedisse Ernestina, entendia que

deviam ceder-lha. Era inteligente e educado. Era também o herdeiro provável de
uma tia de Cantagalo. E depois tinha um coração de ouro. Contavam-se dele
coisas muito bonitas. Na academia, por exemplo... D. Camila ouviu o resto,
batendo com a ponta do pé no chão e rufando com os dedos a sonata da
impaciência; mas, quando o marido lhe disse que o Ribeiro esperava um despacho
do ministro de estrangeiros, um lugar para os Estados Unidos, não pôde ter-se e
cortou-lhe a palavra:
— O quê? separar-me de minha filha? Não, senhor.
Em que dose entrara neste grito o amor materno e o sentimento pessoal, é um
problema difícil de resolver, principalmente agora, longe dos acontecimentos e das
pessoas. Suponhamos que em partes iguais. A verdade é que o marido não soube
que inventar para defender o ministro de estrangeiros, as necessidades
diplomáticas, a fatalidade do matrimônio, e, não achando que inventar, foi dormir.
Dois dias depois veio a nomeação. No terceiro dia, a moça declarou ao namorado
que não a pedisse ao pai, porque não queria separar-se da família. Era o mesmo
que dizer: prefiro a família ao senhor. É verdade que tinha a voz trêmula e
sumida, e um ar de profunda consternação; mas o Ribeiro viu tão-somente a
rejeição, e embarcou. Assim acabou a primeira aventura.
D. Camila padeceu com o desgosto da filha; mas consolou-se depressa. Não
faltam noivos, refletiu ela. Para consolar a filha, levou-a a passear a toda parte.
Eram ambas bonitas, e Ernestina tinha a frescura dos anos; mas a beleza da mãe
era mais perfeita, e apesar dos anos, superava a da filha. Não vamos ao ponto de
crer que o sentimento da superioridade é que animava D. Camila a prolongar e
repetir os passeios. Não: o amor materno, só por si, explica tudo. Mas
concedamos que animasse um pouco. Que mal há nisso? Que mal há em que um
bravo coronel defenda nobremente a pátria, e as suas dragonas? Nem por isso
acaba o amor da pátria e o amor das mães.
Meses depois despontou a orelha de um segundo namorado. Desta vez era um
viúvo, advogado, vinte e sete anos. Ernestina não sentiu por ele a mesma emoção
que o outro lhe dera; limitou-se a aceitá-lo. D. Camila farejou depressa a nova
candidatura. Não podia alegar nada contra ele; tinha o nariz reto como a
consciência, e profunda aversão à vida diplomática. Mas haveria outros defeitos,
devia haver outros. D. Camila buscou-os com alma; indagou de suas relações,
hábitos, passado. Conseguiu achar umas coisinhas miúdas, tão-somente a unha da
imperfeição humana, alternativas de humor, ausência de graças intelectuais, e,
finalmente, um grande excesso de amor-próprio. Foi neste ponto que a bela dama
o apanhou. Começou a levantar vagarosamente a muralha do silêncio; lançou
primeiro a camada das pausas, mais ou menos longas, depois as frases curtas,
depois os monossílabos, as distrações, as absorções, os olhares complacentes, os
ouvidos resignados, os bocejos fingidos por trás da ventarola. Ele não entendeu
logo; mas, quando reparou que os enfados da mãe coincidiam com as ausências
da filha, achou que era ali demais e retirou-se. Se fosse homem de luta, tinha
saltado a muralha; mas era orgulhoso e fraco. D. Camila deu graças aos deuses.
Houve um trimestre de respiro. Depois apareceram alguns namoricos de uma
noite, insetos efêmeros, que não deixaram história. D. Camila compreendeu que
eles tinham de multiplicar-se, até vir algum decisivo que a obrigasse a ceder; mas
ao menos, dizia ela a si mesma, queria um genro que trouxesse à filha a mesma
felicidade que o marido lhe deu. E, uma vez, ou para robustecer este decreto da
vontade, ou por outro motivo, repetiu o conceito em voz alta, embora só ela
pudesse ouvi-lo. Tu, psicólogo sutil, podes imaginar que ela queria convencer-se a
si mesma; eu prefiro contar o que lhe aconteceu em 186...
Era de manhã. D. Camila estava ao espelho, a janela aberta, a chácara verde e
sonora de cigarras e passarinhos. Ela sentia em si a harmonia que a ligava às
coisas externas. Só a beleza intelectual é independente e superior. A beleza física

é irmã da paisagem. D. Camila saboreava essa fraternidade íntima, secreta, um
sentimento de identidade, uma recordação da vida anterior no mesmo útero
divino. Nenhuma lembrança desagradável, nenhuma ocorrência vinha turvar essa
expansão misteriosa. Ao contrário, tudo parecia embebê-la de eternidade, e os
quarenta e dois anos em que ia não lhe pesavam mais do que outras tantas folhas
de rosa. Olhava para fora, olhava para o espelho. De repente, como se lhe
surdisse uma cobra, recuou aterrada. Tinha visto, sobre a fonte esquerda, um
cabelinho branco. Ainda cuidou que fosse do marido; mas reconheceu depressa
que não, que era dela mesma, um telegrama da velhice, que aí vinha a marchas
forçadas. O primeiro sentimento foi de prostração.
D. Camila sentiu faltar-lhe tudo, tudo, viu-se encanecida e acabada no fim de uma
semana.
— Mamãe, mamãe, bradou Ernestina entrando na saleta. Está aqui o camarote
que papai mandou.
D. Camila teve um sobressalto de pudor, e instintivamente voltou para a filha o
lado que não tinha o fio branco. Nunca a achou tão graciosa e lépida. Fitou-a com
saudade. Fitou-a também com inveja, e, para abafar este sentimento mau, pegou
no bilhete do camarote. Era para aquela mesma noite. Uma idéia expele outra; D.
Camila anteviu-se no meio das luzes e das gentes, e depressa levantou o coração.
Ficando só, tornou a olhar para o espelho, e corajosamente arrancou o cabelinho
branco, e deitou-o à chácara.
Out, damned spot! Out! Mais feliz do que a outralady Macbeth, viu assim desaparecer a nódoa no ar, porque no ânimo dela, a
velhice era um remorso, e a fealdade um crime. Sai, maldita mancha! sai!
Mas, se os remorsos voltam, por que não hão de voltar os cabelos brancos? Um
mês depois, D. Camila descobriu outro, insinuado na bela e farta madeixa negra, e
amputou-o sem piedade. Cinco ou seis semanas depois, outro. Este terceiro
coincidiu com um terceiro candidato à mão da filha, e ambos acharam D. Camila
numa hora de prostração. A beleza, que lhe suprira a mocidade, parecia-lhe
prestes a ir também, como uma pomba sai em busca da outra. Os dias
precipitavam-se. Crianças que ela vira ao colo, ou de carrinho empuxado pelas
amas, dançavam agora nos bailes. Os que eram homens fumavam; as mulheres
cantavam ao piano. Algumas destas apresentavam-lhe os seus
babies, gorduchos,
uma segunda geração que mamava, à espera de ir bailar também, cantar ou
fumar, apresentar outros
babies a outras pessoas, e assim por diante.
D. Camila apenas tergiversou um pouco, acabou cedendo. Que remédio, senão
aceitar um genro? Mas, como um velho costume não se perde de um dia para
outro, D. Camila viu paralelamente, naquela festa do coração, um cenário e
grande cenário. Preparou-se galhardamente, e o efeito correspondeu ao esforço.
Na igreja, no meio de outras damas; na sala, sentada no sofá (o estofo que
forrava este móvel, assim como o papel da parede foram sempre escuros para
fazer sobressair a tez de D. Camila), vestida a capricho, sem o requinte da
extrema juventude, mas também sem a rigidez matronal, um meio-termo apenas,
destinado a pôr em relevo as suas graças outoniças, risonha, e feliz, enfim, a
recente sogra colheu os melhores sufrágios. Era certo que ainda lhe pendia dos
ombros um retalho de púrpura.
Púrpura supõe dinastia. Dinastia exige netos. Restava que o Senhor abençoasse a
união, e ele abençoou-a, no ano seguinte. D. Camila acostumara-se à idéia; mas
era tão penoso abdicar, que ela aguardava o neto com amor e repugnância. Esse
importuno embrião, curioso da vida e pretensioso, era necessário na terra?
Evidentemente, não; mas apareceu um dia, com as flores de setembro. Durante a
crise, D. Camila só teve de pensar na filha; depois da crise, pensou na filha e no
neto. Só dias depois é que pôde pensar em si mesma. Enfim, avó. Não havia
duvidar; era avó. Nem as feições que eram ainda concertadas, nem os cabelos,
que eram pretos (salvo meia dúzia de fios escondidos), podiam por si sós

denunciar a realidade; mas a realidade existia; ela era, enfim, avó.
Quis recolher-se; e para ter o neto mais perto de si, chamou a filha para casa. Mas
a casa não era um mosteiro, e as ruas e os jornais com os seus mil rumores
acordavam nela os ecos de outro tempo. D. Camila rasgou o ato de abdicação e
tornou ao tumulto.
Um dia, encontrei-a ao lado de uma preta, que levava ao colo uma criança de
cinco a seis meses. D. Camila segurava na mão o chapelinho de sol aberto para
cobrir a criança. Encontrei-a oito dias depois, com a mesma criança, a mesma
preta e o mesmo chapéu de sol. Vinte dias depois, e trinta dias mais tarde, tornei
a vê-la, entrando para o
bond, com a preta e a criança. — Você já deu de mamar?
dizia ela à preta. Olhe o sol. Não vá cair. Não aperte muito o menino. Acordou?
Não mexa com ele. Cubra a carinha, etc., etc.
Era o neto. Ela, porém ia tão apertadinha, tão cuidadosa da criança, tão a miúdo,
tão sem outra senhora, que antes parecia mãe do que avó; e muita gente pensava
que era mãe. Que tal fosse a intenção de D. Camila não o juro eu ("Não jurarás",
MAT. V, 34). Tão-somente digo que nenhuma outra mãe seria mais desvelada do
que D. Camila com o neto; atribuírem-lhe um simples filho era a coisa mais
verossímil do mundo.
ANEDOTA PECUNIÁRIAChama-se Falcão o meu homem. Naquele dia — quatorze de abril de 1870 —
quem lhe entrasse em casa, às dez horas da noite, vê-lo-ia passear na sala, em
mangas de camisa, calça preta e gravata branca, resmungando, gesticulando,
suspirando, evidentemente aflito. Às vezes, sentava-se; outras, encostava-se à
janela, olhando para a praia, que era a da Gamboa. Mas, em qualquer lugar ou
atitude, demorava-se pouco tempo.
— Fiz mal, dizia ele, muito mal. Tão minha amiga que ela era! tão amorosa! Ia
chorando, coitadinha! Fiz mal, muito mal... Ao menos, que seja feliz!
Se eu disser que este homem vendeu uma sobrinha, não me hão de crer; se
descer a definir o preço, dez contos de réis, voltar-me-ão as costas com desprezo
e indignação. Entretanto, basta ver este olhar felino, estes dois beiços, mestres de
cálculo, que, ainda fechados, parecem estar contando alguma coisa, para
adivinhar logo que a feição capital do nosso homem é a voracidade do lucro.
Entendamo-nos: ele faz arte pela arte, não ama o dinheiro pelo que ele pode dar,
mas pelo que é em si mesmo! Ninguém lhe vá falar dos regalos da vida. Não tem
cama fofa, nem mesa fina, nem carruagem, nem comenda. Não se ganha dinheiro
para esbanjá-lo, dizia ele. Vive de migalhas; tudo o que amontoa é para a
contemplação. Vai muitas vezes à burra, que está na alcova de dormir, com o
único fim de fartar os olhos nos rolos de ouro e maços de título. Outras vezes, por
um requinte de erotismo pecuniário, contempla-os só de memória. Neste
particular, tudo o que eu pudesse dizer, ficaria abaixo de uma palavra dele
mesmo, em 1857.
Já então milionário, ou quase, encontrou na rua dois meninos, seus conhecidos,
que lhe perguntaram se uma nota de cinco mil-réis, que lhes dera um tio, era
verdadeira. Corriam algumas notas falsas, e os pequenos lembraram-se disso em
caminho. Falcão ia com um amigo. Pegou trêmulo na nota, examinou-a bem,
virou-a, revirou-a...
— É falsa? perguntou com impaciência um dos meninos.
— Não; é verdadeira.

— Dê cá, disseram ambos.
Falcão dobrou a nota vagarosamente, sem tirar-lhe os olhos de cima; depois,
restituiu-a aos pequenos, e, voltando-se para o amigo, que esperava por ele,
disse-lhe com a maior candura do mundo:
— Dinheiro, mesmo quando não é da gente, faz gosto ver.
Era assim que ele amava o dinheiro, até à contemplação desinteressada. Que
outro motivo podia levá-lo a parar, diante das vitrinas dos cambistas, cinco, dez,
quinze minutos, lambendo com os olhos os montes de libras e francos, tão
arrumadinhos e amarelos? O mesmo sobressalto com que pegou na nota de cinco
mil-réis, era um rasgo subtil, era o terror da nota falsa. Nada aborrecia tanto,
como os moedeiros falsos, não por serem criminosos, mas prejudiciais, por
desmoralizarem o dinheiro bom.
A linguagem do Falcão valia um estudo. Assim é que, um dia, em 1864, voltando
do enterro de um amigo, referiu o esplendor do préstito, exclamando com
entusiasmo: — "Pegavam no caixão três mil contos!" E, como um dos ouvintes
não o entendesse logo, concluiu do espanto, que duvidava dele, e discriminou a
afirmação: — "Fulano quatrocentos, Sicrano seiscentos... Sim, senhor, seiscentos;
há dois anos, quando desfez a sociedade com o sogro, ia em mais de quinhentos;
mas suponhamos quinhentos..." E foi por diante, demonstrando, somando e
concluindo: — "Justamente, três mil contos!"
Não era casado. Casar era botar dinheiro fora. Mas os anos passaram, e aos
quarenta e cinco entrou a sentir uma certa necessidade moral, que não
compreendeu logo, e era a saudade paterna. Não mulher, não parentes, mas um
filho ou uma filha, se ele o tivesse, era como receber um patacão de ouro.
Infelizmente, esse outro capital devia ter sido acumulado em tempo; não podia
começá-lo a ganhar tão tarde. Restava a loteria; a loteria deu-lhe o prêmio
grande.
Morreu-lhe o irmão, e três meses depois a cunhada, deixando uma filha de onze
anos. Ele gostava muito desta e de outra sobrinha, filha de uma irmã viúva; davalhes beijos, quando as visitava; chegava mesmo ao delírio de levar-lhes, uma ou
outra vez, biscoitos. Hesitou um pouco, mas, enfim, recolheu a órfã; era a filha
cobiçada. Não cabia em si de contente; durante as primeiras semanas, quase não
saía de casa, ao pé dela, ouvindo-lhe histórias e tolices.
Chamava-se Jacinta, e não era bonita; mas tinha a voz melodiosa e os modos
fagueiros. Sabia ler e escrever; começava a aprender música. Trouxe o piano
consigo, o método e alguns exercícios; não pôde trazer o professor, porque o tio
entendeu que era melhor ir praticando o que aprendera, e um dia... mais tarde...
Onze anos, doze anos, treze anos, cada ano que passava era mais um vínculo que
atava o velho solteirão à filha adotiva, e vice-versa. Aos treze, Jacinta mandava na
casa; aos dezessete era verdadeira dona. Não abusou do domínio; era
naturalmente modesta, frugal, poupada.
— Um anjo! dizia o Falcão ao Chico Borges.
Este Chico Borges tinha quarenta anos, e era dono de um trapiche. Ia jogar com o
Falcão à noite. Jacinta assistia às partidas. Tinha então dezoito anos; não era mais
bonita, mas diziam todos "que estava enfeitando muito". Era pequenina, e o
trapicheiro adorava as mulheres pequeninas. Corresponderam-se, o namoro fez-se
paixão.
— Vamos a elas, dizia o Chico Borges ao entrar, pouco depois de ave-marias.

As cartas eram o chapéu de sol dos dois namorados. Não jogavam a dinheiro; mas
o Falcão tinha tal sede ao lucro, que contemplava os próprios tentos, sem valor, e
contava-os de dez em dez minutos, para ver se ganhava ou perdia. Quando
perdia, caía-lhe o rosto num desalento incurável, e ele recolhia-se pouco a pouco
ao silêncio. Se a sorte teimava em persegui-lo, acabava o jogo, e levantava-se tão
melancólico e cego, que a sobrinha e o parceiro podiam apertar a mão, uma, duas,
três vezes, sem que ele visse coisa nenhuma.
Era isto em 1869. No princípio de 1870 Falcão propôs ao outro uma venda de
ações. Não as tinha; mas farejou uma grande baixa, e contava ganhar de um só
lance trinta a quarenta contos ao Chico Borges. Este respondeu-lhe finamente que
andava pensando em oferecer-lhe a mesma coisa. Uma vez que ambos queriam
vender e nenhum comprar, podiam juntar-se e propor a venda a um terceiro.
Acharam o terceiro, e fecharam o contrato a sessenta dias. Falcão estava tão
contente, ao voltar do negócio, que o sócio abriu-lhe o coração e pediu-lhe a mão
de Jacinta. Foi o mesmo que, se de repente, começasse a falar turco. Falcão
parou, embasbacado, sem entender. Que lhe desse a sobrinha? Mas então...
— Sim; confesso a você que estimaria muito casar com ela, e ela... penso que
também estimaria casar comigo.
— Qual, nada! interrompeu o Falcão. Não, senhor; está muito criança, não
consinto.
— Mas reflita...
— Não reflito, não quero.
Chegou a casa irritado e aterrado. A sobrinha afagou-o tanto para saber o que era,
que ele acabou contando tudo, e chamando-lhe esquecida e ingrata. Jacinta
empalideceu; amava os dois, e via-os tão dados, que não imaginou nunca esse
contraste de afeições. No quarto chorou à larga; depois escreveu uma carta ao
Chico Borges, pedindo-lhe pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, que
não fizesse barulho nem brigasse com o tio; dizia-lhe que esperasse, e jurava-lhe
um amor eterno.
Não brigaram os dois parceiros; mas as visitas foram naturalmente mais escassas
e frias. Jacinta não vinha à sala, ou retirava-se logo. O terror do Falcão era
enorme. Ele amava a sobrinha com um amor de cão, que persegue e morde aos
estranhos. Queria-a para si, não como homem, mas como pai. A paternidade
natural dá forças para o sacrifício da separação; a paternidade dele era de
empréstimo, e, talvez, por isso mesmo, mais egoísta. Nunca pensara em perdê-la;
agora, porém, eram trinta mil cuidados, janelas fechadas, advertências à preta,
uma vigilância perpétua, um espiar os gestos e os ditos, uma campanha de D.
Bartolo.
Entretanto, o sol, modelo de funcionários, continuou a servir pontualmente os
dias, um a um, até chegar dos dois meses do prazo marcado para a entrega das
ações. Estas deviam baixar, segundo a previsão dos dois; mas as ações, como as
loterias e as batalhas, zombam dos cálculos humanos. Naquele caso, além de
zombaria, houve crueldade, porque nem baixaram, nem ficaram ao par; subiram
até converter o esperado lucro de quarenta contos numa perda de vinte.
Foi aqui que o Chico Borges teve uma inspiração de gênio. Na véspera, quando o
Falcão, abatido e mudo, passeava na sala o seu desapontamento, propôs ele
custear todo o
déficit, se lhe desse a sobrinha. Falcão teve um deslumbramento.
— Que eu...?
— Isso mesmo, interrompeu o outro, rindo.

— Não, não...
Não quis; recusou três e quatro vezes. A primeira impressão fora de alegria, eram
os dez contos na algibeira. Mas a idéia de separar-se de Jacinta era insuportável, e
recusou. Dormiu mal. De manhã, encarou a situação, pesou as coisas, considerou
que, entregando Jacinta ao outro, não a perdia inteiramente, ao passo que os dez
contos iam-se embora. E, depois, se ela gostava dele e ele dela, por que razão
separá-los? Todas as filhas casam-se, e os pais contentam-se de as ver felizes.
Correu à casa do Chico Borges, e chegaram a acordo.
— Fiz mal, muito mal, bradava ele na noite do casamento. Tão minha amiga que
ela era! Tão amorosa! Ia chorando, coitadinha... Fiz mal, muito mal.
Cessara o terror dos dez contos; começara o fastio da solidão. Na manhã seguinte,
foi visitar os noivos. Jacinta não se limitou a regalá-lo com um bom almoço,
encheu-o de mimos e afagos; mas nem estes, nem o almoço lhe restituíram a
alegria. Ao contrário, a felicidade dos noivos entristeceu-o mais. Ao voltar para
casa não achou a carinha meiga de Jacinta. Nunca mais lhe ouviria as cantigas de
menina e moça; não seria ela quem lhe faria o chá, quem lhe traria, à noite,
quando ele quisesse ler, o velho tomo ensebado do
Saint-Clair das Ilhas, dádiva
de 1850.
— Fiz mal, muito mal...
Para remediar o mal feito, transferiu as cartas para a casa da sobrinha, e ia lá
jogar, à noite, com o Chico Borges. Mas a fortuna, quando flagela um homem,
corta-lhe todas as vazas. Quatro meses depois, os recém-casados foram para a
Europa; a solidão alargou-se de toda a extensão do mar. Falcão contava então
cinqüenta e quatro anos. Já estava mais consolado do casamento de Jacinta; tinha
mesmo o plano de ir morar com eles, ou de graça, ou mediante uma pequena
retribuição, que calculou ser muito mais econômico do que a despesa de viver só.
Tudo se esboroou; ei-lo outra vez na situação de oito anos antes, com a diferença
que a sorte arrancara-lhe a taça entre dois goles.
Vai senão quando cai-lhe outra sobrinha em casa. Era a filha da irmã viúva, que
morreu e lhe pediu a esmola de tomar conta dela. Falcão não prometeu nada,
porque um certo instinto o levava a não prometer coisa nenhuma a ninguém, mas
a verdade é que recolheu a sobrinha, tão depressa a irmã fechou os olhos. Não
teve constrangimento; ao contrário, abriu-lhe as portas de casa, com um alvoroço
de namorado, e quase abençoou a morte da irmã. Era outra vez a filha perdida.
"Esta há de fechar-me os olhos", dizia ele consigo.
Não era fácil. Virgínia tinha dezoito anos, feições lindas e originais; era grande e
vistosa. Para evitar que lha levassem, Falcão começou por onde acabara da
primeira vez: — janelas cerradas, advertências à preta, raros passeios, só com ele
e de olhos baixos. Virgínia não se mostrou enfadada.
— Nunca fui janeleira, dizia ela, e acho muito feio que uma moça viva com o
sentido na rua.
Outra cautela do Falcão foi não trazer para casa senão parceiros de cinqüenta
anos para cima ou casados. Enfim, não cuidou mais da baixa das ações. E tudo
isso era desnecessário, porque a sobrinha não cuidava realmente senão dele e da
casa. Às vezes, como a vista do tio começava a diminuir muito, lia-lhe ela mesma
alguma página do
Saint-Clair das Ilhas. Para suprir os parceiros, quando eles
faltavam, aprendeu a jogar cartas, e, entendendo que o tio gostava de ganhar,
deixava-se sempre perder. Ia mais longe: quando perdia muito, fingia-se zangada
ou triste, com o único fim de dar ao tio um acréscimo de prazer. Ele ria então à

larga, mofava dela, achava-lhe o nariz comprido, pedia um lenço para enxugar-lhe
as lágrimas; mas não deixava de contar os seus tentos de dez em dez minutos, e
se algum caía no chão (eram grãos de milho) descia a vela para apanhá-lo.
No fim de três meses, Falcão adoeceu. A moléstia não foi grave nem longa; mas o
terror da morte apoderou-se-lhe do espírito, e foi então que se pôde ver toda a
afeição que ele tinha à moça. Cada visita que se lhe chegava, era recebida com
rispidez, ou pelo menos com sequidão. Os mais íntimos padeciam mais, porque ele
dizia-lhes brutalmente que ainda não era cadáver, que a carniça ainda estava viva,
que os urubus enganavam-se de cheiro, etc. Mas nunca Virgínia achou nele um só
instante de mau humor. Falcão obedecia-lhe em tudo, com uma passividade de
criança, e quando ria, é porque ela o fazia rir.
— Vamos, tome o remédio, deixe-se disso, vosmecê agora é meu filho...
Falcão sorria e bebia a droga. Ela sentava-se ao pé da cama, contando-lhe
histórias; espiava o relógio para dar-lhe os caldos ou a galinha, lia-lhe o
sempiterno
Saint-Clair. Veio a convalescença. Falcão saiu a alguns passeios,
acompanhado de Virgínia. A prudência com que esta, dando-lhe o braço, ia
mirando as pedras da rua, com medo de encarar os olhos de algum homem,
encantavam o Falcão.
"Esta há de fechar-me os olhos", repetia ele consigo mesmo. Um dia, chegou a
pensá-lo em voz alta: — Não é verdade que você me há de fechar os olhos?
— Não diga tolices!
Conquanto estivesse na rua, ele parou, apertou-lhe muito as mãos, agradecido,
não achando que dizer. Se tivesse a faculdade de chorar, ficaria provavelmente
com os olhos úmidos. Chegando à casa, Virgínia correu ao quarto para reler uma
carta que lhe entregara na véspera uma D. Bernarda, amiga de sua mãe. Era
datada de New York, e trazia por única assinatura este nome: Reginaldo. Um dos
trechos dizia assim:
"Vou daqui no paquete de 25. Espera-me sem falta. Não sei ainda se
irei ver-te logo ou não. Teu tio deve lembrar-se de mim; viu-me em
casa de meu tio Chico Borges, no dia do casamento de tua prima..."
Quarenta dias depois, desembarcava este Reginaldo, vindo de New York, com
trinta anos feitos e trezentos mil
dollars ganhos. Vinte e quatro horas depois
visitou o Falcão, que o recebeu apenas com polidez. Mas o Reginaldo era fino e
prático; atinou com a principal corda do homem, e vibrou-a. Contou-lhe os
prodígios de negócio nos Estados Unidos, as hordas de moedas que corriam de um
a outro dos dois oceanos. Falcão ouvia deslumbrado, e pedia mais. Então o outro
fez-lhe uma extensa computação das companhias e bancos, ações, saldos de
orçamento público, riquezas particulares, receita municipal de New York;
descreveu-lhe os grandes palácios do comércio...
— Realmente, é um grande país, dizia o Falcão, de quando em quando. E depois
de três minutos de reflexão: — Mas, pelo que o senhor conta, só há ouro?
— Ouro só, não; há muita prata e papel; mas ali papel e ouro são a mesma coisa.
E moedas de outras nações? Hei de mostrar-lhe uma coleção que trago. Olhe;
para ver o que é aquilo basta pôr os olhos em mim. Fui para lá pobre, com vinte e
três anos; no fim de sete anos, trago seiscentos contos.
Falcão estremeceu: — Eu, com a sua idade, confessou ele, mal chegaria a cem.
Estava encantado. Reginaldo disse-lhe que precisava de duas ou três semanas,
para lhe contar os milagres do
dollar.
— Como é que o senhor lhe chama?
Dollar.— Talvez não acredite que nunca vi essa moeda.
Reginaldo tirou do bolso do colete um
dollar e mostrou-lho. Falcão, antes de lhe
pôr a mão, agarrou-o com os olhos. Como estava um pouco escuro, levantou-se e
foi até à janela, para examiná-lo bem — de ambos os lados; depois restituiu-o,
gabando muito o desenho e a cunhagem, e acrescentando que os nossos antigos
patacões eram bem bonitos.
As visitas repetiram-se. Reginaldo assentou de pedir a moça. Esta, porém, disselhe que era preciso ganhar primeiro as boas graças do tio; não casaria contra a
vontade dele. Reginaldo não desanimou. Tratou de redobrar as finezas; abarrotou
o tio de dividendos fabulosos.
— A propósito, o senhor nunca me mostrou a sua coleção de moedas, disse-lhe
um dia o Falcão.
— Vá amanhã à minha casa.
Falcão foi. Reginaldo mostrou-lhe a coleção metida num móvel envidraçado por
todos os lados. A surpresa de Falcão foi extraordinária; esperava uma caixinha
com um exemplar de cada moeda, e achou montes de ouro, de prata, de bronze e
de cobre. Falcão mirou-as primeiro de um olhar universal e coletivo; depois,
começou a fixá-las especificamente. Só conheceu as libras, os
dollars e os francos;
mas o Reginaldo nomeou-as todas: florins, coroas, rublos, dracmas, piastras,
pesos, rupias, toda a numismática do trabalho, concluiu ele poeticamente.
— Mas que paciência a sua para ajuntar tudo isto! disse ele.
— Não fui eu que ajuntei, replicou o Reginaldo; a coleção pertencia ao espólio de
um sujeito de Filadélfia.
Custou-me uma bagatela:— cinco mil
dollars.Na verdade, valia mais. Falcão saiu dali com a coleção na alma; falou dela à
sobrinha, e, imaginariamente, desarrumou e tornou a arrumar as moedas, como
um amante desgrenha a amante para toucá-la outra vez. De noite sonhou que era
um florim, que um jogador o deitava à mesa do
lansquenet, e que ele trazia
consigo para a algibeira do jogador mais de duzentos florins. De manhã, para
consolar-se, foi contemplar as próprias moedas que tinha na burra; mas não se
consolou nada. O melhor dos bens é o que se não possui.
Dali a dias, estando em casa, na sala, pareceu-lhe ver uma moeda no chão.
Inclinou-se a apanhá-la; não era moeda, era uma simples carta. Abriu a carta
distraidamente e leu-a espantado: era de Reginaldo a Virgínia...
— Basta! interrompe-me o leitor; adivinho o resto. Virgínia casou com o
Reginaldo, as moedas passaram às mãos do Falcão, e eram falsas...
Não, senhor, eram verdadeiras. Era mais moral que, para castigo do nosso
homem, fossem falsas; mas, ai de mim! eu não sou Sêneca, não passo de um
Suetônio que contaria dez vezes a morte de César, se ele ressuscitasse dez vezes,
pois não tornaria à vida, senão para tornar ao império.

FULANOVenha o leitor comigo assistir à abertura do testamento do meu amigo Fulano
Beltrão. Conheceu-o? Era um homem de cerca de sessenta anos. Morreu ontem,
dois de janeiro de 1884, às onze horas e trinta minutos da noite. Não imagina a
força de ânimo que mostrou em toda a moléstia. Caiu na véspera de finados, e a
princípio supúnhamos que não fosse nada; mas a doença persistiu, e ao fim de
dois meses e poucos dias a morte o levou.
Eu confesso-lhe que estou curioso de ouvir o testamento. Há de conter por força
algumas determinações de interesse geral e honrosas para ele. Antes de 1863 não
seria assim, porque até então era um homem muito metido consigo, reservado,
morando no caminho do Jardim Botânico, para onde ia de ônibus ou de mula.
Tinha a mulher e o filho vivos, a filha solteira, com treze anos. Foi nesse ano que
ele começou a ocupar-se com outras coisas, além da família, revelando um
espírito universal e generoso. Nada posso afirmar-lhe sobre a causa disto. Creio
que foi uma apologia de amigo por ocasião dele fazer quarenta anos. Fulano
Beltrão leu no
Jornal do Comércio, no dia cinco de março de 1864, um artigo
anônimo em que se lhe diziam coisas belas e exatas: — bom pai, bom esposo,
amigo e pontual, cidadão digno, alma levantada e pura. Que se lhe fizesse justiça,
era muito; mas anonimamente, era raro.
— Você verá, disse Fulano Beltrão à mulher, você verá que isto é do Xavier ou do
Castro; logo rasgaremos o capote.
Castro e Xavier eram dois habituados da casa, parceiros constantes do voltarete e
velhos amigos do meu amigo. Costumavam dizer coisas amáveis, no dia cinco de
março, mas era ao jantar, na intimidade da família, entre quatro paredes;
impressos, era a primeira vez que ele se benzia com elogios. Pode ser que me
engane; mas estou que o espetáculo da justiça, a prova material de que as boas
qualidades e as boas ações não morrem no escuro, foi o que animou o meu amigo
a dispersar-se, a aparecer, a divulgar-se, a dar à coletividade humana um pouco
das virtudes com que nasceu. Considerou que milhares de pessoas estariam lendo
o artigo, à mesma hora em que o lia também; imaginou que o comentavam, que
interrogavam, que confirmavam, ouviu mesmo, por um fenômeno de alucinação
que a ciência há de explicar, e que não é raro, ouviu distintamente algumas vozes
do público. Ouviu que lhe chamavam homem de bem, cavalheiro distinto, amigo
dos amigos, laborioso, honesto, todos os qualificativos que ele vira empregados
em outros, e que na vida de bicho do mato em que ia, nunca presumiu que lhe
fossem — tipograficamente — aplicados.
— A imprensa é uma grande invenção, disse ele à mulher.
Foi ela, D. Maria Antônia, quem rasgou o capote; o artigo era do Xavier. Declarou
este que só em atenção à dona da casa confessava a autoria; e acrescentou que a
manifestação não saíra completa, porque a idéia dele era que o artigo fosse dado
em todos os jornais, não o tendo feito por havê-lo acabado às sete horas da noite.
Não houve tempo de tirar cópias. Fulano Beltrão emendou essa falta, se falta se
lhe podia chamar, mandando transcrever o artigo no
Diário do Rio e no Correio
Mercantil
.
Quando mesmo, porém, este fato não desse causa à mudança de vida do nosso
amigo, fica uma coisa de pé, a saber, que daquele ano em diante, e propriamente
do mês de março, é que ele começou a aparecer mais. Era até então um
casmurro, que não ia às assembléias das companhias, não votava nas eleições
políticas, não freqüentava teatros, nada, absolutamente nada. Já naquele mês de
março, a vinte e dois ou vinte e três, presenteou a Santa Casa de Misericórdia com
um bilhete da grande loteria de Espanha, e recebeu uma honrosa carta do
provedor, agradecendo em nome dos pobres. Consultou a mulher e os amigos, se
devia publicar a carta ou guardá-la, parecendo-lhe que não a publicar era uma

desatenção. Com efeito, a carta foi dada a vinte e seis de março, em todas as
folhas, fazendo uma delas comentários desenvolvidos acerca da piedade do
doador. Das pessoas que leram esta notícia, muitas naturalmente ainda se
lembravam do artigo do Xavier, e ligaram as duas ocorrências: "Fulano Beltrão é
aquele mesmo que, etc.", primeiro alicerce da reputação de um homem.
É tarde, temos de ir ouvir o testamento, não posso estar a contar-lhe tudo. Digolhe sumariamente que as injustiças da rua começaram a ter nele um vingador
ativo e discursivo; que as misérias, principalmente as misérias dramáticas, filhas
de um incêndio ou inundação, acharam no meu amigo a iniciativa dos socorros
que, em tais casos, devem ser prontos e públicos. Ninguém como ele para um
desses movimentos. Assim também com as alforrias de escravos. Antes da lei de
28 de setembro de 1871, era muito comum aparecerem na Praça do Comércio
crianças escravas, para cuja liberdade se pedia o favor dos negociantes. Fulano
Beltrão iniciava três quartas partes das subscrições, com tal êxito, que em poucos
minutos ficava o preço coberto.
A justiça que se lhe fazia, animava-o, e até lhe trazia lembranças que, sem ela, é
possível que nunca lhe tivessem acudido. Não falo do baile que ele deu para
celebrar a vitória de Riachuelo, porque era um baile planeado antes de chegar a
notícia da batalha, e ele não fez mais do que atribuir-lhe um motivo mais alto do
que a simples recreação da família, meter o retrato do almirante Barroso no meio
de um troféu de armas navais e bandeiras no salão de honra, em frente ao retrato
do imperador, e fazer, à ceia, alguns brindes patrióticos, como tudo consta dos
jornais de 1865.
Mas aqui vai, por exemplo, um caso bem característico da influência que a justiça
dos outros pode ter no nosso procedimento. Fulano Beltrão vinha um dia do
Tesouro, aonde tinha ido tratar de umas décimas. Ao passar pela igreja da
Lampadosa, lembrou-se que fora ali batizado; e nenhum homem tem uma
recordação destas, sem remontar o curso dos anos e dos acontecimentos, deitarse outra vez no colo materno, rir e brincar, como nunca mais se ri nem brinca.
Fulano Beltrão não escapou a este efeito; atravessou o adro, entrou na igreja, tão
singela, tão modesta, e para ele tão rica e linda. Ao sair, tinha uma resolução
feita, que pôs por obra dentro de poucos dias: mandou de presente à Lampadosa
um soberbo castiçal de prata, com duas datas, além do nome do doador — a data
da doação e a do batizado. Todos os jornais deram esta notícia, e até a receberam
em duplicata, porque a administração da igreja entendeu (com muita razão) que
também lhe cumpria divulgá-la aos quatro ventos.
No fim de três anos, ou menos, entrara o meu amigo nas cogitações públicas; o
nome dele era lembrado, mesmo quando nenhum sucesso recente vinha sugeri-lo,
e não só lembrado como adjetivado. Já se lhe notava a ausência em alguns
lugares. Já o iam buscar para outros. D. Maria Antônia via assim entrar-lhe no
Éden a serpente bíblica, não para tentá-la, mas para tentar a Adão. Com efeito, o
marido ia a tantas partes, cuidava de tantas coisas, mostrava-se tanto na Rua do
Ouvidor, à porta do Bernardo, que afrouxou a convivência antiga da casa. D. Maria
Antonia disse-lho. Ele concordou que era assim, mas demonstrou-lhe que não
podia ser de outro modo, e, em todo caso, se mudara de costumes, não mudara
de sentimentos. Tinha obrigações morais com a sociedade; ninguém se pertence
exclusivamente; daí um pouco de dispersão dos seus cuidados. A verdade é que
tinham vivido demasiadamente reclusos; não era justo nem bonito. Não era
mesmo conveniente; a filha caminhava para a idade do matrimônio, e casa
fechada cria morrinha de convento; por exemplo, um carro, por que é que não
teriam um carro? D. Maria Antônia sentiu um arrepio de prazer, mas curto;
protestou logo, depois de um minuto de reflexão.
— Não; carro para quê? Não; deixemo-nos de carro.
— Já está comprado, mentiu o marido.

Mas aqui chegamos ao juízo da provedoria. Não veio ainda ninguém; esperemos à
porta. Tem pressa? São vinte minutos no máximo. Pois é verdade, comprou uma
linda vitória; e, para quem, só por modéstia, andou tantos anos às costas de mula
ou apertado num ônibus, não era fácil acostumar-se logo ao novo veículo. A isso
atribuo eu as atitudes salientes e inclinadas com que ele andava, nas primeiras
semanas, os olhos que estendia a um lado e outro, à maneira de pessoa que
procura alguém ou uma casa. Afinal acostumou-se; passou a usar das atitudes
reclinadas, embora sem um certo sentimento de indiferença ou despreocupação,
que a mulher e a filha tinham muito bem, talvez por serem mulheres. Elas, aliás,
não gostavam de sair de carro; mas ele teimava tanto que saíssem, que fossem a
toda a parte, e até a parte nenhuma, que não tinham remédio senão obedecerlhe; e, na rua, era sabido, mal vinha ao longe a ponta do vestido de duas
senhoras, e na almofada um certo cocheiro, toda a gente dizia logo: — aí vem a
família de Fulano Beltrão. E isto mesmo, sem que ele talvez o pensasse, tornava-o
mais conhecido.
No ano de 1868 deu entrada na política. Sei do ano porque coincidiu com a queda
dos liberais e a subida dos conservadores. Foi em março ou abril de 1868 que ele
declarou aderir à situação, não à socapa, mas estrepitosamente. Este foi, talvez, o
ponto mais fraco da vida do meu amigo. Não tinha idéias políticas; quando muito,
dispunha de um desses temperamentos que substituem as idéias, e fazem crer
que um homem pensa, quando simplesmente transpira. Cedeu, porém, a uma
alucinação de momento. Viu-se na Câmara vibrando um aparte, ou inclinado sobre
a balaustrada, em conversa com o presidente do Conselho, que sorria para ele,
numa intimidade grave de governo. E aí é que a galeria, na exata acepção do
termo, tinha de o contemplar. Fez tudo o que pôde para entrar na Câmara; a meio
caminho caiu a situação. Voltando do atordoamento, lembrou-se de afirmar ao
Itaboraí o contrário do que dissera ao Zacarias, ou antes a mesma coisa; mas
perdeu a eleição, e deu de mão à política. Muito mais acertado andou, metendo-se
na questão da maçonaria com os prelados. Deixara-se estar quedo, a princípio;
por um lado, era maçom; por outro, queria respeitar os sentimentos religiosos da
mulher. Mas o conflito tomou tais proporções que ele não podia ficar calado;
entrou nele com o ardor, a expansão, a publicidade que metia em tudo; celebrou
reuniões em que falou muito da liberdade de consciência e do direito que assistia
ao maçom de enfiar uma opa; assinou protestos, representações, felicitações,
abriu a bolsa e o coração, escancaradamente.
Morreu-lhe a mulher em 1878. Ela pediu-lhe que a enterrasse sem aparato, e ele
assim o fez, porque a amava deveras e tinha a sua última vontade como um
decreto do céu. Já então perdera o filho; e a filha, casada, achava-se na Europa. O
meu amigo dividiu a dor com o público; e, se enterrou a mulher sem aparato, não
deixou de lhe mandar esculpir na Itália um magnífico mausoléu, que esta cidade
admirou exposto, na Rua do Ouvidor, durante perto de um mês. A filha ainda veio
assistir à inauguração. Deixei de os ver uns quatro anos. Ultimamente surgiu a
doença, que no fim de pouco mais de dois meses o levou desta para a melhor.
Note que, até começar a agonia, nunca perdeu a razão nem a força d'alma.
Conversava com as visitas, mandava-as relacionar, não esquecia mesmo noticiar
às que chegavam, as que acabavam de sair; coisa inútil, porque uma folha amiga
publicava-as todas. Na manhã do dia em que morreu ainda ouviu ler os jornais, e
num deles uma pequena comunicação relativamente à sua moléstia, o que de
algum modo pareceu reanimá-lo. Mas para a tarde enfraqueceu um pouco; à noite
expirou.
Vejo que está aborrecido. Realmente demoram-se... Espere; creio que são eles.
São; entremos. Cá está o nosso magistrado, que começa a ler o testamento. Está
ouvindo? Não era preciso esta minuciosa genealogia, excedente das práticas
tabelioas; mas isto mesmo de contar a família desde o quarto avô prova o espírito
exato e paciente do meu amigo. Não esquecia nada. O cerimonial do saimento é
longo e complicado, mas bonito. Começa agora a lista dos legados. São todos

pios; alguns industriais. Vá vendo a alma do meu amigo. Trinta contos...
Trinta contos para quê? Para servir de começo a uma subscrição pública destinada
a erigir uma estátua de Pedro Álvares Cabral. "Cabral, diz ali o testamento, não
pode ser olvidado dos brasileiros, foi o precursor do nosso império." Recomenda
que a estátua seja de bronze, com quatro medalhões no pedestal, a saber, o
retrato do bispo Coutinho, presidente da Constituinte, o de Gonzaga, chefe da
conjuração mineira, e o de dois cidadãos da presente geração "notáveis por seu
patriotismo e liberalidade", à escolha da comissão, que ele mesmo nomeou para
levar a empresa a cabo.
Que ela se realize, não sei; falta-nos a perseverança do fundador da verba. Dado,
porém, que a comissão se desempenhe da tarefa, e que este sol americano ainda
veja erguer-se a estátua de Cabral, é da nossa honra que ele contemple num dos
medalhões o retrato do meu finado amigo. Não lhe parece? Bem, o magistrado
acabou, vamos embora.
A SEGUNDA VIDAMonsenhor Caldas interrompeu a narração do desconhecido:
— Dá licença? é só um instante.
Levantou-se, foi ao interior da casa, chamou o preto velho que o servia, e disselhe em voz baixa:
— João, vai ali à estação de urbanos, fala da minha parte ao comandante, e pedelhe que venha cá com um ou dois homens, para livrar-me de um sujeito doido.
Anda, vai depressa.
E, voltando à sala:
— Pronto, disse ele; podemos continuar.
— Como ia dizendo a Vossa Reverendíssima, morri no dia vinte de março de 1860,
às cinco horas e quarenta e três minutos da manhã. Tinha então sessenta e oito
anos de idade. Minha alma voou pelo espaço, até perder a terra de vista, deixando
muito abaixo a lua, as estrelas e o sol; penetrou finalmente num espaço em que
não havia mais nada, e era clareado tão-somente por uma luz difusa. Continuei a
subir, e comecei a ver um pontinho mais luminoso ao longe, muito longe. O ponto
cresceu, fez-se sol. Fui por ali dentro, sem arder, porque as almas são
incombustíveis. A sua pegou fogo alguma vez?
— Não, senhor.
— São incombustíveis. Fui subindo, subindo; na distância de quarenta mil léguas,
ouvi uma deliciosa música, e logo que cheguei a cinco mil léguas, desceu um
enxame de almas, que me levaram num palanquim feito de éter e plumas. Entrei
daí a pouco no novo sol, que é o planeta dos virtuosos da terra. Não sou poeta,
monsenhor; não ouso descrever-lhe as magnificências daquela estância divina.
Poeta que fosse, não poderia, usando a linguagem humana, transmitir-lhe a
emoção da grandeza, do deslumbramento, da felicidade, os êxtases, as melodias,
os arrojos de luz e cores, uma coisa indefinível e incompreensível. Só vendo. Lá
dentro é que soube que completava mais um milheiro de almas; tal era o motivo
das festas extraordinárias que me fizeram, e que duraram dois séculos, ou, pelas
nossas contas, quarenta e oito horas. Afinal, concluídas as festas, convidaram-me
a tornar à terra para cumprir uma vida nova; era o privilégio de cada alma que
completava um milheiro. Respondi agradecendo e recusando, mas não havia

recusar. Era uma lei eterna. A única liberdade que me deram foi a escolha do
veículo; podia nascer príncipe ou condutor de ônibus. Que fazer? Que faria Vossa
Reverendíssima no meu lugar?
— Não posso saber; depende...
— Tem razão; depende das circunstâncias. Mas imagine que as minhas eram tais
que não me davam gosto a tornar cá. Fui vítima da inexperiência, monsenhor, tive
uma velhice ruim, por essa razão. Então lembrou-me que sempre ouvira dizer a
meu pai e outras pessoas mais velhas, quando viam algum rapaz: — "Quem me
dera aquela idade, sabendo o que sei hoje!" Lembrou-me isto, e declarei que me
era indiferente nascer mendigo ou potentado, com a condição de nascer
experiente. Não imagina o riso universal com que me ouviram. Jó, que ali preside
a província dos pacientes, disse-me que um tal desejo era disparate; mas eu
teimei e venci. Daí a pouco escorreguei no espaço: gastei nove meses a
atravessá-lo até cair nos braços de uma ama de leite, e chamei-me José Maria.
Vossa Reverendíssima é Romualdo, não?
— Sim, senhor; Romualdo de Sousa Caldas.
— Será parente do padre Sousa Caldas?
— Não, senhor.
— Bom poeta o padre Caldas. Poesia é um dom; eu nunca pude compor uma
décima. Mas, vamos ao que importa. Conto-lhe primeiro o que me sucedeu;
depois lhe direi o que desejo de Vossa Reverendíssima. Entretanto, se me
permitisse ir fumando...
Monsenhor Caldas fez um gesto de assentimento, sem perder de vista a bengala
que José Maria conservava atravessada sobre as pernas. Este preparou
vagarosamente um cigarro. Era um homem de trinta e poucos anos, pálido, com
um olhar ora mole e apagado, ora inquieto e centelhante. Apareceu ali, tinha o
padre acabado de almoçar, e pediu-lhe uma entrevista para negócio grave e
urgente. Monsenhor fê-lo entrar e sentar-se; no fim de dez minutos, viu que
estava com um lunático. Perdoava-lhe a incoerência das idéias ou o assombroso
das invenções; pode ser até que lhe servissem de estudo. Mas o desconhecido
teve um assomo de raiva, que meteu medo ao pacato clérigo. Que podiam fazer
ele e o preto, ambos velhos, contra qualquer agressão de um homem forte e
louco? Enquanto esperava o auxílio policial, Monsenhor Caldas desfazia-se em
sorrisos e assentimentos de cabeça, espantava-se com ele, alegrava-se com ele,
política útil com os loucos, as mulheres e os potentados.
José Maria acendeu finalmente o cigarro, e continuou:
— Renasci em cinco de janeiro de 1861. Não lhe digo nada da nova meninice,
porque aí a experiência teve só uma forma instintiva. Mamava pouco; chorava o
menos que podia para não apanhar pancada. Comecei a andar tarde, por medo de
cair, e daí me ficou uma tal ou qual fraqueza nas pernas. Correr e rolar, trepar nas
árvores, saltar paredões, trocar murros, coisas tão úteis, nada disso fiz, por medo
de contusão e sangue. Para falar com franqueza, tive uma infância aborrecida, e a
escola não o foi menos. Chamavam-me tolo e moleirão. Realmente, eu vivia
fugindo de tudo. Creia que durante esse tempo não escorreguei, mas também não
corria nunca. Palavra, foi um tempo de aborrecimento; e, comparando as cabeças
quebradas de outro tempo com o tédio de hoje, antes as cabeças quebradas.
Cresci; fiz-me rapaz, entrei no período dos amores... Não se assuste; serei casto,
como a primeira ceia. Vossa Reverendíssima sabe o que é uma ceia de rapazes e
mulheres?
— Como quer que saiba?...

— Tinha dezenove anos, continuou José Maria, e não imagina o espanto dos meus
amigos, quando me declarei pronto a ir a uma tal ceia... Ninguém esperava tal
coisa de um rapaz tão cauteloso, que fugia de tudo, dos sonos atrasados, dos
sonos excessivos, de andar sozinho a horas mortas, que vivia, por assim dizer, às
apalpadelas. Fui à ceia; era no Jardim Botânico, obra esplêndida. Comidas, vinhos,
luzes, flores, alegria dos rapazes, os olhos das damas, e, por cima de tudo, um
apetite de vinte anos. Há de crer que não comi nada? A lembrança de três
indigestões apanhadas quarenta anos antes, na primeira vida, fez-me recuar.
Menti dizendo que estava indisposto. Uma das damas veio sentar-se à minha
direita, para curar-me; outra levantou-se também, e veio para a minha esquerda,
com o mesmo fim. Você cura de um lado, eu curo do outro, disseram elas. Eram
lépidas, frescas, astuciosas, e tinham fama de devorar o coração e a vida dos
rapazes. Confesso-lhe que fiquei com medo e retraí-me. Elas fizeram tudo, tudo;
mas em vão. Vim de lá de manhã, apaixonado por ambas, sem nenhuma delas, e
caindo de fome. Que lhe parece? concluiu José Maria pondo as mãos nos joelhos, e
arqueando os braços para fora.
— Com efeito...
— Não lhe digo mais nada; Vossa Reverendíssima adivinhará o resto. A minha
segunda vida é assim uma mocidade expansiva e impetuosa, enfreada por uma
experiência virtual e tradicional. Vivo como Eurico, atado ao próprio cadáver...
Não, a comparação não é boa. Como lhe parece que vivo?
— Sou pouco imaginoso. Suponho que vive assim como um pássaro, batendo as
asas e amarrado pelos pés...
— Justamente. Pouco imaginoso? Achou a fórmula; é isso mesmo. Um pássaro,
um grande pássaro, batendo as asas, assim...
José Maria ergueu-se, agitando os braços, à maneira de asas. Ao erguer-se, caiulhe a bengala no chão; mas ele não deu por ela. Continuou a agitar os braços, em
pé, defronte do padre, e a dizer que era isso mesmo, um pássaro, um grande
pássaro... De cada vez que batia os braços nas coxas, levantava os calcanhares,
dando ao corpo uma cadência de movimentos, e conservava os pés unidos, para
mostrar que os tinha amarrados. Monsenhor aprovava de cabeça; ao mesmo
tempo afiava as orelhas para ver se ouvia passos na escada. Tudo silêncio. Só lhe
chegavam os rumores de fora: — carros e carroças que desciam, quitandeiras
apregoando legumes, e um piano da vizinhança. José Maria sentou-se finalmente,
depois de apanhar a bengala, e continuou nestes termos:
— Um pássaro, um grande pássaro. Para ver quanto é feliz a comparação, basta a
aventura que me traz aqui, um caso de consciência, uma paixão, uma mulher,
uma viúva, D. Clemência. Tem vinte e seis anos, uns olhos que não acabam mais,
não digo no tamanho, mas na expressão, e duas pinceladas de buço, que lhe
completam a fisionomia. É filha de um professor jubilado. Os vestidos pretos
ficam-lhe tão bem que eu às vezes digo-lhe rindo que ela não enviuvou senão
para andar de luto. Caçoadas! Conhecemo-nos há um ano, em casa de um
fazendeiro de Cantagalo. Saímos namorados um do outro. Já sei o que me vai
perguntar: por que é que não nos casamos, sendo ambos livres...
— Sim, senhor.
— Mas, homem de Deus! é essa justamente a matéria da minha aventura. Somos
livres, gostamos um do outro, e não nos casamos: tal é a situação tenebrosa que
venho expor a Vossa Reverendíssima, e que a sua teologia ou o que quer que
seja, explicará, se puder. Voltamos para a Corte namorados. Clemência morava
com o velho pai, e um irmão empregado no comércio; relacionei-me com ambos,
e comecei a freqüentar a casa, em Mata-cavalos. Olhos, apertos de mão, palavras

soltas, outras ligadas, uma frase, duas frases, e estávamos amados e
confessados. Uma noite, no patamar da escada, trocamos o primeiro beijo...
Perdoe estas coisas, monsenhor; faça de conta que me está ouvindo de confissão.
Nem eu lhe digo isto senão para acrescentar que saí dali tonto, desvairado, com a
imagem de Clemência na cabeça e o sabor do beijo na boca. Errei cerca de duas
horas, planeando uma vida única; determinei pedir-lhe a mão no fim da semana, e
casar daí a um mês. Cheguei às derradeiras minúcias, cheguei a redigir e ornar de
cabeça as cartas de participação. Entrei em casa depois de meia-noite, e toda essa
fantasmagoria voou, como as mutações à vista nas antigas peças de teatro. Veja
se adivinha como.
— Não alcanço...
— Considerei, no momento de despir o colete, que o amor podia acabar depressa;
tem-se visto algumas vezes. Ao descalçar as botas, lembrou-me coisa pior: —
podia ficar o fastio. Concluí a
toilette de dormir, acendi um cigarro, e, reclinado no
canapé, pensei que o costume, a convivência, podia salvar tudo; mas, logo depois,
adverti que as duas índoles podiam ser incompatíveis; e que fazer com duas
índoles incompatíveis e inseparáveis? Mas, enfim, dei de barato tudo isso, porque
a paixão era grande, violenta; considerei-me casado, com uma linda criancinha...
Uma? duas, seis, oito; podiam vir oito, podiam vir dez; algumas aleijadas.
Também podia vir uma crise, duas crises, falta de dinheiro, penúria, doenças;
podia vir alguma dessas afeições espúrias que perturbam a paz doméstica...
Considerei tudo e concluí que o melhor era não casar. O que não lhe posso contar
é o meu desespero; faltam-me expressões para lhe pintar o que padeci nessa
noite... Deixa-me fumar outro cigarro?
Não esperou resposta, fez o cigarro, e acendeu-o. Monsenhor não podia deixar de
admirar-lhe a bela cabeça, no meio do desalinho próprio do estado; ao mesmo
tempo notou que ele falava em termos polidos, e, que apesar dos rompantes
mórbidos, tinha maneiras. Quem diabo podia ser esse homem? José Maria
continuou a história, dizendo que deixou de ir à casa de Clemência, durante seis
dias, mas não resistiu às cartas e às lágrimas. No fim de uma semana correu para
lá, e confessou-lhe tudo, tudo. Ela ouviu-o com muito interesse, e quis saber o
que era preciso para acabar com tantas cismas, que prova de amor queria que ela
lhe desse. — A resposta de José Maria foi uma pergunta.
— Está disposta a fazer-me um grande sacrifício? disse-lhe eu. Clemência jurou
que sim. "Pois bem, rompa com tudo, família e sociedade; venha morar comigo;
casamo-nos depois desse noviciado". Compreendo que Vossa Reverendíssima
arregale os olhos. Os dela encheram-se de lágrimas; mas, apesar de humilhada,
aceitou tudo. Vamos; confesse que sou um monstro.
— Não, senhor...
— Como não? Sou um monstro. Clemência veio para minha casa, e não imagina as
festas com que a recebi. "Deixo tudo, disse-me ela; você é para mim o universo."
Eu beijei-lhe os pés, beijei-lhe os tacões dos sapatos. Não imagina o meu
contentamento. No dia seguinte, recebi uma carta tarjada de preto; era a notícia
da morte de um tio meu, em Santa Ana do Livramento, deixando-me vinte mil
contos. Fiquei fulminado. "Entendo, disse a Clemência, você sacrificou tudo,
porque tinha notícia da herança". Desta vez, Clemência não chorou, pegou em si e
saiu. Fui atrás dela, envergonhado, pedi-lhe perdão; ela resistiu. Um dia, dois
dias, três dias, foi tudo vão; Clemência não cedia nada, não falava sequer. Então
declarei-lhe que me mataria; comprei um revólver, fui ter com ela, e apresenteilho: é este.
Monsenhor Caldas empalideceu. José Maria mostrou-lhe o revólver, durante alguns
segundos, tornou a metê-lo na algibeira, e continuou:

— Cheguei a dar um tiro. Ela, assustada, desarmou-me e perdoou-me. Ajustamos
precipitar o casamento, e, pela minha parte, impus uma condição: doar os vinte
mil contos à Biblioteca Nacional. Clemência atirou-se-me aos braços, e aprovoume com um beijo. Dei os vinte mil contos. Há de ter lido nos jornais... Três
semanas depois casamo-nos. Vossa Reverendíssima respira como quem chegou ao
fim. Qual! Agora é que chegamos ao trágico. O que posso fazer é abreviar umas
particularidades e suprimir outras; restrinjo-me a Clemência. Não lhe falo de
outras emoções truncadas, que são todas as minhas, abortos de prazer, planos
que se esgarçam no ar, nem das ilusões de saia rota, nem do tal pássaro... plás...
plás... plás...
E, de um salto, José Maria ficou outra vez de pé, agitando os braços, e dando ao
corpo uma cadência. Monsenhor Caldas começou a suar frio. No fim de alguns
segundos, José Maria parou, sentou-se, e reatou a narração, agora mais difusa,
mais derramada, evidentemente mais delirante. Contava os sustos em que vivia,
desgostos e desconfianças. Não podia comer um figo às dentadas, como outrora;
o receio do bicho diminuía-lhe o sabor. Não cria nas caras alegres da gente que ia
pela rua: preocupações, desejos, ódios, tristezas, outras coisas, iam dissimuladas
por umas três quartas partes delas. Vivia a temer um filho cego ou surdo-mudo,
ou tuberculoso, ou assassino, etc. Não conseguia dar um jantar que não ficasse
triste logo depois da sopa, pela idéia de que uma palavra sua, um gesto da
mulher, qualquer falta de serviço podia sugerir o epigrama digestivo, na rua,
debaixo de um lampião. A experiência dera-lhe o terror de ser empulhado.
Confessava ao padre que, realmente, não tinha até agora lucrado nada; ao
contrário, perdera até, porque fora levado ao sangue... Ia contar-lhe o caso do
sangue. Na véspera, deitara-se cedo, e sonhou... Com quem pensava o padre que
ele sonhou?
— Não atino...
— Sonhei que o Diabo lia-me o Evangelho. Chegando ao ponto em que Jesus fala
dos lírios do campo, o Diabo colheu alguns e deu-mos. "Toma, disse-me ele; são
os lírios da Escritura; segundo ouviste, nem Salomão em toda a pompa, pode
ombrear com eles. Salomão é a sapiência. Sabes o que são estes lírios, José? São
os teus vinte anos". Fitei-os encantado; eram lindos como não imagina. O Diabo
pegou deles, cheirou-os e disse-me que os cheirasse também. Não lhe digo nada;
no momento de os chegar ao nariz, vi sair de dentro um réptil fedorento e torpe,
dei um grito, e arrojei para longe as flores. Então, o Diabo, escancarando uma
formidável gargalhada: "José Maria, são os teus vinte anos". Era uma gargalhada
assim: — cá, cá, cá, cá, cá...
José Maria ria à solta, ria de um modo estridente e diabólico. De repente, parou;
levantou-se, e contou que, tão depressa abriu os olhos, como viu a mulher diante
dele, aflita e desgrenhada. Os olhos de Clemência eram doces, mas ele disse-lhe
que os olhos doces também fazem mal. Ela arrojou-se-lhe aos pés... Neste ponto
a fisionomia de José Maria estava tão transtornada que o padre, também de pé,
começou a recuar, trêmulo e pálido. "Não, miserável! não! tu não me fugirás!"
bradava José Maria investindo para ele. Tinha os olhos esbugalhados, as têmporas
latejantes; o padre ia recuando... recuando... Pela escada acima ouvia-se um
rumor de espadas e de pés.
NOITE DE ALMIRANTEDeolindo Venta-Grande (era uma alcunha de bordo) saiu ao Arsenal de Marinha e
enfiou pela Rua de Bragança. Batiam três horas da tarde. Era a fina flor dos
marujos e, demais, levava um grande ar de felicidade nos olhos. A corveta dele
voltou de uma longa viagem de instrução, e Deolindo veio à terra tão depressa
alcançou licença. Os companheiros disseram-lhe, rindo:

— Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os
braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva...
Deolindo sorriu. Era assim mesmo, uma noite de almirante, como eles dizem, uma
dessas grandes noites de almirante que o esperava em terra. Começara a paixão
três meses antes de sair a corveta. Chamava-se Genoveva, caboclinha de vinte
anos, esperta, olho negro e atrevido. Encontraram-se em casa de terceiro e
ficaram morrendo um pelo outro, a tal ponto que estiveram prestes a dar uma
cabeçada, ele deixaria o serviço e ela o acompanharia para a vila mais recôndita
do interior.
A velha Inácia, que morava com ela, dissuadiu-os disso; Deolindo não teve
remédio senão seguir em viagem de instrução. Eram oito ou dez meses de
ausência. Como fiança recíproca, entenderam dever fazer um juramento de
fidelidade.
— Juro por Deus que está no céu. E você?
— Eu também.
— Diz direito.
— Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte.
Estava celebrado o contrato. Não havia descrer da sinceridade de ambos; ela
chorava doidamente, ele mordia o beiço para dissimular. Afinal separaram-se,
Genoveva foi ver sair a corveta e voltou para casa com um tal aperto no coração
que parecia que "lhe ia dar uma coisa". Não lhe deu nada, felizmente; os dias
foram passando, as semanas, os meses, dez meses, ao cabo dos quais, a corveta
tornou e Deolindo com ela.
Lá vai ele agora, pela rua de Bragança, Prainha e Saúde, até ao princípio da
Gamboa, onde mora Genoveva. A casa é uma rotulazinha escura, portal rachado
do sol, passando o Cemitério dos Ingleses; lá deve estar Genoveva, debruçada à
janela, esperando por ele. Deolindo prepara uma palavra que lhe diga. Já formulou
esta: "Jurei e cumpri", mas procura outra melhor. Ao mesmo tempo lembra as
mulheres que viu por esse mundo de Cristo, italianas, marselhesas ou turcas,
muitas delas bonitas, ou que lhe pareciam tais. Concorda que nem todas seriam
para os beiços dele, mas algumas eram, e nem por isso fez caso de nenhuma. Só
pensava em Genoveva. A mesma casinha dela, tão pequenina, e a mobília de pé
quebrado, tudo velho e pouco, isso mesmo lhe lembrava diante dos palácios de
outras terras. Foi à custa de muita economia que comprou em Trieste um par de
brincos, que leva agora no bolso com algumas bugigangas. E ela que lhe
guardaria? Pode ser que um lenço marcado com o nome dele e uma âncora na
ponta, porque ela sabia marcar muito bem. Nisto chegou à Gamboa, passou o
cemitério e deu com a casa fechada. Bateu, falou-lhe uma voz conhecida, a da
velha Inácia, que veio abrir-lhe a porta com grandes exclamações de prazer.
Deolindo, impaciente, perguntou por Genoveva.
— Não me fale nessa maluca, arremeteu a velha. Estou bem satisfeita com o
conselho que lhe dei. Olhe lá se fugisse. Estava agora como o lindo amor.
— Mas que foi? que foi?
A velha disse-lhe que descansasse, que não era nada, uma dessas coisas que
aparecem na vida; não valia a pena zangar-se. Genoveva andava com a cabeça
virada...
— Mas virada por quê?

— Está com um mascate, José Diogo. Conheceu José Diogo, mascate de fazendas?
Está com ele. Não imagina a paixão que eles têm um pelo outro. Ela então anda
maluca. Foi o motivo da nossa briga. José Diogo não me saía da porta; eram
conversas e mais conversas, até que eu um dia disse que não queria a minha casa
difamada. Ah! meu pai do céu! foi um dia de juízo. Genoveva investiu para mim
com uns olhos deste tamanho, dizendo que nunca difamou ninguém e não
precisava de esmolas. Que esmolas, Genoveva? O que digo é que não quero esses
cochichos à porta, desde as ave-marias... dois dias depois estava mudada e
brigada comigo.
— Onde mora ela?
— Na Praia Formosa, antes de chegar à pedreira, uma rótula pintada de novo.
Deolindo não quis ouvir mais nada. A velha Inácia, um tanto arrependida, ainda
lhe deu avisos de prudência, mas ele não os escutou e foi andando. Deixo de notar
o que pensou em todo o caminho; não pensou nada. As idéias marinhavam-lhe no
cérebro, como em hora de temporal, no meio de uma confusão de ventos e apitos.
Entre elas rutilou a faca de bordo, ensangüentada e vingadora. Tinha passado a
Gamboa, o Saco do Alferes, entrara na praia Formosa. Não sabia o número de
casa, mas era perto da pedreira, pintada de novo, e com auxílio da vizinhança
poderia achá-la. Não contou com o acaso que pegou de Genoveva e fê-la sentar à
janela, cosendo, no momento em que Deolindo ia passando. Ele conheceu-a e
parou; ela, vendo o vulto de um homem, levantou os olhos e deu com o marujo.
— Que é isso? exclamou espantada. Quando chegou? Entre, seu Deolindo.
E, levantando-se, abriu a rótula e fê-lo entrar. Qualquer outro homem ficaria
alvoroçado de esperanças, tão francas eram as maneiras da rapariga; podia ser
que a velha se enganasse ou mentisse; podia ser mesmo que a cantiga do
mascate estivesse acabada. Tudo isso lhe passou pela cabeça, sem a forma
precisa do raciocínio ou da reflexão, mas em tumulto e rápido. Genoveva deixou a
porta aberta: fê-lo sentar-se, pediu-lhe notícias da viagem e achou-o mais gordo;
nenhuma comoção nem intimidade. Deolindo perdeu a última esperança. Em falta
de faca, bastavam-lhe as mãos para estrangular Genoveva, que era um pedacinho
de gente, e durante os primeiros minutos não pensou em outra coisa.
— Sei tudo, disse ele.
— Quem lhe contou?
Deolindo levantou os ombros.
— Fosse quem fosse, tornou ela, disseram-lhe que eu gostava muito de um moço?
— Disseram.
— Disseram a verdade.
Deolindo chegou a ter um ímpeto; ela fê-lo parar só com a ação dos olhos. Em
seguida disse que, se lhe abrira a porta, é porque contava que era homem de
juízo. Contou-lhe então tudo, as saudades que curtira, as propostas do mascate,
as suas recusas, até que um dia, sem saber como, amanhecera gostando dele.
— Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia que lhe diga se não
chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou... Conto-lhe tudo isto, como se
estivesse diante do padre, concluiu sorrindo.
Não sorria de escárnio. A expressão das palavras é que era uma mescla de

candura e cinismo, de insolência e simplicidade, que desisto de definir melhor.
Creio até que insolência e cinismo são mal aplicados. Genoveva não se defendia de
um erro ou de um perjúrio; não se defendia de nada; faltava-lhe o padrão moral
das ações. O que dizia, em resumo, é que era melhor não ter mudado, dava-se
bem com a afeição do Deolindo, a prova é que quis fugir com ele; mas, uma vez
que o mascate venceu o marujo, a razão era do mascate, e cumpria declará-lo.
Que vos parece? O pobre marujo citava o juramento de despedida, como uma
obrigação eterna, diante da qual consentira em não fugir e embarcar: "Juro por
Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte". Se embarcou, foi porque
ela lhe jurou isso. Com essas palavras é que andou, viajou, esperou e tornou;
foram elas que lhe deram a força de viver. Juro por Deus que está no céu; a luz
me falte na hora da morte...
— Pois, sim, Deolindo, era verdade. Quando jurei, era verdade. Tanto era verdade
que eu queria fugir com você para o sertão. Só Deus sabe se era verdade! Mas
vieram outras coisas... Veio este moço e eu comecei a gostar dele...
— Mas a gente jura é para isso mesmo; é para não gostar de mais ninguém...
— Deixa disso, Deolindo. Então você só se lembrou de mim? Deixa de partes...
— A que horas volta José Diogo?
— Não volta hoje.
— Não?
— Não volta; está lá para os lados de Guaratiba com a caixa; deve voltar sextafeira ou sábado... E por que é que você quer saber? Que mal lhe fez ele?
Pode ser que qualquer outra mulher tivesse igual palavra; poucas lhe dariam uma
expressão tão cândida, não de propósito, mas involuntariamente. Vede que
estamos aqui muito próximos da natureza. Que mal lhe fez ele? Que mal lhe fez
esta pedra que caiu de cima? Qualquer mestre de física lhe explicaria a queda das
pedras. Deolindo declarou, com um gesto de desespero, que queria matá-lo.
Genoveva olhou para ele com desprezo, sorriu de leve e deu um muxoxo; e, como
ele lhe falasse de ingratidão e perjúrio, não pôde disfarçar o pasmo. Que perjúrio?
Que ingratidão? Já lhe tinha dito e repetia que quando jurou era verdade. Nossa
Senhora, que ali estava, em cima da cômoda, sabia se era verdade ou não. Era
assim que lhe pagava o que padeceu? E ele que tanto enchia a boca de fidelidade,
tinha-se lembrado dela por onde andou?
A resposta dele foi meter a mão no bolso e tirar o pacote que lhe trazia. Ela abriuo, aventou as bugigangas, uma por uma, e por fim deu com os brincos. Não eram
nem poderiam ser ricos; eram mesmo de mau gosto, mas faziam uma vista de
todos os diabos. Genoveva pegou deles, contente, deslumbrada, mirou-os por um
lado e outro, perto e longe dos olhos, e afinal enfiou-os nas orelhas; depois foi ao
espelho de pataca, suspenso na parede, entre a janela e a rótula, para ver o efeito
que lhe faziam. Recuou, aproximou-se, voltou a cabeça da direita para a esquerda
e da esquerda para a direita.
— Sim, senhor, muito bonito, disse ela, fazendo uma grande mesura de
agradecimento. Onde é que comprou?
Creio que ele não respondeu nada, nem teria tempo para isso, porque ela disparou
mais duas ou três perguntas, uma atrás da outra, tão confusa estava de receber
um mimo a troco de um esquecimento. Confusão de cinco ou quatro minutos;
pode ser que dois. Não tardou que tirasse os brincos, e os contemplasse e pusesse
na caixinha em cima da mesa redonda que estava no meio da sala. Ele pela sua
parte começou a crer que, assim como a perdeu, estando ausente, assim o outro,

ausente, podia também perdê-la; e, provavelmente, ela não lhe jurara nada.
— Brincando, brincando, é noite, disse Genoveva.
Com efeito, a noite ia caindo rapidamente. Já não podiam ver o Hospital dos
Lázaros e mal distinguiam a ilha dos Melões; as mesmas lanchas e canoas, postas
em seco, defronte da casa, confundiram-se com a terra e o lodo da praia.
Genoveva acendeu uma vela. Depois foi sentar-se na soleira da porta e pediu-lhe
que contasse alguma coisa das terras por onde andara. Deolindo recusou a
princípio; disse que se ia embora, levantou-se e deu alguns passos na sala. Mas o
demônio da esperança mordia e babujava o coração do pobre diabo, e ele voltou a
sentar-se, para dizer duas ou três anedotas de bordo. Genoveva escutava com
atenção. Interrompidos por uma mulher da vizinhança, que ali veio, Genoveva fê-
la sentar-se também para ouvir "as bonitas histórias que o Sr. Deolindo estava
contando". Não houve outra apresentação. A grande dama que prolonga a vigília
para concluir a leitura de um livro ou de um capítulo, não vive mais intimamente a
vida dos personagens do que a antiga amante do marujo vivia as cenas que ele ia
contando, tão livremente interessada e presa, como se entre ambos não houvesse
mais que uma narração de episódios. Que importa à grande dama o autor do
livro? Que importava a esta rapariga o contador dos episódios?
A esperança, entretanto, começava a desampará-lo e ele levantou-se
definitivamente para sair. Genoveva não quis deixá-lo sair antes que a amiga visse
os brincos, e foi mostrar-lhos com grandes encarecimentos. A outra ficou
encantada, elogiou-os muito, perguntou se os comprara em França e pediu a
Genoveva que os pusesse.
— Realmente, são muito bonitos.
Quero crer que o próprio marujo concordou com essa opinião. Gostou de os ver,
achou que pareciam feitos para ela e, durante alguns segundos, saboreou o prazer
exclusivo e superfino de haver dado um bom presente; mas foram só alguns
segundos.
Como ele se despedisse, Genoveva acompanhou-o até à porta para lhe agradecer
ainda uma vez o mimo, e provavelmente dizer-lhe algumas coisas meigas e
inúteis. A amiga, que deixara ficar na sala, apenas lhe ouviu esta palavra: "Deixa
disso, Deolindo"; e esta outra do marinheiro: "Você verá." Não pôde ouvir o resto,
que não passou de um sussurro.
Deolindo seguiu, praia fora, cabisbaixo e lento, não já o rapaz impetuoso da tarde,
mas com um ar velho e triste, ou, para usar outra metáfora de marujo, como um
homem "que vai do meio caminho para terra". Genoveva entrou logo depois,
alegre e barulhenta. Contou à outra a anedota dos seus amores marítimos, gabou
muito o gênio do Deolindo e os seus bonitos modos; a amiga declarou achá-lo
grandemente simpático.
— Muito bom rapaz, insistiu Genoveva. Sabe o que ele me disse agora?
— Que foi?
— Que vai matar-se.
— Jesus!
— Qual o quê! Não se mata, não. Deolindo é assim mesmo; diz as coisas, mas não
faz. Você verá que não se mata. Coitado, são ciúmes. Mas os brincos são muito
engraçados.
— Eu aqui ainda não vi destes.

— Nem eu, concordou Genoveva, examinando-os à luz. Depois guardou-os e
convidou a outra a coser. — Vamos coser um bocadinho, quero acabar o meu
corpinho azul...
A verdade é que o marinheiro não se matou. No dia seguinte, alguns dos
companheiros bateram-lhe no ombro, cumprimentando-o pela noite de almirante,
e pediram-lhe notícias de Genoveva, se estava mais bonita, se chorara muito na
ausência, etc. Ele respondia a tudo com um sorriso satisfeito e discreto, um sorriso
de pessoa que viveu uma grande noite. Parece que teve vergonha da realidade e
preferiu mentir.
MANUSCRITO DE UM SACRISTÃO
ÍNDICE
CAPÍTULO PRIMEIRO
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO PRIMEIRO............ Ao dar com o padre Teófilo falando a uma senhora, ambos sentadinhos
no banco da igreja, e a igreja deserta, confesso que fiquei espantado. Note-se que
conversavam em voz tão baixa e discreta, que eu, por mais que afiasse o ouvido e
me demorasse a apagar as velas do altar, não podia apanhar nada, nada, nada.
Não tive remédio senão adivinhar alguma coisa. Que eu sou um sacristão filósofo.
Ninguém me julgue pela sobrepeliz rota e amarrotada nem pelo uso clandestino
das galhetas. Sou um filósofo sacristão. Tive estudos eclesiásticos, que interrompi
por causa de uma doença e que inteiramente deixei por outro motivo, uma paixão
violenta, que me trouxe à miséria. Como o seminário deixa sempre um certo
vinco, fiz-me sacristão aos trinta anos, para ganhar a vida. Venhamos, porém, ao
nosso padre e à nossa dama.
CAPÍTULO II
Antes de ir adiante, direi que eram primos. Soube depois que eram primos,
nascidos em Vassouras. Os pais dela mudaram-se para a Corte, tendo Eulália (é o
seu nome) sete anos. Teófilo veio depois. Na família era uso antigo que um dos
rapazes fosse padre. Vivia ainda na Bahia um tio dele, cônego. Cabendo-lhe nesta
geração envergar a batina, veio para o seminário de S. José, no ano de mil
oitocentos e cinqüenta e tantos, e foi aí que o conheci. Compreende-se o
sentimento de discrição que me leva a deixar a data no ar.
CAPÍTULO IIINo seminário, dizia-nos o lente de retórica:
— A teologia é a cabeça do gênero humano, o latim a perna esquerda, e a retórica
a perna direita.
Justamente da perna direita é que o Teófilo coxeava. Sabia muito as outras coisas:
teologia, filosofia, latim, história sagrada; mas a retórica é que lhe não entrava no
cérebro. Ele, para desculpar-se, dizia que a palavra divina não precisava de
adornos. Tinha então vinte ou vinte e dois anos de idade, e era lindo como S.
João.
Já nesse tempo era um místico; achava em todas as coisas uma significação
recôndita. A vida era uma eterna missa, em que o mundo servia de altar, a alma
de sacerdote e o corpo de acólito; nada respondia à realidade exterior. Vivia
ansioso de tomar ordens para sair a pregar grandes coisas, espertar as almas,
chamar os corações à Igreja, e renovar o gênero humano. Entre todos os
apóstolos, amava principalmente São Paulo.
Não sei se o leitor é da minha opinião; eu cuido que se pode avaliar um homem
pelas suas simpatias históricas; tu serás mais ou menos da família dos
personagens que amares deveras. Aplico assim aquela lei de Helvetius: "O grau de
espírito que nos deleita dá a medida exata do grau de espírito que possuímos". No
nosso caso, ao menos, a regra não falhou. Teófilo amava São Paulo, adorava-o,
estudava-o dia e noite, parecia viver daquele converso que ia de cidade em
cidade, à custa de um ofício mecânico, espalhando a boa nova aos homens. Nem
tinha somente esse modelo, tinha mais dois: Hildebrando e Loiola. Daqui podeis
concluir que nasceu com a fibra da peleja e do apostolado. Era um faminto de
ideal e criação, olhando todas as coisas correntes por cima da cabeça do século.
Na opinião de um cônego, que lá ia ao seminário, o amor dos dois modelos últimos
temperava o que pudesse haver perigoso em relação ao primeiro.
— Não vá o senhor cair no excesso e no exclusivo, disse-lhe um dia com brandura;
não pareça que, exaltando somente a Paulo, intenta diminuir Pedro. A igreja, que
os comemora ao lado um do outro, meteu-os ambos no Credo; mas veneremos
Paulo e obedeçamos a Pedro.
Super hanc petram...Os seminaristas gostavam do Teófilo, principalmente três, um Vasconcelos, um
Soares e um Veloso, todos excelentes retóricos. Eram também bons rapazes,
alegres por natureza, graves por necessidade e ambiciosos. Vasconcelos jurava
que seria bispo; Soares contentava-se com algum grande cargo; Veloso cobiçava
as meias roxas de cônego e um púlpito. Teófilo tentou repartir com eles o pão
místico dos seus sonhos, mas reconheceu depressa que era manjar leve ou pesado
demais, e passou a devorá-lo sozinho. Até aqui o padre; vamos agora à dama.
CAPÍTULO IV
Agora a dama. No momento em que os vi falar baixinho na igreja, Eulália contava
trinta e oito anos de idade. Juro-lhes que era ainda bonita. Não era pobre; os pais
deixaram-lhe alguma coisa. Nem casada; recusou cinco ou seis pretendentes.
Este ponto nunca foi entendido pelas amigas. Nenhuma delas era capaz de repelir
um noivo. Creio até que não pediam outra coisa, quando rezavam antes de entrar
na cama, e ao domingo, à missa, no momento de levantar a Deus. Por que é que
Eulália recusava-os todos? Vou dizer desde já o que soube depois. Supuseram-lhe,
a princípio, um simples desdém, — nariz torcido, dizia uma delas; — mas, no fim
da terceira recusa, inclinaram-se a crer que havia namoro encoberto, e esta
explicação prevaleceu. A própria mãe de Eulália não aceitou outra. Não lhe
importaram as primeiras recusas; mas, repetindo-se, ela começou a assustar-se.
Um dia, voltando de um casamento, perguntou à filha, no carro em que vinham,
se não se lembrava que tinha de ficar só.
— Ficar só?
— Sim, um dia hei de morrer. Por ora tudo são flores; cá estou para governar a
casa; e você é só ler, cismar, tocar e brincar; mas eu tenho de morrer, Eulália, e
você tem de ficar só...
Eulália apertou-lhe muito a mão, sem poder dizer palavra. Nunca pensara na
morte da mãe; perdê-la era perder metade de si mesma. Na expansão de
momento, a mãe atreveu-se a perguntar-lhe se amava alguém e não era
correspondida. Eulália respondeu que não. Não simpatizara com os candidatos. A
boa velha abanou a cabeça; falou dos vinte e sete anos da filha, procurou aterrá-
la com os trinta, disse-lhe que, se nem todos os noivos a mereciam igualmente,
alguns eram dignos de ser aceitos, e que importava a falta de amor? O amor
conjugal podia ser assim mesmo; podia nascer depois, como um fruto da
convivência. Conhecera pessoas que se casaram por simples interesse de família e
acabaram amando-se muito. Esperar uma grande paixão para casar era arriscarse a morrer esperando.
— Pois sim, mamãe, deixe estar...
E, reclinando a cabeça, fechou um pouco os olhos para espiar alguém, para ver o
namorado encoberto, que não era só encoberto, mas também e principalmente
impalpável. Concordo que isto agora é obscuro; não tenho dúvida em dizer que
entramos em pleno sonho.
Eulália era uma esquisita, para usarmos a linguagem da mãe, ou romanesca, para
empregarmos a definição das amigas. Tinha, em verdade, uma singular
organização. Saiu ao pai. O pai nascera com o amor do enigmático, do arriscado e
do obscuro; morreu quando aparelhava uma expedição para ir à Bahia descobrir a
"cidade abandonada". Eulália recebeu essa herança moral, modificada ou agravada
pela natureza feminil. Nela dominava principalmente a contemplação. Era na
cabeça que ela descobria as cidades abandonadas. Tinha os olhos dispostos de
maneira que não podiam apanhar integralmente os contornos da vida. Começou
idealizando as coisas, e, se não acabou negando-as, é certo que o sentimento da
realidade esgarçou-se-lhe até chegar à transparência fina em que o tecido parece
confundir-se com o ar.
Aos dezoito anos, recusou o primeiro casamento. A razão é que esperava outro,
um marido extraordinário, que ela viu e conversou, em sonho ou alucinação, a
mais radiosa figura do universo, a mais sublime e rara, uma criatura em que não
havia falha ou quebra, verdadeira gramática sem irregularidades, pura língua sem
solecismos.
Perdão, interrompe-me uma senhora, esse noivo não é obra exclusiva de Eulália, é

o marido de todas as virgens de dezessete anos. Perdão, digo-lhe eu, há uma
diferença entre Eulália e as outras, é que as outras trocam finalmente o original
esperado por uma cópia gravada, antes ou depois da letra, e às vezes por uma
simples fotografia ou litografia, ao passo que Eulália continuou a esperar o painel
autêntico. Vinham as gravuras, vinham as litografias, algumas muito bem
acabadas, obra de artista e grande artista, mas para ela traziam o defeito de ser
cópias. Tinha fome e sede de originalidade. A vida comum parecia-lhe uma cópia
eterna. As pessoas do seu conhecimento caprichavam em repetir as idéias umas
das outras, com iguais palavras, e às vezes sem diferente inflexão, à semelhança
do vestuário que usavam, e que era do mesmo gosto e feitio. Se ela visse alvejar
na rua um turbante mourisco ou flutuar um penacho, pode ser que perdoasse o
resto; mas nada, coisa nenhuma, uma constante uniformidade de idéias e coletes.
Não era outro o pecado mortal das coisas. Mas, como tinha a faculdade de viver
tudo o que sonhava, continuou a esperar uma vida nova e um marido único.
Enquanto esperava, as outras iam casando. Assim perdeu ela as três principais
amigas: Júlia Costinha, Josefa e Mariana. Viu-as todas casadas, viu-as mães, a
princípio de um filho, depois de dois, de quatro e de cinco. Visitava-as, assistia ao
viver delas, sereno e alegre, medíocre, vulgar, sem sonhos nem quedas, mais ou
menos feliz. Assim se passaram os anos; assim chegou aos trinta, aos trinta e
três, aos trinta e cinco, e finalmente aos trinta e oito em que a vemos na igreja,
conversando com o padre Teófilo.
CAPÍTULO VNaquele dia mandara dizer uma missa por alma da mãe, que morrera um ano
antes. Não convidou ninguém: foi ouvi-la sozinha. Ouviu-a, rezou, depois sentouse no banco.
Eu, depois de ajudar à missa, voltei para a sacristia, e vi ali o padre Teófilo, que
viera da roça duas semanas antes e andava à cata de alguma missa para comer.
Parece que ele ouviu do outro sacristão ou do mesmo padre oficiante o nome da
pessoa sufragada; viu que era o da tia e correu à igreja, onde ainda achou a prima
no banco. Sentou-se ao pé dela, esquecido do lugar e das posições, e falaram
naturalmente de si mesmos. Não se viam desde longos anos. Teófilo visitara-as
logo depois de ordenado padre; mas saiu para o interior e nunca mais soube
delas, nem elas dele.
Já disse que não pude ouvir nada. Estiveram assim perto de meia hora. O
coadjutor veio espiar, deu com eles e ficou justamente escandalizado. A notícia do
caso chegou, dois dias depois, ao bispo. Teófilo recebeu uma advertência amiga,
subiu à Conceição e explicou tudo: era uma prima, a quem não via desde muito. O
padre coadjutor, quando soube da explicação, exclamou com muito critério que o
ser parente não lhe trocava o sexo nem supria o escândalo.
Entretanto, como eu tinha sido companheiro do Teófilo no seminário e gostava
dele, defendi-o com muito calor e fiz chegar o meu testemunho ao Palácio da
Conceição. Ele ficou-me grato por isso, e daí veio a intimidade de nossas relações.
Como os dois primos podiam ver-se em casa, Teófilo passou a visitá-la, e ela a
recebê-lo com muito prazer. No fim de oito dias, recebeu-me também; ao cabo de
duas semanas era eu um dos seus familiares.
Dois patrícios que se encontram em plaga estrangeira e podem finalmente trocar
as palavras mamadas na infância não sentem maior alvoroço do que estes dois
primos, que eram mais que primos: moralmente eram gêmeos. Ele contou-lhe a
vida e, como os acontecimentos acarretassem os sentimentos, ela olhou para
dentro da alma do primo e achou que era a sua mesma alma e que, em
substância, a vida de ambos era a mesma. A diferença é que uma esperou quieta

o que o outro andou buscando por montes e vales; no mais, igual equívoco, igual
conflito com a realidade, idêntico diálogo de árabe e japonês.
— Tudo o que me cerca é trivial e chocho, dizia-lhe ele.
Com efeito, gastara o aço da mocidade em divulgar uma concepção que ninguém
lhe entendeu. Enquanto os três amigos mais chegados do seminário passavam
adiante, trabalhando e servindo, afinados pela nota do século, Veloso cônego e
pregador, Soares com uma grande vigararia, Vasconcelos a caminho de bispar, ele
Teófilo era o mesmo apóstolo e místico dos primeiros anos, em plena aurora cristã
e metafísica. Vivia miseravelmente, costeando a fome, pão magro e batina
surrada; tinha instantes e horas de tristeza e de abatimento: confessou-os à
prima...
— Também o senhor? perguntou ela.
E as suas mãos apertaram-se com energia: entendiam-se. Não tendo achado um
astro na loja de um relojoeiro, a culpa era do relojoeiro; tal era a lógica de ambos.
Olharam-se com a simpatia de náufragos, — náufragos e não desenganados, —
porque não o eram. Crusoé, na ilha deserta, inventa e trabalha; eles não;
lançados à ilha, estendiam os olhos para o mar ilimitado, esperando a águia que
viria buscá-los com as suas grandes asas abertas. Uma era a eterna noiva sem
noivo, outro o eterno profeta sem Israel; ambos punidos e obstinados.
Já disse que Eulália era ainda bonita. Resta dizer que o padre Teófilo, com
quarenta e dois anos, tinha os cabelos grisalhos e as feições cansadas; as mãos
não possuíam nem a maciez nem o aroma da sacristia, eram magras e calosas e
cheiravam ao mato. Os olhos é que conservavam o fogo antigo, era por ali que a
mocidade interior falava cá para fora, e força é dizer que eles valiam só por si todo
o resto.
As visitas amiudaram-se. Afinal íamos passar ali as tardes e as noites e jantar aos
domingos. A convivência produziu dois efeitos, e até três. O primeiro foi que os
dois primos, freqüentando-se, deram força e vida um ao outro; relevem-me esta
expressão familiar: — fizeram um pique-nique de ilusões. O segundo é que Eulália,
cansada de esperar um noivo humano, volveu os olhos para o noivo divino e,
assim como ao primo viera a ambição de S. Paulo, veio-lhe a ela a de Santa
Teresa. O terceiro efeito é o que o leitor já adivinhou.
Já adivinhou. O terceiro foi o caminho de Damasco, — um caminho às avessas,
porque a voz não baixou do céu, mas subiu da terra; não chamava a pregar
Deus, mas a pregar o homem. Sem metáfora, amavam-se. Outra diferença é que
a vocação aqui não foi súbita como em relação ao apóstolo das gentes; foi
vagarosa, muito vagarosa, cochichada, insinuada, bafejada pelas asas da pomba
mística.
Note-se que a fama precedeu ao amor. Sussurrava-se desde muito que as visitas
do padre eram menos de confessor que de pecador. Era mentira; eu juro que era
mentira. Via-os, acompanhava-os, estudava esses dois temperamentos tão
espirituais, tão cheios de si mesmos, que nem sabiam da fama, nem cogitavam no
perigo da aparência. Um dia vi-lhes os primeiros sinais do amor. Será o que
quiserem, uma paixão quarentona, rosa outoniça e pálida, mas era, existia,
crescia, ia tomá-los inteiramente. Pensei em avisar o padre, não por mim, mas por
ele mesmo; mas era difícil, e talvez perigoso. Demais, eu era e sou gastrônomo e
psicólogo; avisá-lo era botar fora uma fina matéria de estudo e perder os jantares
dominicais. A psicologia, ao menos, merecia um sacrifício: calei-me.
Calei-me à toa. O que eu não quis dizer, publicou-o o coração de ambos. Se o
leitor me leu de corrida, conclui por si mesmo a anedota, conjugando os dois
primos; mas, se me leu devagar, adivinha o que sucedeu. Os dois místicos

recuaram; não tiveram horror um do outro nem de si mesmos, porque essa
sensação estava excluída de ambos, mas recuaram, agitados de medo e de
desejo.
— Volto para a roça, disse-me o padre.
— Mas por quê?
— Volto para a roça.
Voltou para a roça e nunca mais cá veio. Ela, é claro que tinha achado o marido
que esperava, mas saiu-lhe tão impossível como a vida que sonhou. Eu,
gastrônomo e psicólogo, continuei a ir jantar com Eulália aos domingos. Considero
que alguma coisa deve subsistir debaixo do sol, ou o amor ou o jantar, se é certo,
como quer Schiller, que o amor e a fome governam este mundo.
EX CATHEDRA— Padrinho, vosmecê assim fica cego.
— O quê?
— Vosmecê fica cego; lê que é um desespero. Não, senhor, dê cá o livro.
Caetaninha tirou-lhe o livro das mãos. O padrinho deu uma volta, e foi meter-se
no gabinete, onde lhe não faltavam livros; fechou-se por dentro e continuou a ler.
Era o seu mal; lia com excesso, lia de manhã, de tarde e de noite, ao almoço e ao
jantar, antes de dormir, depois do banho, lia andando, lia parado, lia em casa e na
chácara, lia antes de ler e depois de ler, lia toda a casta de livros, mas
especialmente direito (em que era graduado), matemáticas e filosofia;
ultimamente dava-se também às ciências naturais.
Pior que cego, ficou aluado. Foi pelos fins de 1873, na Tijuca, que ele começou a
dar sinais de transtorno cerebral; mas, como eram leves e poucos, só em março
ou abril de 1874 é que a afilhada lhe percebeu a alteração. Um dia, almoçando,
interrompeu ele a leitura para lhe perguntar:
— Como é que eu me chamo?
— Como é que padrinho se chama? repetiu ela espantada. Chama-se Fulgêncio.
— De hoje em diante, chamar-me-ás Fulgencius.
E, enterrando a cara no livro, prosseguiu na leitura. Caetaninha referiu o caso às
mucamas, que lhe declararam desconfiar desde algum tempo, que ele não andava
bom. Imagine-se o medo da moça; mas o medo passou depressa para só deixar a
piedade que lhe aumentou a afeição. Também a mania era restrita e mansa; não
passava dos livros. Fulgêncio vivia do escrito, do impresso, do doutrinal, do
abstrato, dos princípios e das fórmulas. Com o tempo chegou, não já à
superstição, mas à alucinação da teoria. Uma de suas máximas era que a
liberdade não morre onde restar uma folha de papel para decretá-la; e um dia,
acordando com a idéia de melhorar a condição dos turcos, redigiu uma
constituição, que mandou de presente ao ministro inglês, em Petrópolis. De outra
ocasião, meteu-se a estudar nos livros a anatomia dos olhos, para verificar se
realmente eles podiam ver, e concluiu que sim.
Digam-me se, em tais condições, a vida de Caetaninha podia ser alegre. Não lhe
faltava nada, é verdade, porque o padrinho era rico. Foi ele mesmo que a educou,

desde os sete anos, quando perdeu a mulher; ensinou-lhe a ler e escrever,
francês, um pouco de história e geografia, para não dizer quase nada, e incumbiu
uma das mucamas de lhe ensinar crivo, renda e costura. Tudo isso é verdade. Mas
Caetaninha fizera quatorze anos; e, se nos primeiros tempos bastavam os
brinquedos e as escravas para diverti-la, era chegada a idade em que os
brinquedos perdem de moda e as escravas de interesse, em que não há leituras
nem escrituras que façam de uma casa solitária na Tijuca um paraíso. Descia
algumas vezes, raras, e de corrida; não ia a teatros nem bailes; não fazia nem
recebia visitas. Quando via passar na estrada uma cavalgada de homens e
senhoras, punha a alma na garupa dos animais, e deixava-a ir com eles, ficandolhe o corpo, ao pé do padrinho, que continuava a ler.
Um dia, estando na chácara, viu parar ao portão um rapaz, montado numa
bestinha, e ouviu que lhe perguntava se era ali a casa do doutor Fulgêncio.
— Sim, senhor, é aqui mesmo.
— Podia falar-lhe?
Caetaninha respondeu que ia ver; entrou em casa, e foi ao gabinete, onde achou o
padrinho remoendo, com a mais voluptuária e beata das expressões, um capítulo
de Hegel. — Mocinho? Que mocinho? — Caetaninha disse-lhe que era um mocinho
vestido de luto.
— De luto? repetiu o velho doutor fechando precipitadamente o livro; há de ser
ele.
Esquecia-me dizer (mas há tempo para tudo) que, três meses antes, falecera um
irmão de Fulgêncio, no Norte, deixando um filho natural. Como o irmão, dias antes
de morrer, lhe escrevera recomendando o órfão que ia deixar, Fulgêncio mandou
que este viesse para o Rio de Janeiro. Ouvindo que estava ali um mocinho de luto,
concluiu que era o sobrinho, e não concluiu mal. Era ele mesmo.
Parece que até aqui nada há que destoe de uma história ingenuamente
romanesca: temos um velho lunático, uma mocinha solitária e suspirosa, e vemos
despontar inopinadamente um sobrinho. Para não descer da região poética em que
nos achamos, deixo de dizer que a mula em que o Raimundo veio montado, foi
reconduzida por um preto ao alugador; passo também por alto as circunstâncias
da acomodação do rapaz, limitando-me a dizer que, como o tio, à força de viver
lendo, esquecera inteiramente que o mandara buscar, nada havia em casa
preparado para recebê-lo. Mas a casa era grande e abastada; uma hora depois,
estava o rapaz aposentado num lindo quarto, donde podia ver a chácara, a
cisterna antiga, o lavadouro, basta folha verde e vasto céu azul.
Creio que ainda não disse a idade do hóspede; tem quinze anos e um ameaço de
buço; é quase uma criança. Logo, se a nossa Caetaninha ficou alvoroçada, e as
mucamas andam de um lado para outro, espiando e falando do "sobrinho de sinhô
velho que chegou de fora", é porque a vida ali não tem outros episódios, não
porque ele seja homem feito. Essa foi também a impressão do dono da casa; mas,
aqui vai a diferença. A afilhada não advertia que o ofício do buço é virar bigode,
ou, se pensou nisso, fê-lo tão vagamente, que não vale a pena de o pôr aqui. Não
assim o velho Fulgêncio. Compreendeu este que havia ali a massa de um marido,
e resolveu casá-los; mas viu também que, a menos de lhes pegar nas mãos e
mandar que se amassem, o acaso podia guiar as coisas por modo diferente.
Uma idéia traz outra. A idéia de os casar pegou por um lado com uma de suas
opiniões recentes. Era esta que as calamidades ou os simples dissabores nas
relações do coração provinham de que o amor era praticado de um modo
empírico; faltava-lhe a base científica. Um homem e uma mulher, desde que
conhecessem as razões físicas e metafísicas desse sentimento, estariam mais

aptos a recebê-lo e nutri-lo com eficácia, do que outro homem e outra mulher que
nada soubessem do fenômeno.
“Os meus pequenos estão verdes, dizia ele consigo: tenho três a quatro anos
diante de mim, e posso começar desde já a prepará-los. Vamos com lógica;
primeiro os alicerces, depois as paredes, depois o teto... em vez de começar pelo
teto... Dia virá em que se aprenda a amar como se aprende a ler... Nesse dia...”
Estava atordoado, deslumbrado, delirante. Foi às estantes, desceu alguns tomos,
astronomia, geologia, fisiologia, anatomia, jurisprudência, política, lingüística,
abriu-os, folheou-os, comparou-os, extratou daqui e dali, até formular um
programa de ensino. Compunha-se este de vinte capítulos, nos quais entravam as
noções gerais do universo, uma definição da vida, demonstração da existência do
homem e da mulher, organização das sociedades, definição e análise das paixões,
definição e análise do amor, suas causas, necessidades e efeitos. Em verdade, as
matérias eram crespas; ele entendeu torná-las dóceis, tratando-as em frase
corriqueira e chã, dando-lhes um tom puramente familiar, como a astronomia de
Fontenelle. E dizia com ênfase que o essencial da fruta era o miolo, não a casca.
Tudo isso era engenhoso; mas aqui vai o mais engenhoso. Não os convidou a
aprender. Uma noite, olhando para o céu, disse que as estrelas estavam brilhando
muito; e o que eram as estrelas? acaso sabiam eles o que eram as estrelas?
— Não, senhor.
Daqui a iniciar uma descrição do universo era um passo. Fulgêncio deu o passo,
com tal presteza e naturalidade, que os deixou encantados e eles pediram a
viagem toda.
— Não, disse o velho; não esgotemos tudo hoje, nem isto se entende bem senão
devagar; amanhã ou depois...
Foi assim, sorrateiramente, que ele começou a executar o plano. Os dois alunos,
assombrados com o mundo astronômico, pediam-lhe todos os dias que
continuasse, e, posto que no fim dessa primeira parte Caetaninha ficasse um tanto
confusa, ainda assim quis ouvir as outras coisas que o padrinho lhe prometeu.
Não digo nada da familiaridade entre os dois alunos, por ser coisa óbvia. Entre
quatorze e quinze anos a diferença é tão pequena, que os portadores das duas
idades, não tinham mais que dar a mão um ao outro. Foi o que aconteceu.
No fim de três semanas pareciam ter sido criados juntos. Só isto bastava a mudar
a vida de Caetaninha; mas Raimundo trouxe-lhe mais. Não há dez minutos, vimola olhar com saudade as cavalgadas de homens e damas que passavam na
estrada. Raimundo matou-lhe a saudade, ensinando-lhe a montaria, apesar da
relutância do velho, que temia algum desastre; mas este cedeu e alugou dois
cavalos. Caetaninha mandou fazer uma linda amazona, Raimundo veio à cidade
comprar-lhe as luvas e um chicotinho, com o dinheiro do tio — já se sabe — que
também lhe deu as botas e o demais aparelhos masculinos. Daí a pouco era um
gosto vê-los ambos, galhardos e intrépidos, abaixo e acima da montanha.
Em casa, brincavam à larga, jogavam damas e cartas, cuidavam de aves e
plantas. Brigavam muita vez; mas, segundo as mucamas, eram brigas de mentira,
só para fazerem as pazes depois. Era o pico do arrufo. Raimundo vinha às vezes à
cidade, a mandado do tio. Caetaninha ia esperá-lo ao portão, espiando ansiosa.
Quando ele chegava, brigavam, porque ela queria tirar-lhe os maiores embrulhos,
a pretexto de que ele vinha cansado, e ele queria dar-lhe os mais leves, alegando
que ela era fraquinha.
No fim de quatro meses, a vida era totalmente outra. Pode-se até dizer que só

então é que Caetaninha começou a usar rosas no cabelo. Antes disso vinha muita
vez despenteada para a mesa do almoço. Agora, não só se penteava logo cedo,
mas até, como digo, trazia rosas, uma ou duas; estas eram, ou colhidas na
véspera, por ela mesma, e guardadas em água, ou na própria manhã, por ele, que
ia levar-lhas à janela. A janela era alta; mas Raimundo, pondo-se na ponta dos
pés, e levantando o braço, conseguia dar-lhe as rosas em mão. Foi por esse tempo
que ele adquiriu o sestro de mortificar o buço, puxando-o muito de um e outro
lado. Caetaninha chegava a bater-lhe nos dedos, para lhe tirar tão mau costume.
Entretanto, as lições continuavam regularmente. Já tinham uma idéia geral do
universo, e uma definição da vida, que nenhum deles entendeu. Assim chegaram
ao quinto mês. No sexto, começou a demonstração da existência do homem.
Caetaninha não pôde suster o riso, quando o padrinho, expondo a matéria,
perguntou-lhes se eles sabiam que existiam e por quê; mas ficou logo séria, e
respondeu que não.
— Nem você?
— Nem eu, não, senhor, concordou o sobrinho.
Fulgêncio iniciou uma demonstração em regra, profundamente cartesiana. A
seguinte lição foi na chácara. Chovera muito nos dias anteriores; mas o sol agora
alagava tudo de luz, e a chácara parecia uma linda viúva, que troca o véu do luto
pelo do noivado. Raimundo, como se quisesse copiar o sol (copiam-se
naturalmente os grandes), despedia das pupilas um olhar vasto e longo, que
Caetaninha recebia, palpitando, como a chácara. Fusão, transfusão, difusão,
confusão e profusão de seres e de coisas.
Enquanto o velho falava, reto, lógico, vagaroso, curtido de fórmulas, com os olhos
fixos em parte nenhuma, os dois alunos faziam trinta mil esforços para escutá-lo,
mas vinham trinta mil incidentes distraí-los. Foi a princípio um casal de borboletas
que brincavam no ar. Façam-me o favor de dizer o que é que pode haver
extraordinário num casal de borboletas? Concordo que eram amarelas, mas esta
circunstância não basta a explicar a distração. O fato de voarem uma atrás da
outra, ora à direita, ora à esquerda, ora abaixo, ora acima, também não dá a
razão do desvio, visto que nunca as borboletas voaram em linha reta, como
simples militares.
— O entendimento, dizia o velho, o entendimento, segundo eu já expliquei...
Raimundo olhou para Caetaninha, e achou-a olhando para ele. Um e outro
pareciam confusos e acanhados. Ela foi a primeira que baixou os olhos ao regaço.
Depois, levantou-os, a fim de os levar a outra parte, mais remota, o muro da
chácara; na passagem, como os de Raimundo ali estivessem, ela encarou-os o
mais rapidamente que pôde. Felizmente, o muro apresentava um espetáculo que a
encheu de admiração: um casal de andorinhas (era o dia dos casais) saltitava
nele, com a graça peculiar às pessoas aladas. Saltitavam piando, dizendo coisas
uma à outra, o que quer que fosse, talvez isto — que era bem bom não haver
filosofia nos muros das chácaras. Se não quando, uma delas voou, provavelmente
a dama, e a outra, naturalmente o garção, não se deixou ficar atrás: esticou as
asas e seguiu o mesmo caminho. Caetaninha desceu os olhos à grama do chão.
Quando a lição acabou, daí a alguns minutos, ela pediu ao padrinho que
continuasse, e, recusando este, tomou-lhe o braço e convidou-o a dar um giro na
chácara.
— Está muito sol, contestou o velho.
— Vamos pela sombra.

— Faz muito calor.
Caetaninha propôs irem continuar na varanda; mas o padrinho disse-lhe
misteriosamente que Roma não se fez num dia, e acabou declarando que só dois
dias depois continuaria a lição. Caetaninha recolheu-se ao quarto, esteve ali três
quartos de hora fechada, sentada, à janela, de um lado para outro, procurando as
coisas que tinha na mão, e chegando ao cúmulo de ver-se a si mesma,
cavalgando, estrada acima, ao lado de Raimundo. De uma vez aconteceu-lhe ver o
rapaz no muro da chácara; mas atentou bem, reconheceu que era um par de
besouros que zumbiam no ar. E dizia um deles ao outro:
— Tu és a flor da nossa raça, a flor do ar, a flor das flores, o sol e a lua da minha
vida.
Ao que respondia o outro:
— Ninguém te vence na beleza e na graça; o teu zumbir é um eco das falas
divinas; mas, deixa-me... deixa-me...
— Por que deixar-te, alma destes bosques?
— Já te disse, rei dos ares puros, deixa-me.
— Não me fales assim, feitiço e gala das matas. Tudo por cima e em volta de nós
está dizendo que me deves falar de outra maneira. Conheces a cantiga dos
mistérios azuis?
— Vamos ouvi-la nas folhas verdes da laranjeira.
— As da mangueira são mais bonitas.
— Tu és mais linda que umas e outras.
— E tu, sol da minha vida?
— Lua do meu ser, eu sou o que tu quiseres...
Era assim que os dois besouros falavam. Ela ouviu-os cismando. Como eles
desaparecessem, ela entrou, viu as horas e saiu do quarto. Raimundo estava fora;
ela foi esperá-lo ao portão, dez, vinte, trinta, quarenta, cinqüenta minutos. Na
volta disseram pouco; uniram-se e separaram-se duas ou três vezes. Da última
vez foi ela que o trouxe à varanda, para mostrar-lhe um enfeite que julgava
perdido e acabava de achar. Façam-lhe a justiça de crer que era pura mentira.
Entretanto, Fulgêncio antecipou a lição; deu-a no dia seguinte, entre o almoço e o
jantar. Nunca a palavra lhe saiu tão límpida e singela. E assim devia ser; tratavase da existência do homem, capítulo profundamente metafísico, em que era
preciso considerar tudo e por todos os lados.
— Estão entendendo? perguntava ele.
— Perfeitamente.
E a lição seguiu até o fim. No fim, deu-se a mesma coisa da véspera; Caetaninha,
como se tivesse medo de ficar só, pediu-lhe para continuar ou passear; ele
recusou uma e outra coisa, bateu-lhe paternalmente na cara, e foi encerrar-se no
gabinete.
"Para a semana", pensava o velho doutor, dando volta à chave, "para a semana
entro na organização das sociedades; todo o mês que vem e o outro é para a
definição e classificação das paixões; em maio, passaremos ao amor... já será

tempo..."
Enquanto ele dizia isto, e fechava a porta, alguma coisa ressoava do lado da
varanda — um trovão de beijos, segundo disseram as lagartas da chácara; mas,
para as lagartas qualquer pequeno rumor vale um trovão. Quanto aos autores do
ruído nada positivo se sabe. Parece que um maribondo, vendo Caetaninha e
Raimundo unidos nessa ocasião, concluiu da coincidência para a conseqüência, e
entendeu que eram eles; mas um velho gafanhoto demonstrou a inanidade do
fundamento, alegando que ouvira muitos beijos, outrora, em lugares onde nem
Raimundo nem Caetaninha pusera os pés. Convenhamos que este outro
argumento não prestava para nada; mas, tal é o prestígio de um bom caráter, que
o gafanhoto foi aclamado como tendo ainda uma vez defendido a verdade e a
razão. E daí pode ser que fosse assim mesmo. Mas um trovão de beijos?
Suponhamos dois; suponhamos três ou quatro.
A SENHORA DO GALVÃOComeçaram a rosnar dos amores deste advogado com a viúva do brigadeiro,
quando eles não tinham ainda passado dos primeiros obséquios. Assim vai o
mundo. Assim se fazem algumas reputações más, e, o que parece absurdo,
algumas boas. Com efeito, há vidas que só têm prólogo; mas toda a gente fala do
grande livro que se lhe segue, e o autor morre com as folhas em branco. No
presente caso, as folhas escreveram-se, formando todas um grosso volume de
trezentas páginas compactas, sem contar as notas. Estas foram postas no fim, não
para esclarecer, mas para recordar os capítulos passados; tal é o método nesses
livros de colaboração. Mas a verdade é que eles apenas combinavam no plano,
quando a mulher do advogado recebeu este bilhete anônimo:
Não é possível que a senhora se deixe embair mais tempo, tão
escandalosamente, por uma de suas amigas, que se consola da
viuvez, seduzindo os maridos alheios, quando bastava conservar os
cachos...
Que cachos? Maria Olímpia não perguntou que cachos eram; eram da viúva do
brigadeiro, que os trazia por gosto, e não por moda. Creio que isto se passou em
1853. Maria Olímpia leu e releu o bilhete; examinou a letra, que lhe pareceu de
mulher e disfarçada, e percorreu mentalmente a primeira linha das suas amigas, a
ver se descobria a autora. Não descobriu nada, dobrou o papel e fitou o tapete do
chão, caindo-lhe os olhos justamente no ponto do desenho em que dois
pombinhos ensinavam um ao outro a maneira de fazer de dois bicos um bico. Há
dessas ironias do acaso, que dão vontade de destruir o universo. Afinal meteu o
bilhete no vestido, e encarou a mucama, que esperava por ela, e que lhe
perguntou:
— Nhanhã não quer mais ver o xale?
Maria Olímpia pegou no xale que a mucama lhe dava e foi pô-lo aos ombros,
defronte do espelho. Achou que lhe ficava bem, muito melhor que à viúva. Cotejou
as suas graças com as da outra. Nem os olhos nem a boca eram comparáveis; a
viúva tinha os ombros estreitinhos, a cabeça grande, e o andar feio. Era alta; mas
que tinha ser alta? E os trinta e cinco anos de idade, mais nove que ela? Enquanto
fazia essas reflexões, ia compondo, pregando e despregando o xale.
— Este parece melhor que o outro, aventurou a mucama.
— Não sei... disse a senhora, chegando-se mais para a janela, com os dois nas
mãos.

— Bota o outro, nhanhã.
A nhanhã obedeceu. Experimentou cinco xales dos dez que ali estavam, em
caixas, vindos de uma loja da Rua da Ajuda. Concluiu que os dois primeiros eram
os melhores; mas aqui surgiu uma complicação — mínima, realmente — mas tão
sutil e profunda na solução, que não vacilo em recomendá-la aos nossos
pensadores de 1906. A questão era saber qual dos dois xales escolheria, uma vez
que o marido, recente advogado, pedia-lhe que fosse econômica. Contemplava-os
alternadamente, e ora preferia um, ora outro. De repente, lembrou-lhe a aleivosia
do marido, a necessidade de mortificá-lo, castigá-lo, mostrar-lhe que não era
peteca de ninguém, nem maltrapilha; e, de raiva, comprou ambos os xales.
Ao bater das quatros horas (era a hora do marido) nada de marido. Nem às
quatro, nem às quatro e meia. Maria Olímpia imaginava uma porção de coisas
aborrecidas, ia à janela, tornava a entrar, temia um desastre ou doença repentina;
pensou também que fosse uma sessão do júri. Cinco horas, e nada. Os cachos da
viúva também negrejavam diante dela, entre a doença e o júri, com uns tons de
azul-ferrete, que era provavelmente a cor do diabo. Realmente era para exaurir a
paciência de uma moça de vinte e seis anos. Vinte e seis anos; não tinha mais.
Era filha de um deputado do tempo da Regência, que a deixou menina; e foi uma
tia que a educou com muita distinção. A tia não a levou muito cedo a bailes e
espetáculos. Era religiosa, conduziu-a primeiro à igreja. Maria Olímpia tinha a
vocação da vida exterior, e, nas procissões e missas cantadas, gostava
principalmente do rumor, da pompa; a devoção era sincera, tíbia e distraída. A
primeira coisa que ela via na tribuna das igrejas, era a si mesma. Tinha um gosto
particular em olhar de cima para baixo, fitar a multidão das mulheres ajoelhadas
ou sentadas, e os rapazes, que, por baixo do coro ou nas portas laterais,
temperavam com atitudes namoradas as cerimônias latinas. Não entendia os
sermões; o resto, porém, orquestra, canto, flores, luzes, sanefas, ouros, gentes,
tudo exercia nela um singular feitiço. Magra devoção, que escasseou ainda mais
com o primeiro espetáculo e o primeiro baile. Não alcançou a Candiani, mas ouviu
a Ida Edelvira, dançou à larga, e ganhou fama de elegante.
Eram cinco horas e meia, quando o Galvão chegou. Maria Olímpia, que então
passeava na sala, tão depressa lhe ouviu os pés, fez o que faria qualquer outra
senhora na mesma situação: pegou de um jornal de modas, e sentou-se, lendo,
com um grande ar de pouco caso. Galvão entrou ofegante, risonho, cheio de
carinhos, perguntando-lhe se estava zangada, e jurando que tinha um motivo para
a demora, um motivo que ela havia de agradecer, se soubesse...
— Não é preciso, interrompeu ela friamente.
Levantou-se; foram jantar. Falaram pouco; ela menos que ele, mas em todo o
caso, sem parecer magoada. Pode ser que entrasse a duvidar da carta anônima;
pode ser também que os dois xales lhe pesassem na consciência. No fim do jantar,
Galvão explicou a demora; tinha ido, a pé, ao teatro Provisório, comprar um
camarote para essa noite: davam os
Lombardos. De lá, na volta, foi encomendar
um carro...
— Os
Lombardos? interrompeu Maria Olímpia.
— Sim; canta o Laboceta, canta a Jacobson; há bailado. Você nunca ouviu os
Lombardos?
— Nunca.
— E aí está por que me demorei. Que é que você merecia agora? Merecia que eu
lhe cortasse a ponta desse narizinho arrebitado...
Como ele acompanhasse o dito com um gesto, ela recuou a cabeça; depois acabou

de tomar o café. Tenhamos pena da alma desta moça. Os primeiros acordes dosLombardos ecoavam nela, enquanto a carta anônima lhe trazia uma nota lúgubre,
espécie de
requiem. E por que é que a carta não seria uma calúnia? Naturalmente
não era outra coisa: alguma invenção de inimigos, ou para afligi-la, ou para fazê-
los brigar. Era isto mesmo. Entretanto, uma vez que estava avisada, não os
perderia de vista. Aqui acudiu-lhe uma idéia: consultou o marido se mandaria
convidar a viúva.
— Não, respondeu ele; o carro só tem dois lugares, e eu não hei de ir na boléia.
Maria Olímpia sorriu de contente, e levantou-se. Há muito tempo que tinha
vontade de ouvir os
Lombardos. Vamos aos Lombardos! Trá, lá, lá, lá... Meia hora
depois foi vestir-se. Galvão, quando a viu pronta daí a pouco, ficou encantado.
"Minha mulher é linda", pensou ele; e fez um gesto para estreitá-la ao peito; mas
a mulher recuou, pedindo-lhe que não a amarrotasse. E, como ele, por umas
veleidades de camareiro, pretendeu consertar-lhe a pluma do cabelo, ela disse-lhe
enfastiada:
— Deixa, Eduardo! Já veio o carro?
Entraram no carro e seguiram para o teatro. Quem é que estava no camarote
contíguo ao deles? Justamente a viúva e a mãe. Esta coincidência, filha do acaso,
podia fazer crer algum ajuste prévio. Maria Olímpia chegou a suspeitá-lo; mas a
sensação da entrada não lhe deu tempo de examinar a suspeita. Toda a sala
voltara-se para vê-la, e ela bebeu, a tragos demorados, o leite da admiração
pública. Demais, o marido teve a inspiração, maquiavélica, de lhe dizer ao ouvido:
"Antes a mandasses convidar; ficava-nos devendo o favor". Qualquer suspeita
cairia diante desta palavra. Contudo, ela cuidou de os não perder de vista — e
renovou a resolução de cinco em cinco minutos, durante meia hora, até que, não
podendo fixar a atenção, deixou-a andar. Lá vai ela, inquieta, vai direito ao clarão
das luzes, ao esplendor dos vestuários, um pouco à ópera, como pedindo a todas
as coisas alguma sensação deleitosa em que se espreguice uma alma fria e
pessoal. E volta depois à própria dona, ao seu leque, às suas luvas, aos adornos
do vestido, realmente magníficos. Nos intervalos, conversando com a viúva, Maria
Olímpia tinha a voz e os gestos do costume, sem cálculo, sem esforço, sem
sentimento, esquecida da carta. Justamente nos intervalos é que o marido, com
uma discrição rara entre os filhos dos homens, ia para os corredores ou para o
saguão pedir notícias do ministério.
Juntas saíram do camarote, no fim, e atravessaram os corredores. A modéstia
com que a viúva trajava podia realçar a magnificência da amiga. As feições,
porém, não eram o que esta afirmou, quando ensaiava os xales de manhã. Não,
senhor; eram engraçadas, e tinham um certo pico original. Os ombros
proporcionais e bonitos. Não contava trinta e cinco anos, mas trinta e um; nasceu
em 1822, na véspera da independência, tanto que o pai, por brincadeira, entrou a
chamá-la
Ipiranga, e ficou-lhe esta alcunha entre as amigas. Demais, lá estava em
Santa Rita o assentamento de batismo.
Uma semana depois, recebeu Maria Olímpia outra carta anônima. Era mais longa e
explícita. Vieram outras, uma por semana, durante três meses. Maria Olímpia leu
as primeiras com algum aborrecimento; as seguintes foram calejando a
sensibilidade. Não havia dúvida que o marido demorava-se fora, muitas vezes, ao
contrário do que fazia dantes, ou saía à noite e regressava tarde; mas, segundo
dizia, gastava o tempo no Wallerstein ou no Bernardo, em palestras políticas. E
isto era verdade, uma verdade de cinco a dez minutos, o tempo necessário para
recolher alguma anedota ou novidade, que pudesse repetir em casa, à laia de
documento. Dali seguia para o Largo de São Francisco, e metia-se no ônibus.
Tudo era verdade. E, contudo, ela continuava a não crer nas cartas. Ultimamente,
não se dava mais ao trabalho de as refutar consigo; lia-as uma só vez, e rasgava-

as. Com o tempo foram surgindo alguns indícios menos vagos, pouco a pouco, ao
modo do aparecimento da terra aos navegantes; mas este Colombo teimava em
não crer na América. Negava o que via; não podendo negá-lo, interpretava-o;
depois recordava algum caso de alucinação, uma anedota de aparências ilusórias,
e nesse travesseiro cômodo e mole punha a cabeça e dormia. Já então,
prosperando-lhe o escritório, dava o Galvão partidas e jantares, iam a bailes,
teatros, corridas de cavalos. Maria Olímpia vivia alegre, radiante; começava a ser
um dos nomes da moda. E andava muita vez com a viúva, a despeito das cartas, a
tal ponto que uma destas lhe dizia: "Parece que é melhor não escrever mais, uma
vez que a senhora se regala numa comborçaria de mau gosto". Que era
comborçaria? Maria Olímpia quis perguntá-lo ao marido, mas esqueceu o termo, e
não pensou mais nisso.
Entretanto, constou ao marido que a mulher recebia cartas pelo correio. Cartas de
quem? Esta notícia foi um golpe duro e inesperado. Galvão examinou de memória
as pessoas que lhe freqüentavam a casa, as que podiam encontrá-la em teatros
ou bailes, e achou muitas figuras verossímeis. Em verdade, não lhe faltavam
adoradores.
— Cartas de quem? repetia ele mordendo o beiço e franzindo a testa.
Durante sete dias passou uma vida inquieta e aborrecida, espiando a mulher e
gastando em casa grande parte do tempo. No oitavo dia, veio uma carta.
— Para mim? disse ele vivamente.
— Não; é para mim, respondeu Maria Olímpia, lendo o sobrescrito; parece letra de
Mariana ou de Lulu Fontoura...
Não queria vê-la; mas o marido disse que a lesse; podia ser alguma notícia grave.
Maria Olímpia leu a carta e dobrou-a, sorrindo; ia guardá-la, quando o marido
desejou ver o que era.
— Você sorriu, disse ele gracejando; há de ser algum epigrama comigo.
— Qual! é um negócio de moldes.
— Mas deixa ver.
— Para quê, Eduardo?
— Que tem? Você, que não quer mostrar, por algum motivo há de ser. Dê cá.
Já não sorria; tinha a voz trêmula. Ela ainda recusou a carta, uma, duas, três
vezes. Teve mesmo idéia de rasgá-la, mas era pior, e não conseguiria fazê-lo até
o fim. Realmente, era uma situação original. Quando ela viu que não tinha
remédio, determinou ceder. Que melhor ocasião para ler no rosto dele a expressão
da verdade? A carta era das mais explícitas; falava da viúva em termos crus.
Maria Olímpia entregou-lha.
— Não queria mostrar esta, disse-lhe ela primeiro, como não mostrei outras que
tenho recebido e botado fora; são tolices, intrigas, que andam fazendo para...
Leia, leia a carta.
Galvão abriu a carta e deitou-lhe os olhos ávidos. Ela enterrou a cabeça na
cintura, para ver de perto a franja do vestido. Não o viu empalidecer. Quando ele,
depois de alguns minutos, proferiu duas ou três palavras, tinha já a fisionomia
composta e um esboço de sorriso. Mas a mulher, que o não adivinhava, respondeu
ainda de cabeça baixa; só a levantou daí a três ou quatro minutos, e não para fitá-
lo de uma vez, mas aos pedaços, como se temesse descobrir-lhe nos olhos a

confirmação do anônimo. Vendo-lhe, ao contrário, um sorriso, achou que era o da
inocência, e falou de outra coisa.
Redobraram as cautelas do marido; parece também que ele não pôde esquivar-se
a um tal ou qual sentimento de admiração para com a mulher. Pela sua parte, a
viúva, tendo notícia das cartas, sentiu-se envergonhada; mas reagiu depressa, e
requintou de maneiras afetuosas com a amiga.
Na segunda ou terceira semana de agosto, Galvão fez-se sócio do Cassino
Fluminense. Era um dos sonhos da mulher. A seis de setembro fazia anos a viúva,
como sabemos. Na véspera, foi Maria Olímpia (com a tia que chegara de fora)
comprar-lhe um mimo: era uso entre elas. Comprou-lhe um anel. Viu na mesma
casa uma jóia engraçada, uma meia lua de diamantes para o cabelo, emblema de
Diana, que lhe iria muito bem sobre a testa. De Maomé que fosse; todo o
emblema de diamantes é cristão. Maria Olímpia pensou naturalmente na primeira
noite do Cassino; e a tia, vendo-lhe o desejo, quis comprar a jóia, mas era tarde,
estava vendida.
Veio a noite do baile. Maria Olímpia subiu comovida as escadas do Cassino.
Pessoas que a conheceram naquele tempo, dizem que o que ela achava na vida
exterior, era a sensação de uma grande carícia pública, a distância; era a sua
maneira de ser amada. Entrando no Cassino, ia recolher nova cópia de
admirações, e não se enganou, porque elas vieram, e de fina casta.
Foi pelas dez horas e meia que a viúva ali apareceu. Estava realmente bela,
trajada a primor, tendo na cabeça a meia lua de diamantes. Ficava-lhe bem o
diabo da jóia, com as duas pontas para cima, emergindo do cabelo negro. Toda a
gente admirou sempre a viúva naquele salão. Tinha muitas amigas, mais ou
menos íntimas, não poucos adoradores, e possuía um gênero de espírito que
espertava com as grandes luzes. Certo secretário de legação não cessava de a
recomendar aos diplomatas novos: "
Causez avec Mme. Tavares; c'est adorable!"
Assim era nas outras noites; assim foi nesta.
— Hoje quase não tenho tido tempo de estar com você, disse ela a Maria Olímpia,
perto de meia-noite.
— Naturalmente, disse a outra abrindo e fechando o leque; e, depois de umedecer
os lábios, como para chamar a eles todo o veneno que tinha no coração: —
Ipiranga, você está hoje uma viúva deliciosa... Vem seduzir mais algum marido?
A viúva empalideceu, e não pôde dizer nada. Maria Olímpia acrescentou, com os
olhos, alguma coisa que a humilhasse bem, que lhe respingasse lama no triunfo.
Já no resto da noite falaram pouco; três dias depois romperam para nunca mais.

AS ACADEMIAS DE SIÃO

ÍNDICE
CAPÍTULO PRIMEIRO
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III

CAPÍTULO IVConhecem as academias de Sião? Bem sei que em Sião nunca houve academias:
mas suponhamos que sim, e que eram quatro, e escutem-me.
CAPÍTULO PRIMEIROAs estrelas, quando viam subir, através da noite, muitos vaga-lumes cor de leite,
costumavam dizer que eram os suspiros do rei de Sião, que se divertia com as
suas trezentas concubinas. E, piscando o olho umas às outras, perguntavam:
— Reais suspiros, em que é que se ocupa esta noite o lindo Kalaphangko?
Ao que os vaga-lumes respondiam com gravidade:
— Nós somos os pensamentos sublimes das quatro academias de Sião; trazemos
conosco toda a sabedoria do universo.
Uma noite, foram em tal quantidade os vaga-lumes, que as estrelas, de medrosas,
refugiaram-se nas alcovas, e eles tomaram conta de uma parte do espaço, onde
se fixaram para sempre com o nome de Via-láctea.
Deu lugar a essa enorme ascensão de pensamentos o fato de quererem as quatro
academias de Sião resolver este singular problema: — por que é que há homens
femininos e mulheres másculas? E o que as induziu a isso foi a índole do jovem
rei. Kalaphangko era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais
esquisita feminidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e
obedientes e um cordial horror às armas. Os guerreiros siameses gemiam, mas a
nação vivia alegre, tudo eram danças, comédias e cantigas, à maneira do rei que
não cuidava de outra coisa. Daí a ilusão das estrelas.
Vai senão quando, uma das academias achou esta solução ao problema:
— Umas almas são masculinas, outras femininas. A anomalia que se observa é
uma questão de corpos errados.
— Nego, bradaram as outras três; a alma é neutra; nada tem com o contraste
exterior.
Não foi preciso mais para que as vielas e águas de Bangkok se tingissem de
sangue acadêmico. Veio primeiramente a controvérsia, depois a descompostura, e
finalmente a pancada. No princípio da descompostura tudo andou menos mal;
nenhuma das rivais arremessou um impropério que não fosse escrupulosamente
derivado do sânscrito, que era a língua acadêmica, o latim de Sião. Mas dali em
diante perderam a vergonha. A rivalidade desgrenhou-se, pôs as mãos na cintura,
baixou à lama, à pedrada, ao murro, ao gesto vil, até que a academia sexual,
exasperada, resolveu dar cabo das outras, e organizou um plano sinistro... Ventos
que passais, se quisésseis levar convosco estas folhas de papel, para que eu não
contasse a tragédia de Sião! Custa-me (ai de mim!), custa-me escrever a singular

desforra. Os acadêmicos armaram-se em segredo, e foram ter com os outros,
justamente quando estes, curvados sobre o famoso problema, faziam subir ao céu
uma nuvem de vaga-lumes. Nem preâmbulo, nem piedade. Caíram-lhes em cima,
espumando de raiva. Os que puderam fugir, não fugiram por muitas horas;
perseguidos e atacados, morreram na beira do rio, a bordo das lanchas, ou nas
vielas escusas. Ao todo, trinta e oito cadáveres. Cortaram uma orelha aos
principais, e fizeram delas colares e braceletes para o presidente vencedor, o
sublime U-Tong. Ébrios da vitória, celebraram o feito com um grande festim, no
qual cantaram este hino magnífico: "Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a
luminária do universo".
A cidade acordou estupefata. O terror apoderou-se da multidão. Ninguém podia
absolver uma ação tão crua e feia; alguns chegavam mesmo a duvidar do que
viam... Uma só pessoa aprovou tudo: foi a bela Kinnara, a flor das concubinas
régias.
CAPÍTULO IIMolemente deitado aos pés da bela Kinnara, o jovem rei pedia-lhe uma cantiga.
— Não dou outra cantiga que não seja esta: creio na alma sexual.
— Crês no absurdo, Kinnara.
— Vossa Majestade crê então na alma neutra?
— Outro absurdo, Kinnara. Não, não creio na alma neutra, nem na alma sexual.
— Mas então em que é que Vossa Majestade crê, se não crê em nenhuma delas?
— Creio nos teus olhos, Kinnara, que são o sol e a luz do universo.
— Mas cumpre-lhe escolher: — ou crer na alma neutra, e punir a academia viva,
ou crer na alma sexual, e absolvê-la.
— Que deliciosa que é a tua boca, minha doce Kinnara! Creio na tua boca: é a
fonte da sabedoria.
Kinnara levantou-se agitada. Assim como o rei era o homem feminino, ela era a
mulher máscula — um búfalo com penas de cisne. Era o búfalo que andava agora
no aposento, mas daí a pouco foi o cisne que parou, e, inclinando o pescoço, pediu
e obteve do rei, entre duas carícias, um decreto em que a doutrina da alma sexual
foi declarada legítima e ortodoxa, e a outra absurda e perversa. Nesse mesmo dia,
foi o decreto mandado à academia triunfante, aos pagodes, aos mandarins, a todo
o reino. A academia pôs luminárias; restabeleceu-se a paz pública.
CAPÍTULO IIIEntretanto, a bela Kinnara tinha um plano engenhoso e secreto. Uma noite, como
o rei examinasse alguns papéis do Estado, perguntou-lhe ela se os impostos eram
pagos com pontualidade.
Ohimé! exclamou ele, repetindo essa palavra que lhe ficara de um missionário
italiano. Poucos impostos têm sido pagos. Eu não quisera mandar cortar a cabeça
aos contribuintes... Não, isso nunca... Sangue? sangue? não, não quero sangue...

— E se eu lhe der um remédio a tudo?
— Qual?
— Vossa Majestade decretou que as almas eram femininas e masculinas, disse
Kinnara depois de um beijo. Suponha que os nossos corpos estão trocados. Basta
restituir cada alma ao corpo que lhe pertence. Troquemos os nossos...
Kalaphangko riu muito da idéia, e perguntou-lhe como é que fariam a troca. Ela
respondeu que pelo método Mukunda, rei dos hindus, que se meteu no cadáver de
um brâmane, enquanto um truão se metia no dele Mukunda, — velha lenda
passada aos turcos, persas e cristãos. Sim, mas a fórmula da invocação? Kinnara
declarou que a possuía; um velho bonzo achara cópia dela nas ruínas de um
templo.
— Valeu?
— Não creio no meu próprio decreto, redargüiu ele rindo; mas vá lá, se for
verdade, troquemos... mas por um semestre, não mais. No fim do semestre
destrocaremos os corpos.
Ajustaram que seria nessa mesma noite. Quando toda a cidade dormia, eles
mandaram vir a piroga real, meteram-se dentro e deixaram-se ir à toa. Nenhum
dos remadores os via. Quando a aurora começou a aparecer, fustigando as vacas
rútilas, Kinnara proferiu a misteriosa invocação; a alma desprendeu-se-lhe, e ficou
pairando, à espera que o corpo do rei vagasse também. O dela caíra no tapete.
— Pronto? disse Kalaphangko.
— Pronto, aqui estou no ar, esperando. Desculpe Vossa Majestade a indignidade
da minha pessoa...
Mas a alma do rei não ouviu o resto. Lépida e cintilante, deixou o seu vaso físico e
penetrou no corpo de Kinnara, enquanto a desta se apoderava do despojo real.
Ambos os corpos ergueram-se e olharam um para o outro, imagine-se com que
assombro. Era a situação do Buoso e da cobra, segundo conta o velho Dante; mas
vede aqui a minha audácia. O poeta manda calar Ovídio e Lucano, por achar que a
sua metamorfose vale mais que a deles dois. Eu mando-os calar a todos três.
Buoso e a cobra não se encontram mais, ao passo que os meus dois heróis, uma
vez trocados, continuam a falar e a viver juntos — coisa evidentemente mais
dantesca, em que me pese à modéstia.
— Realmente, disse Kalaphangko, isto de olhar para mim mesmo e dar-me
majestade é esquisito. Vossa Majestade não sente a mesma coisa?
Um e outro estavam bem, como pessoas que acham finalmente uma casa
adequada. Kalaphangko espreguiçava-se todo nas curvas femininas de Kinnara.
Esta inteiriçava-se no tronco rijo de Kalaphangko. Sião tinha, finalmente, um rei.
CAPÍTULO IVA primeira ação de Kalaphangko (daqui em diante entenda-se que é o corpo do rei
com a alma de Kinnara, e Kinnara o corpo da bela siamesa com a alma do
Kalaphangko) foi nada menos que dar as maiores honrarias à academia sexual.
Não elevou os seus membros ao mandarinato, pois eram mais homens de
pensamento que de ação e administração, dados à filosofia e à literatura, mas
decretou que todos se prosternassem diante deles, como é de uso aos mandarins.
Além disso, fez-lhes grandes presentes, coisas raras ou de valia, crocodilos

empalhados, cadeiras de marfim, aparelhos de esmeralda para almoço,
diamantes, relíquias. A academia, grata a tantos benefícios, pediu mais o direito
de usar oficialmente o título de Claridade do Mundo, que lhe foi outorgado.
Feito isso, cuidou Kalaphangko da fazenda pública, da justiça, do culto e do
cerimonial. A nação começou de sentir o peso grosso, para falar como o excelso
Camões, pois nada menos de onze contribuintes remissos foram logo decapitados.
Naturalmente os outros, preferindo a cabeça ao dinheiro, correram a pagar as
taxas, e tudo se regularizou. A justiça e a legislação tiveram grandes melhoras.
Construíram-se novos pagodes; e a religião pareceu até ganhar outro impulso,
desde que Kalaphangko, copiando as antigas artes espanholas, mandou queimar
uma dúzia de pobres missionários cristãos que por lá andavam; ação que os
bonzos da terra chamaram a pérola do reinado.
Faltava uma guerra. Kalaphangko, com um pretexto mais ou menos diplomático,
atacou a outro reino, e fez a campanha mais breve e gloriosa do século. Na volta a
Bangkok, achou grandes festas esplêndidas. Trezentos barcos, forrados de seda
escarlate e azul, foram recebê-lo. Cada um destes tinha na proa um cisne ou um
dragão de ouro, e era tripulado pela mais fina gente da cidade; músicas e
aclamações atroaram os ares. De noite, acabadas as festas, sussurrou ao ouvido a
bela concubina:
— Meu jovem guerreiro, paga-me as saudades que curti na ausência; dize-me que
a melhor das festas é a tua meiga Kinnara.
Kalaphangko respondeu com um beijo.
— Os teus beiços têm o frio da morte ou do desdém, suspirou ela.
Era verdade, o rei estava distraído e preocupado; meditava uma tragédia. Ia-se
aproximando o termo do prazo em que deviam destrocar os corpos, e ele cuidava
em iludir a cláusula, matando a linda siamesa. Hesitava por não saber se
padeceria com a morte dela visto que o corpo era seu, ou mesmo se teria de
sucumbir também. Era esta a dúvida de Kalaphangko; mas a idéia da morte
sombreava-lhe a fronte, enquanto ele afagava ao peito um frasquinho com
veneno, imitado dos Bórgias.
De repente, pensou na douta academia; podia consultá-la, não claramente, mas
por hipótese. Mandou chamar os acadêmicos; vieram todos menos o presidente, o
ilustre U-Tong, que estava enfermo. Eram treze; prosternaram-se e disseram ao
modo de Sião:
— Nós, desprezíveis palhas, corremos ao chamado de Kalaphangko.
— Erguei-vos, disse benevolamente o rei.
— O lugar da poeira é o chão, teimaram eles com os cotovelos e joelhos em terra.
— Pois serei o vento que subleva a poeira, redargüiu Kalaphangko; e, com um
gesto cheio de graça e tolerância, estendeu-lhes as mãos.
Em seguida, começou a falar de coisas diversas, para que o principal assunto
viesse de si mesmo; falou nas últimas notícias do ocidente e nas leis de Manu.
Referindo-se a U-Tong, perguntou-lhes se realmente era um grande sábio, como
parecia; mas, vendo que mastigavam a resposta, ordenou-lhes que dissessem a
verdade inteira. Com exemplar unanimidade, confessaram eles que U-Tong era
um dos mais singulares estúpidos do reino, espírito raso, sem valor, nada sabendo
e incapaz de aprender nada. Kalaphangko estava pasmado. Um estúpido?
— Custa-nos dizê-lo, mas não é outra coisa; é um espírito raso e chocho. O

coração é excelente, caráter puro, elevado...
Kalaphangko, quando voltou a si do espanto, mandou embora os acadêmicos, sem
lhes perguntar o que queria. Um estúpido? Era mister tirá-lo da cadeira sem
molestá-lo. Três dias depois, U-Tong compareceu ao chamado do rei. Este
perguntou-lhe carinhosamente pela saúde; depois disse que queria mandar
alguém ao Japão estudar uns documentos, negócio que só podia ser confiado a
pessoa esclarecida. Qual dos seus colegas da academia lhe parecia idôneo para tal
mister? Compreende-se o plano artificioso do rei: era ouvir dois ou três nomes, e
concluir que a todos preferia o do próprio U-Tong; mas eis aqui o que este lhe
respondeu:
— Real Senhor, perdoai a familiaridade da palavra: são treze camelos, com a
diferença que os camelos são modestos, e eles não; comparam-se ao sol e à lua.
Mas, na verdade, nunca a lua nem o sol cobriram mais singulares pulhas do que
esses treze... Compreendo o assombro de Vossa Majestade; mas eu não seria
digno de mim se não dissesse isto com lealdade, embora confidencialmente...
Kalaphangko tinha a boca aberta. Treze camelos? Treze, treze. U-Tong ressalvou
tão-somente o coração de todos, que declarou excelente; nada superior a eles
pelo lado do caráter. Kalaphangko, com um fino gesto de complacência, despediu
o sublime U-Tong, e ficou pensativo. Quais fossem as suas reflexões, não o soube
ninguém. Sabe-se que ele mandou chamar os outros acadêmicos, mas desta vez
separadamente, a fim de não dar na vista, e para obter maior expansão. O
primeiro que chegou, ignorando aliás a opinião de U-Tong, confirmou-a
integralmente com a única emenda de serem doze os camelos, ou treze, contando
o próprio U-Tong. O segundo não teve opinião diferente, nem o terceiro, nem os
restantes acadêmicos. Diferiam no estilo; uns diziam camelos, outros usavam
circunlóquios e metáforas, que vinham a dar na mesma coisa. E, entretanto,
nenhuma injúria ao caráter moral das pessoas. Kalaphangko estava atônito.
Mas não foi esse o último espanto do rei. Não podendo consultar a academia,
tratou de deliberar por si, no que gastou dois dias, até que a linda Kinnara lhe
segredou que era mãe. Esta notícia fê-lo recuar do crime. Como destruir o vaso
eleito da flor que tinha de vir com a primavera próxima? Jurou ao céu e à terra
que o filho havia de nascer e viver. Chegou ao fim do semestre; chegou o
momento de destroçar os corpos.
Como da primeira vez, meteram-se no barco real, à noite, e deixaram-se ir águas
abaixo, ambos de má vontade, saudosos do corpo que iam restituir um ao outro.
Quando as vacas cintilantes da madrugada começaram de pisar vagarosamente o
céu, proferiram eles a fórmula misteriosa, e cada alma foi devolvida ao corpo
anterior. Kinnara, tornando ao seu, teve a comoção materna, como tivera a
paterna quando ocupava o corpo de Kalaphangko. Parecia-lhe até que era ao
mesmo tempo mãe e pai da criança.
— Pai e mãe? repetiu o príncipe restituído à forma anterior.
Foram interrompidos por uma deleitosa música, ao longe. Era algum junco ou
piroga que subia o rio, pois a música aproximava-se rapidamente. Já então o sol
alagava de luz as águas e as margens verdes, dando ao quadro um tom de vida e
renascença, que de algum modo fazia esquecer aos dois amantes a restituição
física. E a música vinha chegando, agora mais distinta, até que, numa curva do
rio, apareceu aos olhos de ambos um barco magnífico, adornado de plumas e
flâmulas. Vinham dentro os quatorze membros da academia (contando U-Tong) e
todos em coro mandavam aos ares o velho hino: "Glória a nós, que somos o arroz
da ciência e a claridade do mundo!"
A bela Kinnara (antigo Kalaphangko) tinha os olhos esbugalhados de assombro.
Não podia entender como é que quatorze varões reunidos em academia eram a

claridade do mundo, e separadamente uma multidão de camelos. Kalaphangko,
consultado por ela, não achou explicação. Se alguém descobrir alguma, pode
obsequiar uma das mais graciosas damas do Oriente, mandando-lha em carta
fechada, e, para maior segurança, sobrescrita ao nosso cônsul em Xangai, China.
FIM  

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Morte acidental

          Enquanto ele falava, eu arrumava a churrasqueira até que todos viessem. Era uma típica festa de firma, onde as pessoas vão par...